Opinião

PL que proíbe venda de animais em pet shop pode extinguir espécies

Autor

  • Renato de Mello Almada

    é advogado diretor jurídico da Confederação Brasileira de Cinofilia é pós-graduado em Direito dos Animais pela Faculdade de Direito de Lisboa (Portugal).

15 de agosto de 2023, 7h08

O PL 523/2023, cuja tramitação até então era desconhecida por grande parte da sociedade, ao buscar proibir a criação e revenda de animais nos chamados pet shops e estabelecimentos comerciais, na realidade promoverá a extinção a curto ou longo prazo da criação de animais no estado de São Paulo, o que, em última análise, motivará a extinção de espécies, o que contraria a nossa Constituição.

Razvan Cornel Constantin
Razvan Cornel Constantin

É de se registrar desde logo que todos devemos zelar pelo bem-estar animal. Isso é inquestionável!

Os maus tratos devem ser combatidos por todos, mas para isso há necessidade de um eficaz trabalho de conscientização da população como um todo, dos variados segmentos da sociedade, incluindo o Poder Público. Há de se ter uma lei que defina, com critérios técnicos, o que efetivamente se caracteriza como maus tratos. Não pode haver espaços para interpretações dúbias ou — o que é pior — para definições baseadas apenas em critérios ideológicos.

Para que uma norma de fato atinja seus reais objetivos, na sua formação, devem ser ouvidos os segmentos que atuam de forma responsável no setor atingido, além de consultas públicas e outras diligências mais.

O PL em questão, acredita-se, foi elaborado com boas intenções, mas sua redação vai muito além da proibição de comercialização de animais em pet shops e da criação de cadastro de criadores.

De pronto, cabe destacar que para os efeitos desse PL consideram-se animais (I) os cachorros, (II) os gatos e (III) os pássaros domésticos, quando na realidade existe um número muito maior de espécies consideradas como "pets".

Após mencionar a previsão de criação do Ceca (Cadastro Estadual do Criador de Animais), cuja regulamentação ficará para momento posterior, o citado PL prevê em seu artigo 4º ser vedado em todo o estado de São Paulo (I) a revenda de animais em qualquer estabelecimento comercial; (II) a revenda de animais em pet shops, ou similares; (III) a comercialização de animais em quaisquer outros estabelecimentos que não detenham o Ceca; e (IV) a comercialização ou revenda de animais por qualquer pessoa física.

 Com efeito, o PL está restringindo o direito de propriedade e limitando de forma drástica a comercialização de animais, independentemente de o local da venda ser uma pet shop ou não.

A matéria objeto do PL passa a tratar de disciplina de Direito Civil o que, na realidade, é de competência privativa da União, nos termos do artigo 22, inciso I, da Constituição Federal, ao tratar sobre propriedade e negócio jurídico, especialmente a venda, o que acarreta a sua inconstitucionalidade.

Também se verifica no texto da norma violação aos artigos 1º, inciso IV, 5º, inciso II e 170, parágrafo único da Constituição Federal, ao restringir totalmente o comércio de animais domésticos, o que também é inconstitucional.

O Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, em 2021, já reconheceu a inconstitucionalidade de lei do município de Santos, por afronta às matérias e artigos acima citados (Arguição de Inconstitucionalidade nº 0006892-90.2021.8.26.000).

 Não bastasse isso, chama a atenção o quanto disposto no artigo 10 do PL. Eis sua redação: "Quando houver comercialização, os cães e gatos deverão ser entregues castrados, microchipados e vacinados". 

A determinação de os cães e gatos somente poderem ser comercializados, na restrita hipótese prevista, após serem castrados, nos leva ao entendimento de que essas espécies em curto espaço de tempo serão extintas, pois impossível se tornará sua reprodução, o que contraria o artigo 225 da Constituição, que impõe ao Poder Público e à coletividade preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do pais e proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco a sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.

Nesse cenário, também por essa razão, há de ser reconhecida a inconstitucionalidade desse projeto de lei.

Outro ponto de relevo que deve ser destacado é o abalo social e econômico, pois milhares de empregos dos segmentos que compõem a cadeia produtiva do setor serão atingidos, assim como expressivos valores de impostos incidentes sobre essa mesma cadeia deixarão de ser recolhidos pelo Poder Público.

Não havendo cães, gatos e pássaros, não há por que subsistirem as fábricas de ração, bem assim os produtores dos insumos necessários à produção de rações, medicamentos, vacinas, utensílios etc.

Todos esses pontos devem ser considerados quando do momento de o Projeto ser levado à sanção do governador, mas o mais importante, sem dúvida alguma, é o incentivo à extinção da espécie, o que em um cenário drástico, culminará com a inexistência de cães e gatos de diversas raças seculares, cujas funções se perderão no tempo, não mais havendo, como exemplo, os cães de resgate e salvamento; os cães de terapia, os cães guias e outros. A funcionalidade dessas raças é garantida pelo trabalho sério e ético de criadores responsáveis que preservam os cães de raça e o patrimônio genético de séculos.

É isso, em síntese, que a norma, como produzida, acarretará em breve. Em contrapartida, se estimulará a criação ilegal — que é tudo o que não queremos, uma vez que em tal situação os animais estarão, aí sim, mais propensos aos maus tratos.

Temos que combater os malfeitores sem que prejudicar a conservação das espécies e o direito constitucionalmente assegurado.

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