Observatório Constitucional

Omissões inconstitucionais: algumas reflexões nos 35 anos da CF/88

Autor

  • Fábio Lima Quintas

    é editor-chefe do Observatório da Jurisdição Constitucional pós-doutor em Ciências Jurídico-Processuais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra doutor em Direito do Estado pela USP mestre em Direito do Estado pela UnB professor no curso de graduação em Direito no mestrado e no doutorado acadêmico do IDP (Brasília) e advogado.

12 de agosto de 2023, 8h00

Em artigo que escreveu em 2008, Jorge Miranda celebrava que "os vinte anos da Constituição são vinte anos de democracia, de liberdade e de progresso econômico-social como o Brasil nunca antes conhecera […]. E são, a despeito de todas as contrariedades, vinte anos de abertura à esperança" [1].

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Conquanto tenhamos, no ano que comemoramos 35 anos da promulgação da Constituição Cidadã, um contexto social e político distinto, com grandes desafios enfrentados e a enfrentar para a preservação do nosso Estado Democrático de Direito, penso que a Constituição de 1988 ainda representa (ou, melhor dizendo, representa com mais intensidade) a Constituição da esperança.

Poderiam ser indicadas muitas razões para tanto, mas uma nota de rodapé no texto de Jorge Miranda chama minha atenção: "foi ainda a Constituição de 1988 que propiciou o desenvolvimento dos estudos constitucionais num surto sem precedentes e colocando a doutrina brasileira no cerne da comunidade juscientífica mundial".

Esse elogio à dogmática constitucional é também um alerta para o papel que por ela deve ser desempenhado [2]. E, olhando para o papel que a dogmática desempenhou para a elaboração da Constituição de 1988 e para a compreensão que dela tiramos, chegaremos a outro notável constitucionalista português, J.J. Gomes Canotilho, que publicou, em 1982, o livro Constituição Dirigente e vinculação do Legislador (fruto de sua tese de doutoramento). Apesar de as reflexões trazidas pelo prof. Canotilho em seu livro terem como pano de fundo a Constituição portuguesa de 1976 [3], a ampla influência dessa obra nos debates constitucionais travados no Brasil desde a constituinte é inegável [4].

Canotilho é exemplo de como se constrói uma boa dogmática, seja pela densidade de seu pensamento, seja pela forma como se propõe a rever suas ideias à luz de novos contextos e tempos.

Refletindo sobre as omissões inconstitucionais, Canotilho defendeu em seu livro que a Constituição não tem apenas a função de organizar a vida política de uma nação (definindo competências e regulando processos decisórios políticos), mas também adquire o objetivo de determinar tarefas e estabelecer programas e fins para o Estado e a sociedade. Em razão disso, Canotilho considera necessário identificar o fenômeno da Constituição dirigente, "entendida como o bloco de normas constitucionais e que se definem fins e tarefas do Estado, se estabelecem directivas e estatuem imposições" [5].

Essa constatação, anotou Canotilho, trazia repercussões sobre a tese então corrente de que o legislador tinha ampla e quase irrestrita liberdade de conformação do ordenamento jurídico. Em um sistema jurídico regido por uma Constituição, especialmente uma que fixava objetivos para serem alcançados pela sociedade e pelo Estado, era natural pensar que se impunham vinculações teleológicas aos órgãos legiferantes e, desse modo, que haveria limites da liberdade de conformação da constituição pelo legislador [6].

A omissão legislativa inconstitucional surge, nesse contexto, quando "o legislador não 'faz' algo que positivamente lhe era imposto pela constituição. Não se trata, pois, apenas de um simples negativo 'não fazer'; trata-se, sim, de não fazer aquilo a que, de forma concreta e explícita, estava constitucionalmente obrigado". A omissão legislativa inconstitucional está associada, portanto, ao não cumprimento de uma imposição constitucional concreta de legislar [7].

Enorme impacto teve, anos mais tarde, a revisão que Canotilho fez de seus pensamentos, no famoso prefácio à 2ª edição de Constituição Dirigente, quando afirmou que "a Constituição dirigente está morta se o dirigismo constitucional for entendido como normativismo constitucional revolucionário capaz de, só por si, operar transformações emancipatórias". Não obstante isso, "alguma coisa ficou […] da programaticidade constitucional. Contra os que ergueram as normas programáticas a 'linha de caminho de ferro' neutralizadora dos caminhos plurais da implantação da cidadania, acreditamos que os textos constitucionais devem estabelecer as premissas materiais fundantes das políticas públicas num Estado e numa sociedade que se pretendem continuar a chamar de direito, democráticas e sociais" [8].

Na leitura de Eros Roberto Grau, na resenha que fez do prefácio à 2ª Edição da obra de Canotilho, "a Constituição dirigente não substitui a política; ao contrário, a Constituição dirigente nada mais faz do que sujeitar a política a fundamentação constitucional" [9].

Mesmo nesses termos mais contidos para a "Constituição Dirigente", permanece válida a assertiva de que há uma vinculação do legislador aos seus termos. Nas palavras de Canotilho: "[…] em termos jurídicos-programáticos, uma Constituição dirigente […] representa um projecto histórico pragmático de limitação dos poderes de questionar do legislador, da liberdade de conformação do legislador, de vinculação deste aos fins que integram o programa constitucional" [10].

Da vinculação do legislador não sucede, contudo, uma visão da Constituição centralizada no Tribunal Constitucional ou no Judiciário. Nas palavras de Canotilho:

"Eu tenho escrito e dito que não sou muito defensor da ideia de total judicialização da vida política. Aqui, na Europa, parece que se considera que os tribunais constitucionais e os outros tribunais são a última etapa do aperfeiçoamento político […]. A isso eu respondo: pelo contrário, as grandes etapas do homem não foram os juízes que as fizeram, foi o povo, com outros esquemas organizativos e com outras propostas de actuação […]. Daí a necessidade de alguma prudência ao dizer-se que a etapa final de todo esse processo de Constituição dirigente acaba na Constituição procedimental e na justiça procedimental. Pelo contrário, se a justiça constitucional é importante, porque representa um certo controlo do legislador, deve ter-se também em conta o que Bonavides escreve hoje a respeito da democracia representativa e da Constituição cidadã" [1].

Não obstante a profunda alteração na sua compreensão da Constituição Dirigente, é preciso destacar que Canotilho sempre defendeu uma posição mais modesta para a jurisdição constitucional, no suprimento das omissões inconstitucionais.

Alertava ele que "o trânsito de um dever de legislação para um direito à legislação não é automático nem isento de dificuldades materiais e processuais" [2]. Mesmo com o seu entusiasmo com a então recente Constituição de 1976, via muitas dificuldades na possibilidade de o controle das omissões legislativas pela Justiça ou pelo Tribunal Constitucional ir além da declaração dessa situação para constranger os órgãos competentes a cumprir seu dever. Daí que o alcance prático da constatação de uma omissão legislativa inconstitucional limita-se, de ordinário, "a uma simples declaração de inconstitucionalidade por silêncio legislativo" [3]. Quando a omissão legislativa afrontasse um direito fundamental a prestações cuja concretização pudesse ser tangível ao juiz, em vista da existência de certo nível de realização legal, seria "possível conceber-se uma acção judicial contra o retrocesso ou desigualdade" [4].

Em coerência com essa visão, mas revendo já a sua compreensão da Constituição Dirigente, Canotilho defende, no prefácio à 2ª edição, que "o instituto da inconstitucionalidade deve manter-se, não para deslegitimar governos e assembleias inertes, mas para assegurar uma via de publicidade crítica e processual contra a constituição não cumprida" [5].

E é com essa advertência em mente que, nos 35 anos da Constituição de 1988, provoco a indagação sobre se há lugar para a categoria das omissões inconstitucionais para fins do controle de constitucionalidade [6]. A pergunta se coloca no contexto de que parece haver certa linha de entendimento que trata a categoria da omissão inconstitucional como anacrônica e um entrave à concretização da Constituição, que melhor se realizaria com a definição, pelo próprio Judiciário ou pelo STF, do (suposto) direito subjetivo não estabelecido pela legislação, a partir de interpretação direta do texto constitucional.

Essa certamente é uma forma de encarar a jurisdição constitucional: desconsiderar a categoria "omissão" no controle de constitucionalidade para conformar os limites de um direito subjetivo ainda não delineado pelo legislador em nome da concretização da Constituição. Mas, mesmo com esse nobre propósito, com isso se perde um importante instrumento para avaliar o grau e a qualidade de interferência da jurisdição constitucional no campo de atuação das outras instituições políticas (mesmo que chegue o juiz a resultado igual — de definir o direito subjetivo —, mas na perspectiva de suprir a situação de omissão identificada).

Prestigiar a categoria referente às omissões inconstitucionais contribui para delimitar fronteiras entre a atividade legislativa, a jurisdição constitucional e a jurisdição ordinária, criando-se constrangimentos políticos para o legislador, censurando publicamente sua inércia, e limites jurisdicionais para os juízes e Tribunais Constitucionais, inibindo atuações excessivas, sem prejuízo de que, em situações extraordinárias, o tribunal avance no delineamento mínimo do direito fundamental em vista da omissão inconstitucional [7]. Penso que essa ideia permanece atual.

Enfim, no Brasil, em vista da tradição do controle difuso de constitucionalidade, do aumento da litigiosidade que se manifesta perante a jurisdição ordinária, do protagonismo que o Supremo Tribunal Federal tem reivindicado na jurisdição constitucional e da importância de preservar os canais ordinários de representação democrática, a categoria das omissões inconstitucionais pode contribuir para um maior equilíbrio entre a atividade legislativa, o sistema de controle de constitucionalidade das omissões legislativas e a resolução de conflitos submetidos ao Judiciário, numa solução que não comprometa a efetividade dos direitos nem o valor da democracia.

Celebrando os 35 anos da Constituição, abre-se novamente a oportunidade para a reflexão sobre o conceito e a função da omissão inconstitucional na ordem jurídica fundada em 1988.

 


[1] COUTINHO, 2005, p. 26

[2] CANOTILHO, 2001, p. 339

[3] Nas palavras de Canotilho: "6.8 – Não obstante reconhecer a figura das omissões legislativas como corolário lógico do Estado constitucional e democrático, continua a ser problemática a admissibilidade de um direito à legislação. 6.9 – O direito à emanação de normas defronta-se com várias dificuldades que vão desde a configuração clássica de direito subjectivo até aos problemas da legitimidade processual dos cidadãos" (2001, p. 482).

[4] CANOTILHO, 2001, P. 483

[5] CANOTILHO, 2001, p. XVII

[6] Para aprofundar a discussão, confira-se: QUINTAS, Fábio Lima. Mandado de Injunção no Supremo Tribunal Federal. Saraiva: São Paulo, 2016.

[7] Deve-se lembrar que a Constituição estabelece que "declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias" (§ 2º do art. 103 da Constituição).

 


[1] Miranda, Jorge. A constituição de 1988: uma constituição de esperança. Revista de informação legislativa, v. 45, n. 179, p. 155-164, jul./set. 2008 Disponível em http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/160459 (último acesso em 10/8/2023)

[2] Sobre o papel da dogmática, sempre atuais e válidas as reflexões do prof. Lenio Streck, como a que ele externou na seguinte entrevista: https://www.conjur.com.br/20anos/2017-ago-08/lenio-streck-abandonar-as-proprias-vontades-para-julgar-e-o-custo

[3] O advento da Constituição de 1976 marcou não apenas a aproximação de Portugal com a democracia, mas também com o constitucionalismo do Estado Social, comprometido com a proteção das liberdades dos cidadãos, com o desenvolvimento social e econômico, numa sociedade democrática. Traduz, pois, tal como a Constituição brasileira de 1988, um projeto otimista de modernidade, crente na força transformadora das normas constitucionais (Canotilho, J.J. Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2001. p. V-VI).

[4] Com propriedade, Néviton Guedes, em rico artigo que escreveu por ocasião dos 30 anos do lançamento do livro do Prof. Canotilho, pontuou que “não é difícil compreender por que o livro Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador alcançou, no Brasil, com o advento da Constituição de 1988 e seu caráter acentuadamente dirigente, uma tão ampla influência no âmbito do estudo do Direito Constitucional, sobretudo, entre jovens constitucionalistas e constitucionalistas progressistas, influência essa que, dificilmente, qualquer outro texto produzido no âmbito do Direito Constitucional terá aqui alcançado”. (Constituição e Poder: Professor Canotilho e sua Constituição Dirigente, 12 de novembro de 2012. Disponível em https://www.conjur.com.br/2012-nov-12/constituicao-poder-professor-canotilho-constituicao-dirigente)

[5] CANOTILHO, 2001, p. 224

[6] CANOTILHO, 2001, p. XII-XIII.

[7] "As imposições constitucionais são ordens de actuação positiva dirigidas sobretudo ao legislador, no sentido de este emitir várias leis de ‘execução’, simultâneas ou sucessivas, e necessárias: (1) à conformação jurídica de situações de facto; (2) à regulamentação de questões específicas; (3) à criação de pressupostos necessários para nova evolução do regime constitucional; (4) à adaptação das leis antigas aos novos princípios da lei fundamental." (CANOTILHO, 2001, p. 480)

[8] CANOTILHO, 2001, p. XXIX-XXX

[9] GRAU, Eros Roberto. Canotilho, Constituição dirigente e vinculação do legislador: resenha de um prefácio. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (org.). Canotilho e a constituição dirigente. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005

[10] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (org.). Canotilho e a constituição dirigente. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 15.

Autores

  • é editor-chefe do Observatório da Jurisdição Constitucional, pós-doutor em Ciências Jurídico-Processuais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, doutor em Direito do Estado pela USP, mestre em Direito do Estado pela UnB, professor vinculado ao PPG do IDP (Brasília) e advogado.

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