Opinião

Direito concorrencial e impactos dos atos de concentração nas relações trabalhistas

Autores

  • Jonathan de Mello Rodrigues Mariano

    é procurador federal professor convidado de pós-graduação da Universidade Vale do Rio Doce (Univale) em Governador Valadares (MG) mestrando em Direito e Políticas Públicas pela Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) mestrando em Direito da Cidade pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) especialista em Direito Administrativo Econômica pela PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) e especialista em Direito Administrativo pela Universidade Cândido Mendes (Ucam).

  • Marcos Felipe Aragão Moraes

    é procurador federal da Advocacia-Geral da União (AGU) professor de Direito mestre em Políticas Públicas e Governo pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) especialista em Direito da Administração Pública pela Universidade Federal Fluminense (UFF) ex-advogado da Apex-Brasil palestrante autor articulista jurídico e co-editor chefe da Revista da Advocacia Pública Federal.

11 de agosto de 2023, 19h45

A ideia sobre escrever estas breves reflexões surgiu a partir da publicação do acórdão do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (Campinas) que impôs ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica a obrigação de avaliar o impacto dos atos de concentração econômica nas relações de trabalho, com base no princípio constitucional da valorização do trabalho humano, a fim de evitar demissões em massa e o fechamento de unidades produtivas. Mais do que isso, a corte regional do Trabalho estabeleceu algumas obrigações adicionais ao Cade, que possuem relação última com esse escopo.

A finalidade dessas breves reflexões não será avaliar a competência, ou não, da Justiça do Trabalho em se imiscuir na atividade de análise do Cade em relação às implicações de rearranjo econômico de players do mercado privado de produção de bens e de serviços e, por consequência, na livre concorrência, nem mesmo nos efeitos práticos da aludida decisão no andamento de processos administrativos de atos de concentração econômica e em que medida poderia o Poder Judiciário se imiscuir nessa análise.

Em verdade, o objetivo é apenas tentar trazer luzes à seguinte questão: cabe ao direito concorrencial se preocupar com os impactos dos atos de concentração nas relações trabalhistas? Desse modo, essas breves reflexões ater-se-ão a fornecer aspectos relacionados diretamente ao próprio direito concorrencial, não se preocupando com aspectos relacionados ao direito processual ou aos impactos administrativo-organizacionais de análise do Cade.

Pois bem. Para responder ao aludido questionamento, é relevante rememorar que as normas jurídicas (regras e princípios) afetos ao direito concorrencial tiveram como fundamento axiológico subjacente a conservação e a preservação da própria dinâmica do mercado privado e nos arranjos que a iniciativa privada busca para manter a liberdade econômica dos meios de produção e da prestação de bens e de serviços da sociedade.

Quer-se dizer: o direito antitruste surge como um remédio  ainda que sob críticas  necessário para a conservação do próprio sistema capitalista de produção de bens e de serviços e organização empresarial, uma vez que, sem concorrência potencial ou efetiva em determinado mercado, surgiria um quadro de ineficiência alocativa econômica, por favorecer a formação de monopólios ou outros estados de concentração de poder econômico nas mãos de poucos fornecedores ou consumidores.

As críticas antigas sobre a possibilidade de as normas de direito concorrencial promoverem uma ineficiência alocativa e preservação de players ineficientes no mercado permanecem até hoje, como é o caso da Escola de Chicago. Isso, porém, não retira o fato de que a manutenção e a criação de normas de direito antitruste nos países em geral surgem para atingir um mesmo escopo atual: proteger a livre concorrência e a livre iniciativa das práticas de abuso do poder econômico.

Nessa linha, a análise e a interpretação das normas de direito concorrencial têm como foco avaliar se determinados atos de concentração, arranjos econômicos comerciais ou atos empresariais ou negociais associativos causarão um impacto prejudicial ao surgimento de novos players, à manutenção daqueles existentes ou à criação de óbices artificiais impeditivos para o aumento da produtividade empresarial de determinado setor.

Ter em mente essa perspectiva finalística do direito concorrencial é essencial não só para a operação prática das normas jurídicas por quem trabalha na área, como também o é para a compreensão do próprio papel do Cade no âmbito do direito brasileiro em relação à análise que deve empreender na avaliação de infração à ordem econômica ou em atos de concentração econômica.

Veja-se que não se trata aqui de uma visão pessoal dos autores dessas breves reflexões, mas sim uma lógica diretamente estruturada no artigo 36 da Lei nº 12.529, de 2011, o qual aponta que a infração à ordem econômica ocorrerá quando produzir efeitos, ainda que não alcançados, ou tiver a pretensão de alcançá-los quanto: 1) à limitação, ao falseamento ou a qualquer forma de prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; 2) ao domínio de mercado relevante de bens ou serviços; 3) ao aumento arbitrário de lucros; e 4) ao exercício de forma abusiva de posição dominante no mercado relevante.

Ao fim e ao cabo, o legislador desejou coibir o abuso do poder econômico estabelecido pelo Poder Constituinte Originário como um estado de coisas não desejável para a República Federativa do Brasil, nos termos do artigo 173, § 4º, da CRFB/1988, de acordo com o qual a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.

A estrutura institucional e normativa do direito antitruste brasileiro é evitar a dominação de mercados, a eliminação da concorrência e o aumento arbitrário do lucro. Indiscutivelmente, a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano (artigo 170, caput, da CRFB/1988), que, aliás, se constitui como um dos valores basilares do país, nos termos do inciso IV, do artigo 1º, da CRFB/1988. Porém, infelizmente, a verdade, por vezes, é dura, mas precisa ser dita: o direito antitruste não tem e nem deve ter a preocupação direta de se preocupar com as modificações das unidades produtivas que podem levar à demissão de trabalhadores, ainda que em massa.

A bem da verdade, seria, com todo o respeito, inconstitucional pensar o contrário disso, uma vez que o Estado, por meio de uma entidade pública, interviria excessivamente na própria organização econômica da atividade empresarial, o que contraria a própria lógica de livre iniciativa e, por consequência, viola um dos princípios basilares da própria democracia brasileira (artigo 1º, inciso IV, da CRFB/1988) e um fundamento da ordem econômica (artigo 170, caput, da CRFB/1988).

O Supremo Tribunal Federal, diga-se de passagem, ao analisar eventuais limitações do Estado  através do Poder Judiciário (súmulas do Tribunal Superior do Trabalho) — sobre a organização empresarial pelo uso da terceirização, destacou expressamente que os valores do trabalho e da livre iniciativa, insculpidos na Constituição (artigo 1º, IV), são intrinsecamente conectados, em uma relação dialógica que impede seja rotulada determinada providência como maximizadora de apenas um desses princípios, haja vista ser essencial para o progresso dos trabalhadores brasileiros a liberdade de organização produtiva dos cidadãos, entendida esta como balizamento do poder regulatório para evitar intervenções na dinâmica da economia incompatíveis com os postulados da proporcionalidade e da razoabilidade (RE 958.252/MG – Tema 725 de repercussão geral).

Ou seja, a Suprema Corte brasileira já indicou que o poder regulatório do Estado não pode promover intervenções na dinâmica da economia que são incompatíveis com os postulados da proporcionalidade e da razoabilidade. Para os fins dessas breves reflexões, essa ponderação é relevante para relembrar que, quando players econômicos se unem para exercer alguma atividade econômica, o fazem para otimizar sua atividade produtiva, deixando-a mais eficiente, seja na redução de custo, seja no aumento da produtividade. Tanto é assim que a aquisição natural de poder dominante de mercado não é coibida pelo direito concorrencial, na forma do §1º, do artigo 36, da Lei nº 12.529, de 2011.

Diga-se, a bem da verdade, que a realização de atos de concentração por atores econômicos concorrentes pode se dar por inúmeros motivos. Um deles diz respeito à necessidade de preservação do próprio negócio empresarial, seja por questões econômicas, seja pela necessidade de se promover um alavancamento para conseguir se manter no mercado relevante diante do surgimento de um novo concorrente.

Quer-se dizer: o ato de concentração econômica tem a ver, ou com o crescimento do poder dominante de determinado player, ou com a necessidade de preservação da própria atividade empresarial. Com efeito, faz parte do processo natural de ato de concentração econômica a atividade empresarial passar por rearranjos para permitir que os atores econômicos consigam tornar a sua produção de bens e de serviços economicamente mais eficiente para obter, com toda a legitimidade, a rentabilidade financeira necessária para manter o negócio e obter o lucro, que, afinal, é o objetivo último de toda e qualquer atividade empresarial.

O escopo do direito antitruste não deve ser obstaculizar a tentativa empresarial de obtenção de eficiência econômica dos meios de produção, mas sim e tão somente evitar que esses arranjos ou essa comunhão de interesses inviabilizem a livre iniciativa e a própria concorrência.

A manutenção de relações de trabalho não se mostra como questão crucial para a preservação da concorrência em prol da coletividade, no sentido de haver uma competição saudável e eficientemente ótima entre atores econômicos dentro de determinado mercado relevante de produtos e de serviços. Em realidade, trata-se de questão secundária relacionada à própria organização empresarial.

Se fosse o contrário disso, aliás, não seria admitido no direito brasileiro o uso de tecnologia para a automação de serviços em atividades empresariais, uma vez que essas incontestavelmente causam efeitos prejudicais nos postos de trabalho mais manuais, tornando-os obsoletos no decorrer do tempo. O mesmo raciocínio aplica-se a qualquer forma de organização empresarial, inclusive a terceirização, que foi validada pelo STF.

Exigir que o Cade, como entidade pública especializada na análise de condutas eventualmente danosas à concorrência como bem coletivo difuso (artigo 1º, parágrafo único, da Lei nº 12.529, de 2011), avalie eventuais efeitos prejudiciais às relações de trabalho é incorrer na mesma interpretação e aplicação inconstitucional relacionada à tentativa de proibição estatal de terceirização de atividade-fim, através de entendimento jurisprudencial (súmula 331 do TST), como já rechaçado pelo STF.

Assim, pode-se concluir, como resposta à questão aventada no início dessas breves reflexões, que não cabe o direito concorrencial se preocupar com os impactos dos atos de concentração nas relações trabalhistas, razão pela qual, sob o ponto de vista axiológico, com todo o respeito, incorreu em erro o TRT-15, ainda que com todo o mérito legítimo de preocupação da questão de demissão em massa, e, mais, afrontou claramente o valor fundamental e constitucional da república e da ordem econômica que é a livre iniciativa (artigo 1º, inciso IV, e artigo 170, ambos da CRFB/1988).

Autores

  • é procurador Federal, mestrando em Direito e Políticas Públicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e em Direito da Cidade pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), especialista em Direito Administrativo Econômico pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), professor da pós-graduação em Direito Civil e Processo Civil da Universidade Vale do Rio Doce (Univale) e membro do Instituto de Direito Administrativo do Rio de Janeiro (Idarj).

  • é procurador federal da Advocacia-Geral da União (AGU), professor de Direito, mestre em Políticas Públicas e Governo pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), especialista em Direito da Administração Pública pela Universidade Federal Fluminense (UFF), ex-advogado da Apex-Brasil, palestrante, autor, articulista jurídico e co-editor chefe da Revista da Advocacia Pública Federal.

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