Opinião

Justiça Comum x Justiça Desportiva: o caso Igor Carius

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9 de agosto de 2023, 13h19

"STJD determina suspensão de jogadores por suposta manipulação de resultados" [1] é a notícia mais recente no meio jurídico e esportivo referente ao processo acerca das supostas manipulações de resultados em jogos de futebol e que no âmbito criminal tem como autor da ação penal o Ministério Público de Goiás.

Entretanto, o caso de um dos jogadores suspensos chama a atenção: O de Igor Carius, pois ele foi absolvido pela Justiça Desportiva das mesmas acusações tanto em primeira [2] como em segunda instância [3].

Assim, surgem dois questionamentos:

1) Sendo absolvido na Justiça Desportiva, um jogador pode ser condenado na Justiça Comum?

2) O processo correndo apenas na Justiça Comum, é devida a suspensão pela Justiça Desportiva?

As respostas aos referidos questionamentos é o que se pretende fazer no presente trabalho por meio de uma pesquisa descritiva e exploratória.   

Da Justiça Comum x Justiça Desportiva
De antemão, a resposta ao primeiro questionamento é sim, é possível que o atleta seja absolvido na Justiça Desportiva e seja julgado e condenado pela Justiça Comum, pois estamos falando de instâncias distintas, pois por um mesmo fato, sem que se caracterize uma possibilidade de dupla punição ou o chamado no meio jurídico de "bis in idem", a pessoa pode responder pelo mesmo ato nas esferas administrativa, cível e penal.

No mais, existem dois sistemas de jurisdição adotados pelos Estados, quais sejam: o sistema de jurisdição una, também chamado de sistema inglês e o sistema de jurisdição de jurisdição dual, também chamado de sistema francês.

O sistema de jurisdição dual, ou jurisdição dupla, também é conhecido, conforme afirmado acima, como sistema de contencioso francês devido ao fato de ter nascido na França como decorrência da desconfiança existente com o Poder Judiciário na época da revolução francesa de 1789 [4], o que fez a administração pública sentir a necessidade de ter um Judiciário com atribuições específicas para julgar as suas demandas, tribunal esse que era composto, conforme afirma Wladimir Brito, por magistrados originários da própria administração pública, ou seja, pelo próprio Rei, por seus ministros e por administradores de departamento [5].

Assim, no sistema acima mencionado existe um contencioso comum e um contencioso administrativo, ambos com força de coisa julgada, não podendo a decisão proferida pelo contencioso administrativo ser revista pelo contencioso comum [6]

Por outro lado, o sistema de jurisdição una, também chamado de sistema inglês, é assim conhecido devido ao fato de ter surgido na Inglaterra e ter logo em seguida sido incorporado nos Estados Unidos [7], ambos Estados que possuem o inglês como língua oficial.

No referido sistema existe apenas uma jurisdição estatal cujas decisões terão força de trânsito em julgado, fazendo com que, seja a questão administrativa ou seja a questão comum, apenas uma Justiça possa definir o litígio de forma definitiva, com força de coisa julgada.

No entanto, o fato de apenas uma Justiça poder decidir com força de coisa julgada não quer dizer que nos Estados onde se adota o sistema de jurisdição una não seja possível a existência de processos administrativos, estes poderão existir, porém não vão gerar o trânsito em julgado, podendo ser revistos pela jurisdição comum, tal como nos locais em que a jurisdição é dual também haverá decisões tomadas no âmbito meramente administrativo que não terão força de coisa julgada e que poderão ser levadas para a os tribunais administrativos pelas partes interessadas.

Por outro lado, a impossibilidade de fazer coisa julgada retira a natureza jurisdicional dos processos administrativos que não possuam a dita possibilidade, pois, tal como afirma Vicente J. Puppio, o objeto próprio da jurisdição é a coisa julgada [8], não sendo suficiente dizer o Direito para ser uma espécie de jurisdição, sendo necessário que se diga o Direito de forma definitiva. 

Por outro lado, o sistema de jurisdição una surgiu entre os séculos 16 e 17 em decorrência da insatisfação da população com a Corte Inglesa, então detentora da função de administrar e de julgar e, em virtude desse amplo poder, responsável por cometer uma série de desmandos e privilégios [9], causando, desse modo, a insatisfação da população e a exigência por um Judiciário mais imparcial. Assim, no ano de 1701 a Justiça Inglesa se tornou independente, passando, desta forma, a ter atribuição de julgar de forma definitiva todos os conflitos entre as pessoas, haja ou não a presença ou não da administração pública [10]

O Brasil adotou o sistema de jurisdição una [11], desde a Proclamação da República [12], não existindo no nosso país tribunais administrativos decidindo com força de coisa julgada.

Além disso, salvo nas causas desportivas [13], no Brasil não se faz necessário o esgotamento da via administrativa para poder se buscar a tutela do Poder Judiciário, bastando a comprovação da existência do interesse de agir por meio da comprovação de pretensão resistida, não podendo a pessoa adentrar com uma ação contra o Poder Público perante o Poder Judiciário sem antes, ao menos, tentar buscar o seu Direito pela via administrativa.

No caso da Justiça Desportiva se exige por expressa disposição constitucional o prévio esgotamento da via administrativa seja como forma de evitar desnecessariamente o atraso nas competições seja porque ela tem maior especialização para analisar as causas esportivas, principalmente no que tange as regulamentações internas aplicadas, que vinculam os praticantes dos esportes a partir do momento da inscrição nas competições esportivas, mas o fato é que uma decisão da Justiça Desportiva pode, quando diante de uma ilegalidade, ser revista pela Justiça Comum.

Entretanto, frise-se que no caso objeto de estudo do presente artigo não há o que se falar em o Poder Judiciário Comum estar revendo a decisão do STJD. Em verdade, o que está sendo feito em Goiás é a análise de se os jogadores cometeram os seguintes crimes previstos na Lei Geral dos Esportes:

"Artigo 198. Solicitar ou aceitar, para si ou para outrem, vantagem ou promessa de vantagem patrimonial ou não patrimonial para qualquer ato ou omissão destinado a alterar ou falsear o resultado de competição esportiva ou evento a ela associado. Pena – reclusão, de dois a seis anos, e multa.

Artigo 199. Dar ou prometer vantagem patrimonial ou não patrimonial com o fim de alterar ou falsear o resultado de competição esportiva ou evento a ela associado. Pena – reclusão, de dois a seis anos, e multa".

Desse modo, o que está em jogo em Goiás não é a correção da decisão do STJD nem muito a existência de um ilícito na esfera esportiva, mas sim se houve ou não a prática dos crimes supracitados pelos jogadores, mas a dúvida é: diante do processo criminal, a suspensão atual dada pelo Justiça Desportiva se justifica?

É o que veremos no próximo tópico.

A suspensão pela Justiça Desportiva
O Código Brasileiro de Justiça Desportiva prevê, no Capítulo II do seu Título III, que fala do Processo Desportivo, o seguinte:

"Artigo 35. Poderá haver suspensão preventiva quando a gravidade do ato ou fato infracional a justifique, ou em hipóteses de excepcional e fundada necessidade, desde que requerida pela Procuradoria, mediante despacho fundamentado do Presidente do Tribunal (STJD ou TJD), ou quando expressamente determinado por lei ou por este Código.

§1º. O prazo da suspensão preventiva, limitado a trinta dias, deverá ser compensado no caso de punição.

§2º. A suspensão preventiva não poderá ser restabelecida em grau de recurso".

Desse modo, dentro do processo desportivo e desde que não se esteja em fase de recurso, é possível a suspensão do atleta por até 30 dias, como aconteceu com o jogador Igor Carius no processo que corria na Justiça Desportiva [14] no qual ele acabou sendo o único jogador absolvido [15]. Entretanto, após ser absolvido, inclusive em grau de recurso, pelo STJD, o mesmo STJD agora o suspende novamente em face do recebimento da denúncia no âmbito criminal, o que, no entanto, está em desacordo com a legislação em vigor. Expliquemos.

A suspensão prevista no artigo 35 do Código Brasileiro de Justiça Desportiva só pode acontecer dentro de um processo desportivo e não em decorrência de um processo que corre na Justiça Comum, principalmente quando já existe uma absolvição no âmbito desportivo.

No mais, como dito acima, uma decisão da Justiça Desportiva pode sim ser anulada pela Justiça Comum após o esgotamento da via administrativa devido ao fato do Brasil ter adotado o sistema de Jurisdição Una, porém um processo criminal da Justiça Comum não pode gerar a suspensão de um jogador pelo STJD principalmente em se tratando de um caso já julgado por esse último e que não tenha sido anulado.

Considerações finais
Possíveis manipulações de resultados em jogos de futebol devem ser punidas com o rigor da lei, devendo eventual acusado responder tanto na esfera desportiva como na esfera penal pelo mesmo fato.

Entretanto, não podemos confundir as esferas de responsabilização, de modo que um processo criminal não pode gerar a suspensão por parte da Justiça Desportiva de um atleta já julgado por essa última. Entendimento em sentido contrária gera uma grande insegurança jurídica em uma questão muito sensível, pois para os torcedores pode ser apenas um esporte, mas para o jogador estamos falando do exercício da sua profissão.

Enfim, que cada jogo seja jogado dentro da sua área de atribuição e nos termos da legislação em vigor.

 


Referências

ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de Direito Administrativo, 2ªed, Rio de Janeiro: Forense, 2013.

BRITO, Wladimir. Lições de Direito Processual Administrativo, 3ªed, Forte da Casa: Petrony, 2018.

MEIRELLES, Hely Lopes; FILHO, José Emmanuel Burle. Direito Administrativo Brasileiro, 42ªed, São Paulo: Malheiros, 2016.

PROENÇA, Fabriccio Quixadá Steindorfer. A justiça Administrativa em perspectiva comparada, Revista da AGU, N 40 (2016), pp168-188. Disponível em: https://www.portaldeperiodicos.idp.edubr/dir eitopublico/articlee/view/2272.

PUPPIO, Vicente. J. Teoría General del Processo. Caracas: Universidade Católica Andrés Bello, 1998

 


[4] ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de Direito Administrativo, 2ªed, Rio de Janeiro: Forense, 2013. 620. 

[5] BRITO, Wladimir. Lições de Direito Processual Administrativo, 3ªed, Forte da Casa: Petrony, 2018.p.20.

[6] PROENÇA, Fabriccio Quixadá Steindorfer. A justiça Administrativa em perspectiva comparada, Revista da AGU, N 40 (2016), pp168-188. Disponível em: https://www.portaldeperiodicos.idp.edubr/dir eitopublico/articlee/view/2272. p.173.

[7] ARAGÃO, Alexandre Santos de. Curso de Direito Administrativo, 2ªed, Rio de Janeiro: Forense, 2013. p.621.

[8] PUPPIO, Vicente. J. Teoría General del Processo, Caracas: Universidade Católica Andrés Bello, 1998.p.107.

[9] MEIRELLES, Hely Lopes; FILHO, José Emmanuel Burle. Direito Administrativo Brasileiro, 42ªed, São Paulo: Malheiros, 2016. p.59

[10] Idem, ibidem. p.59-60

[11] Constituição Brasileira: Art.5º, XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Artigo 92. São órgãos do Poder Judiciário: I – o Supremo Tribunal Federal; I-A o Conselho Nacional de Justiça; II – o Superior Tribunal de Justiça; II-A – o Tribunal Superior do Trabalho; III – os Tribunais Regionais Federais e Juízes Federais; IV – os Tribunais e Juízes do Trabalho; V – os Tribunais e Juízes Eleitorais; VI – os Tribunais e Juízes Militares; VII – os Tribunais e Juízes dos Estados e do Distrito Federal e Territórios.

[12] MEIRELLES, Hely Lopes; FILHO, José Emmanuel Burle. Direito Administrativo Brasileiro, 42ªed, São Paulo: Malheiros, 2016. p.61.

[13] Constituição Brasileira de 1988: Artigo 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados: §1º O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei.

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