Opinião

Composição de danos civis em infração penal de ação pública incondicionada

Autor

  • Paulo Roberto Santos Romero

    é promotor de Justiça titular do Jecrim de Belo Horizonte (MG) mestre e doutorando em Direito Penal Contemporâneo pela Universidade Federal de Minas Gerais ex-conselheiro do Conselho de Criminologia e de Política Criminal da Secretaria de Estado de Defesa Social do Estado de Minas Gerais.

7 de agosto de 2023, 6h36

É possível, nos Juizados Especiais Criminais (JECrim), a extinção da punibilidade por composição dos danos civis derivada de infrações penais de ação pública incondicionada?

No Capítulo III da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, a palavra conciliação aparece três vezes (artigos 60, caput, 73 e 79) e o vocábulo composição surge em cinco oportunidades (artigos 60, parágrafo único, 72, 74, 75, caput e 93) e, salvo no artigo 93, traz sempre o complemento "dos danos civis", indicando uma locução com sentido técnico específico.

Despontam, pois, duas noções próprias do JECrim: a) conciliação e composição não são expressões sinônimas; b) composição é "composição dos danos civis", acerto indenizatório (moral e/ou material) que pressupõe certezas do que se deve e do quanto é devido. Inexiste composição dos danos civis gratuita: compromissos morais estão no plano do autônomo, ao revés dos pactos jurídicos, que são heterônomos (com imperativas consequências, coercivamente exequíveis, caso sejam descumpridos). Dizer de composição, no JECrim, referida a uma pauta apenas ética é impróprio, porquanto a Justiça Penal (incumbida de processar e julgar fatos relevantes ao Direito Penal, cuja missão é a tutela de bens jurídicos), mesmo a marcada pela informalidade, jamais pode apenas se dedicar à palra estritamente imoral que culmina num mero aperto de mãos.

Assentadas essas bases, cabe agregar que o Enunciado Criminal 69 do Fórum Nacional dos Juizados Especiais (Fonaje) — "Deve ser tentada a conciliação (composição civil) visando atender ao princípio da pacificação social, mesmo transcorrido o prazo decadencial ou prescricional"foi substituído pelo Enunciado 74, no qual se lê: "A prescrição e a decadência não impedem a homologação da composição civil". Eis um indício de que, no JECrim (também concebido para desafogar toda a Justiça Estatal), a possibilidade de composição dos danos civis não se prende à permanência da ação penal (anteriormente existente) e, portanto, é alheia à sua natureza privada ou pública (incondicionada ou condicionada à representação).

Sobre os Enunciados Criminais do Fonaje (são 130), cabe ainda ressaltar: a) consistem em doutrina (não são vinculantes, portanto); b) a equivalência da "conciliação" à "composição civil" não subsiste por força da integral substituição do Enunciado nº 69 pelo de nº 74; c) não fazem uma única menção sequer à pacificação social (a qual também se faz ausente nos 173 Enunciados Cíveis e nos 16 da Fazenda Pública) [1].

Se, por um lado, a pacificação social nem consta na Lei nº 9.099/1995 nem é mencionada em quaisquer dos Enunciados do Fonaje, por outro lado, a práxis judicial desempenhada no JECrim parece acolhê-la e a sua utilização tem se evidenciado proveitosa (segundo a sua própria designação). Porém, em nome da segurança jurídica (crucial ao Estado Democrático de Direito), a doutrina não há de afastar a lei, máxime quando a norma não é injusta ou órfã de razoabilidade e de proporcionalidade.

Cabe, então, perquirir: onde e como encontrar a resultante hermenêutica, neste emaranhado de conceitos, prestadia à indagação inicial?

A primeira premissa, pragmática por ajustar a norma com a técnica, acolhe a presença implícita [2] da pacificação social entre os critérios explícitos regentes do JECrim: ela os reforça e funciona muito bem quando os envolvidos se entendem, independentemente de pagamentos ou do cumprimento de obrigações de fazer ou de não fazer.

Depois, acolhida a validade da pacificação social, cabe reconhecer a conciliação como gênero compreensivo de duas subespécies: a composição dos danos civis (indenizações) e a pacificação social (consenso desvestido de onerosidade). Se a composição dos danos civis resultar exitosa (i.e., desde formalizada por acordo homologado), ela tanto acarreta a imediata renúncia ao direito de queixa ou de representação (artigo 74, parágrafo único) quanto terá eficácia de título a ser executado no juízo civil competente (artigo 74, caput).

A terceira premissa não questiona a distinta natureza jurídica da composição dos danos civis e da transação penal, mas sem embargo de serem institutos jurídicos diversos, não nega que, em comum, ambos integram a jurisdição negocial exercitada no JECrim, além do que mitigam o princípio da obrigatoriedade da ação penal (pela ótica do Ministério Público) [3] e obstam a prolação de sentença meritória (sob a perspectiva do Poder Judiciário).

Os dois institutos jurídicos, em síntese, consubstanciam acordos jurídicos, com a diferença de que a transação penal (artigo 76 da Lei nº 9.099/1995) se dá entre o Ministério Público e o autor do fato, enquanto a composição dos danos civis (artigo 74 da mesma lei) é realizada entre ele e o ofendido ou o seu representante legal.

Se a transação penal comporta a aplicação do artigo 45, § 1º, do Código Penal (CP), por conseguinte — sobretudo em uma Justiça negocial marcada pela informalidade (i.e., pela flexibilização racional e razoável da norma positivada) —, soa contrassenso impedir, tão-só em razão de quem empreende a tratativa indenizatória, o pagamento cabível à vítima (ou a seus dependentes ou a entidade pública ou privada com destinação social), de importância fixada por ela (ou por quem a representa) com o autor do fato, em acordo fiscalizado pelo Ministério Público e homologado pelo Poder Judiciário, seguida também da possibilidade de aquela mesma importância ser deduzida da pretensão reparatória cível, se coincidentes os beneficiários.

A próxima premissa toma a literalidade dos artigos 74 e 75 da Lei nº 9.099/1995. O caput do primeiro dispositivo não cinge a pertinência da composição dos danos civis apenas às infrações penais de ação privada ou pública condicionada à representação. O parágrafo único do mesmo artigo 74 é quem menciona essas ações, conferindo-lhes um efeito penal específico, derivado do acordo cível homologado: a renúncia ao direito à queixa ou à representação. Dos citados textos normativos não cabe extrair, a rigor, qualquer vedação à composição dos danos civis proveniente de infrações penais de ação pública incondicionada. Em complemento a essa ideia, o caput do artigo 75 retoma a referida composição alusiva às infrações penais de ações privadas ou públicas condicionadas à representação, prevendo a ocorrência inversa, ou seja, a sua frustração; nesses casos, abre-se a imediata oportunidade ao ofendido de exercitar a representação verbal[4] e [5], que será reduzida a termo.

Cabe, agora, o desate da pergunta inicial. Tome-se uma audiência preliminar sobre o artigo 42 da Lei das Contravenções Penais (perturbação do sossego alheio), cuja ação é pública incondicionada. Imagine-se que a vítima já não quer providência criminal, porque entre os fatos e a audiência, o autor emendou a sua conduta: nada impede, aqui, a pacificação social, e o feito é encerrado. Suponha-se, agora, esta possibilidade: o ofendido dispensa medida penal desde que o autor lhe indenize os gastos com o isolamento acústico que lhe livrou do desassossego [6].

Como resolver esse último caso, o qual se reconduz àquela pergunta inaugural? A melhor resposta parece estar no aproveitamento sucessivo da pacificação social e da composição dos danos civis: aplica-se a pacificação social e homologa-se o acordo civil (no qual deve haver a previsão de acolhida do artigo 45, § 1º, CP), dispensando o autor do fato da transação penal com medida pecuniária revertida em favor da vítima. Trata-se, pois, de bom emprego do princípio penal da ultima ratio, bastante caro ao JECrim.

De resto, o seguinte alerta é irrenunciável: os efeitos emanados da composição dos danos civis (eficácia de título a ser executado no Juízo civil competente e a renúncia ao direito de queixa ou representação) não têm de ser necessariamente cumulativos, salvo para as infrações de ação penal privada ou pública condicionada. Com efeito, nas infrações cuja natureza da ação penal é pública incondicionada, aqueles mesmos efeitos — e não requisitos da composição dos danos civis — nunca se entrelaçam de forma indecomponível.

Aquelas consequências jurídicas decorrentes da composição dos danos civis jamais podem ser assimiladas como degraus ou como etapas imprescindíveis do acesso de uma à outra, além do que não se vinculam mediante relação de meio e fim ou por qualquer outro modo indutor de dependência recíproca. São completamente independentes, em suma. Pela própria natureza da actio, a representação ou a queixa são alheias às ações públicas incondicionadas, mas nelas, resta garantida, a bem dos envolvidos e da economia do aparato de Justiça (visto em sua inteireza), a possibilidade composição dos danos civis [7].

Vale dizer: a chancela judiciária timbrada sobre a pacificação social não exclui a possibilidade de tentativa de composição dos danos civis, com homologação judicial do acordo que dele foi derivado. A presença de registros, numa mesma ata de audiência preliminar, alusivos à resolução de um conflito cujo fato poderia configurar uma infração penal de ação pública incondicionada, nos quais restam formalizados tanto o sucesso da pacificação social quanto o êxito de uma composição dos danos civis (com acordo devidamente homologado), nada tem de irregular.

Essa mesma ata demonstra, do ponto de vista jurídico-processual penal, que a tentativa de aplicação sucessiva e independente da pacificação social e da composição dos danos civis, quando razoável, nem conflita com a lei nem prejudica os envolvidos e a própria Justiça, sobretudo se vista em sua inteireza.

A soma da pacificação social e da composição dos danos civis "apenas" integraliza a conciliação, realidade que resta corroborada quando aplicadas em conjunto [8]. Fosse diferente, o critério da pacificação social não teria lugar no JECrim, cuja funcionalidade é, precisamente, render efetividade à Justiça negocial. Portanto, eliminar o referido critério das possibilidades conciliatórias do JECrim anula o próprio sentido existencial desse último. E isso seria, como de fato é e afinal de contas, um contraproducente desatino.

 


[1] Disponível em: https://www.cnj.jus.br/enunciados-criminais/. Acesso em 26 jul. 2023.

[2] Melhor seria tratá-la não como princípio (como outrora fizera o FONAJE), mas como critério, evitando seja a pacificação social percebida como mais relevante do que aqueles parâmetros postos nos arts. 2º e 62 da Lei nº 9.099/1995.

[3] A lei do JECrim é anterior a outras com meios de convenção realizados com autores de fatos penalmente relevantes mais graves às infrações penais de menor potencial ofensivo (v.g., colaboração premiada, acordo de não-persecução penal, além da eficácia muitas vezes reconhecida na realização e cumprimento de termo de ajustamento de conduta). Esse novo panorama normativo, posterior à Lei nº 9.099/1995, impõe exegese sistemática mais abrangente sobre as possibilidades jurídicas dos acordos próprios do microcosmo informal, simples, célere e processualmente econômico, conferentes de efetividade ao JECrim.

[4] O fracasso da composição dos danos civis, que abre imediata oportunidade ao ofendido de exercer o direito de representação verbal, somente extingue a punibilidade no caso de audiência preliminar havida após o prazo de decadência. Inversamente, com fundamento na norma processual expressa (parágrafo único do art. 75, responsável por fechar coerentemente o ciclo de hipóteses concebidas pela própria lei), se o ofendido ou seu representante legal não quiser, imediatamente, representar contra o autor do fato, obstada fica a transação penal (ou a denúncia), cabendo esperar, antes do decreto extintivo da punibilidade, a completa fluência do prazo decadencial.

[5] A lei não diz "imediato oferecimento de queixa" e, assim, evita a perempção.

[6] V.g., a receptação culposa (art. 180, § 3º, do CP), quando o autor ressarce à vítima todo o valor do bem material. Se o patrimônio privado é normalmente disponível, se no CP existem supostos assim (art. 182) e se o estelionato (crime patrimonial, tal como a receptação culposa) sequer é de menor potencial ofensivo (vide arts. 171, § 5º, do CP e 61 da Lei nº 9.099/1995) e, ainda assim, em regra, exige representação para o seu processamento, não soa desproporcional a presente solução. Ela, pelos mesmos motivos, também é cabível, aliás, para o crime do art. 176 do CP (Outras fraudes).

[7] A Lei nº 9.099/1995 exige, em seu rito processual, seja dada ao autor do fato a chance da composição dos danos civis nas infrações penais de ação privada ou pública condicionada à representação, pois, acordada, extingue a punibilidade. Porém, a falta de tentativa daquela composição aos envolvidos em infração penal de ação pública incondicionada não gera nulidade por inobservância do devido processo legal.

[8] Não há óbice à composição dos danos civis entre envolvidos em fato penalmente relevante com ação pública incondicionada, segundo a doutrina do Enunciado 74 do Fonaje. Nessas hipóteses, a composição não obsta a transação penal ou o oferecimento de denúncia, circunscrevendo seus efeitos à compensação realizada na jurisdição cível, seja para abater montantes pretendidos em ações em curso seja para obstar, com desafogo do judiciário, o ingresso de ação reparatória (nas hipóteses em que o quantum debeatur for esgotado no acordo homologado no JECrim). Graças ao art. 45, § 1º, do CP, nada muda, pois, nas ações civis ex delicto derivadas de infrações penais cuja ação penal é de natureza pública incondicionada.

Autores

  • é promotor de Justiça titular do JECrim de Belo Horizonte (MG), mestre e doutorando em Direito Penal Contemporâneo pela Universidade Federal de Minas Gerais, ex-conselheiro do Conselho de Criminologia e de Política Criminal da Secretaria de Estado de Defesa Social do Estado de Minas Gerais.

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