Opinião

Guerra às drogas falhou. Liberais já sabiam

Autores

  • Felipe Figueiredo Gonçalves

    é sócio na Madruga BTW especialista Direito Penal Econômico e Empresarial ex-coordenador do Laboratório de Empresas Nascentes de Tecnologia (Lent) no Grupo de Ensino e Pesquisa em Inovação (Gepi) da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo (FGV-SP) colaborador do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e mestre em Direito e Desenvolvimento pela Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP).

  • Rafael Arcuri

    é advogado consultor na Madruga BTW diretor executivo da ANC (Associação Nacional do Cânhamo Industrial) especialista em Direito Regulatório mestre em Direito e Políticas Públicas pelo UniCeub doutorando em direito pela UnB e secretário-geral da Comissão do Direito à Cannabis Medicinal e ao Cânhamo Industrial da OAB-DF.

4 de agosto de 2023, 6h06

A guerra às drogas falhou — o que não surpreende e tem sido reconhecido pelos seus próprios protagonistas. A falência do modelo proibicionista é um exemplo de um intervencionismo frustrado, cujos resultados, quando medidos, se distanciam daqueles previstos no momento de formulação da política pública.

Mesmo com recursos imensuráveis dispendidos pelos estados ao redor do mundo, a guerra às drogas propiciou o surgimento de grupos beneficiados pela criação de um novo mercado — o do tráfico de drogas — e, ao mesmo tempo, não gerou impactos minimamente significativos no controle do consumo de entorpecentes. Diante da gritante falência desse modelo violento e intervencionista, não seria a hora de entreter uma agenda liberal?

No Brasil, a Lei nº 11.343, de 2006, estabelece o Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas. E o Sisnad tem, entre suas atribuições: prevenir o uso indevido de drogas, reprimir a produção não autorizada e o tráfico ilícito e reinserir socialmente os usuários e dependentes. Apesar disso, o Brasil perde, pelo menos, "R$ 50 bilhões por ano em decorrência da proibição do uso de drogas e repressão ao tráfico" e o tempo de vida perdido como consequência dos homicídios relacionados a drogas chega a 1,14 milhão de anos [1].

Qualquer que seja a métrica utilizada para verificar a eficácia dessa política pública, é seguro dizer que ela falhou de forma absoluta. Contudo, essa falha não foi desavisada, e a história já nos havia mostrado que o caminho do intervencionismo como forma de repressão do consumo de substâncias não é capaz de alcançar o objetivo de restringir o comportamento do consumidor e suas consequências indesejadas.

Escrevendo durante a Lei Seca nos Estados Unidos (1920 a 1933), Mises aborda a questão da proibição das drogas de uma maneira liberal. E assim o faz não para negar os danos que o uso de substâncias como a cocaína, álcool, morfina causam, mas sim para considerar até que ponto se justifica a intervenção do Estado para controle dessas substâncias por meio de proibições ao comércio e consumo. Já àquela época se questionava se a intervenção estatal seria realmente capaz de suprimir esses usos, aventando-se o potencial de o modelo proibicionista trazer problemas ainda maiores, abrindo uma "caixa de Pandora de outros perigos".

Também naquela época, o final da Proibição da Lei Seca americana — ou seja, a reintrodução do comércio legal de bebidas alcoolicas — veio acompanhado de uma redução dos indicadores criminais, inclusive de crime organizado e da corrupção, empregos foram criados e iniciativas voluntárias de conscientização de consumo, como os alcoólicos anônimos, surgiram [2].

A proibição foi projetada para ser uma intervenção que geraria fartura econômica e moral. A expectativa era de que as prisões e asilos para pobres fossem desocupados, os impostos reduzidos e os problemas sociais resolvidos. A produtividade estava prevista para aumentar exponencialmente e o absenteísmo acabaria. A economia estaria a caminho de um crescimento contínuo.

No entanto, a proibição não conseguiu aumentar a produtividade nem diminuir o absenteísmo. Por outro lado, a regulação privada do consumo de álcool no contexto empresarial resultou em melhorias na produtividade, redução do absenteísmo e diminuição dos acidentes industriais, sempre que foi aplicada, seja antes, durante ou após a Proibição [3].

Mas as lições do fiasco da proibição estadunidense não foram aprendidas e também o consumo de outras substâncias entorpecentes passou a ser abordado pelo mesmo modelo, tentando impedir, pelo uso da força, que o consumo não ocorresse.

Desde o início da "guerra às drogas", patrocinada e entusiasmada por Richard Nixon nos anos 1970, o fluxo de cocaína para os Estados Unidos aumentou. A produção global atingiu um recorde de 1.982 toneladas em 2020 e esse recorde acontece apesar de décadas de esforços extenuantes e dispendiosos para cortar o fornecimento. Durante 2000 a 2020, os EUA investiram US$ 10 bilhões na Colômbia para combater a produção de coca, financiando as forças armadas locais para erradicar as plantações. No entanto, a produção apenas se movia para outras áreas quando eliminada em um local [4].

Quase cem anos depois da publicação de Liberalismo: Segundo a Tradição Clássica e do final da Lei Seca nos Estados Unidos, Laurence Vace, Peter Schiff e Gary North publicaram artigos abordando diferentes motivos que levaram ao fracasso da guerra às drogas e as consequências não intencionais do modelo proibicionista.

Para os autores, a guerra às drogas não conseguiu impedir o abuso de substâncias, não reduziu a demanda, não conseguiu acabar com a violência associada ao tráfico e obstaculizou o tratamento adequado às pessoas, inclusive da perspectiva do suporte médico.

Além dessa ineficácia, a regulação gerou vários efeitos secundários indesejados que se somaram ao problema do abuso de substâncias em si. Entre eles, a congestão do sistema judiciário e o aumento da população carcerária, a corrupção das instituições do sistema de justiça criminal e diminuição das liberdades civis, o desperdício de bilhões em impostos, a canalização da mão de obra para mercados paralelos, como o tráfico de drogas, e a consequente violência associada a esses mercados.

Em outra ponta, as recentes experiências de (re)legalização da cannabis têm apresentado indicadores semelhantes ao período pós Lei Seca, nos EUA: não há indicativos de aumento do consumo de cannabis, foram gerados milhares empregos e se permitiu significativa arrecadação estatal sobre um mercado até então clandestino, representativo de fontes exclusivamente de despesas.

Uma extensa pesquisa realizada com mais de 800 mil pessoas em quase dez anos de duração não identificou aumento no consumo de cannabis nos estados americanos pós legalização [5]. O mesmo foi observado no caso de adolescentes, que não aumentaram o uso após a legalização [6]. Ou seja, tanto de um ponto de vista de saúde pública, como da perspectiva moral, modelos alternativos ao intervencionismo proibicionista têm se mostrado promissores.

Os estados que legalizaram o consumo de cannabis passaram a arrecadar impostos e movimentar o mercado legal. Somente no estado da Califórnia, desde janeiro de 2018, a receita total de impostos sobre a cannabis, até 2022, foi de US$ 4,6 bilhões [7]. E, apesar de ter tido um ano ruim em 2022, estima-se que o mercado legal de cannabis nos EUA atinja mais de 31,8 bilhões de dólares em vendas anuais no final de 2023, podendo chegar em US$ 50,7 bilhões em vendas anuais até 2028 [8].

Para se ter uma dimensão do tamanho desse mercado, os americanos, em 2022, gastaram mais com a compra legal de cannabis do que a compra de chocolates ou cerveja [9].

O que vemos com a intervenção governamental para controle do consumo de drogas é que ela favoreceu um grupo específico de pessoas em detrimento de todo o resto da população. O judiciário está congestionado e a população carcerária é muito maior do que deveria ser. Liberdades individuais foram cerceadas, com bilhões em impostos e investimentos na instrumentalização do aparato de violência estatal foram desperdiçados — um caso clássico de alocação ineficiente dos recursos, gerando efeitos indesejados e, ao mesmo tempo, sendo ineficaz em seu objetivo originário.

O Brasil passa por um momento de escassez de recursos públicos e grande dívida interna. Manter o financiamento de uma guerra às drogas significaria continuar gastando recursos em uma política pública que se mostrou completamente ineficiente e, ao mesmo tempo, deixar de gerar os recursos que o mercado legal traria.

Parece ser o momento ideal para racionalizar nosso relacionamento com a proibição das drogas, o que, no Brasil, pode ser impulsionado pelo julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 635.659, pelo Supremo Tribunal Federal, que definirá a constitucionalidade da estratégia de criminalização do porte de drogas para consumo próprio.

 


[1] FOLHA DE S.PAULO. Proibição do uso de drogas e repressão geram custo anual de R$ 50 bi, diz Ipea. São Paulo, 2023. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/06/proibicao-do-uso-de-drogas-e-repressao-geram-custo-anual-de-r-50-bi-diz-ipea.shtml. Acesso em: 25 jun. 2023.

[ii] THORNTON, Mark. Alcohol Prohibition Was a Failure. Cato Institute, 17 jul. 1991. Disponível em: https://www.cato.org/policy-analysis/alcohol-prohibition-was-failure#conclusion-lessons-for-today. Acesso em: 25 jun. 2023.

[3] THORNTON, Mark. Alcohol Prohibition Was a Failure. Cato Institute, 17 jul. 1991. Disponível em: https://www.cato.org/policy-analysis/alcohol-prohibition-was-failure#conclusion-lessons-for-today. Acesso em: 25 jun. 2023.

[4] THE ECONOMIST. Joe Biden is too timid: it is time to legalise cocaine. The Economist, 12 out. 2022. Disponível em: https://www.economist.com/leaders/2022/10/12/joe-biden-is-too-timid-it-is-time-to-legalise-cocaine. Acesso em: 18 jun. 2023.

[5] PEREIRA, I. "Marijuana use did not climb following legalization in states: Study". ABC News, 2021. Disponível em: https://abcnews.go.com/US/marijuana-climb-legalization-states-study/story?id=80265523. Acesso em: 23 jun. 2023.

[6] MPP. "Teen Marijuana Use Does Not Increase Following Marijuana Policy Reforms". MPP, 2023. Disponível em: https://www.mpp.org/issues/legalization/teen-marijuana-use-does-not-increase/. Acesso em: 23 jun. 2023.

[7] CALIFORNIA DEPARTMENT OF TAX AND FEE ADMINISTRATION. Total cannabis tax revenue increases to $4.6 billion. Disponível em: <https://www.cdtfa.ca.gov/news/23-02.htm>. Acesso em: 26 jun. 2023.

[8] DORBIAN, Iris. Despite Some Stumbles, Total Sales In US Cannabis Market Could Soar To $50.7 Billion By 2028, Says Top Researcher. Forbes, 15 fev. 2023. Disponível em: https://www.forbes.com/sites/irisdorbian/2023/02/15/despite-some-stumbles-total-sales-in-us-cannabis-market-could-soar-to-507-billion-by-2028-says-top-researcher/?sh=17e995b7164d. Acesso em: 26 jun. 2023.

[9] MION, Landon. Americans spent more on legal cannabis in 2022 than chocolate, beer: report. Fox Business, 24 abr. 2023. Disponível em: https://www.foxbusiness.com/economy/americans-spent-more-legal-cannabis-2022-chocolate-beer-report. Acesso em: 24 jun. 2023.

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