Opinião

A inconstitucionalidade do aumento do IPVA de 2023 no Amazonas

Autor

  • Laécio Pereira Mineiro

    é advogado tributarista professor-assistente de Direito Tributário na graduação em Direito da PUC-SP assistindo o professor dr. Paulo de Barros Carvalho e mestrando em Direito Tributário pelo Ibet.

2 de agosto de 2023, 20h46

O IPVA (imposto sobre a propriedade de veículos automotores) é de competência estadual e está previsto no artigo 155, III, da Constituição Federal.

Ao emitir suas guias para recolhimento do IPVA de 2023, muitos amazonenses têm se assustado com o aumento, que, em alguns casos, pode ser de quase 40%.

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Procura-se demonstrar aqui, a partir de uma análise com base na regra-matriz de incidência tributária (RMIT) do IPVA, que parte do aumento aplicado pelo Estado no ano de 2023 para veículos automotores usados é inconstitucional.

Uma das formas de entender a regra-matriz de incidência tributária é como um instrumento de análise da norma, pela qual avalia-se os critérios que a compõe, sendo eles, no antecedente da norma, o critério material, critério temporal e o critério espacial; e no consequente da norma o critério quantitativo e critério pessoal, a fim de saber se determinado fato subsome-se à norma jurídica tributária.

Para melhor compreensão, faz-se necessário abordar os três primeiros critérios, que compõem o antecedente e que servem para indicar os fatos sujeitos à tributação. 

O critério material indica o comportamento do sujeito que, uma vez ocorrido em combinação com os demais critérios, possibilitará a incidência do tributo. A descrição desse comportamento indicado no critério material sempre se dará por um verbo e um complemento. No caso do IPVA, o critério material é "ser proprietário de veículo automotor".

O critério temporal, por sua vez, é "um conjunto de signos que nos permitem estremar o exato instante da ocorrência da conduta descrita no critério material" [1], logo ele serve para indicar se o momento em que o critério material ocorreu permite a incidência da norma.

Já o critério espacial é explicado por Lucas Galvão de Britto como "feixe de enunciados, implícitos ou explícitos, aptos a auxiliar o intérprete na identificação dos marcos espaciais que devem ser empregados para atribuir um lugar ao fato jurídico tributário" [2]. Portanto, o critério espacial aponta onde a conduta descrita no critério material deve ocorrer para permitir a incidência da norma tributária.

Nesse contexto, é correto afirmar que somente será válida a incidência da norma tributária (e, portanto, a exigência do tributo) se o evento que se pretende tributar preencher os três critérios simultaneamente. Em outras palavras, o tributo só incidirá sobre o comportamento que ocorrer no local e momento indicado pela regra-matriz de incidência tributária.

A norma do artigo 148-B, II, do Código Tributário do Estado do Amazonas, prescreve que o critério temporal para automóveis usados é o dia 1º de janeiro, enquanto a norma da segunda parte do artigo 148, também CTE/AM, determina que o critério territorial é o Estado do Amazonas. Com base nessas normas, pode-se dizer que, no Estado do Amazonas, o IPVA incide sobre o fato de ser proprietário de veículo automotor que esteja inscrito no Estado do Amazonas no dia 1 de janeiro.

O aumento incomum do aludido imposto é consequência da majoração da base de cálculo, motivada pela da correção dos valores dos automóveis usados, e da majoração da alíquota efetivada por intermédio da Lei Complementar Estadual nº 242, de 29 de dezembro de 2022.

O primeiro aumento a ser comentado é o relativo à base de cálculo.

A base de cálculo é um dos componentes do critério quantitativo da regra-matriz de incidência tributária. Ela representa a grandeza sobre a qual, aplicando-se a alíquota (outro componente do critério quantitativo), encontra-se o valor do imposto devido. No caso do IPVA, a base de cálculo é o valor venal do veículo automotor, nos termos da norma do artigo 151, do Código Tributário do Estado do Amazonas. O texto do §2º, também do artigo 151, contém a regra para determinação do valor venal do veículo usado:

"§2º No caso de veículo usado, o valor venal será o apurado com base nos preços médios praticados no mercado, pesquisados em publicações especializadas e na rede revendedora, observando-se a potência, a capacidade máxima de tração, o ano de fabricação, o peso, a cilindrada, o número de eixos, o tipo de combustível, a dimensão e o modelo do veículo."

Importa esclarecer que a lei complementar estadual nº 242/2022 não modificou a base de cálculo. O aumento da base de cálculo do IPVA ocorreu em decorrência da valorização dos carros usados nos últimos anos, desde que a pandemia prejudicou a cadeia produtiva de microchips, componentes essenciais para produção de automóveis novos, o que os encareceu demasiadamente, fazendo aumentar a procura por carros usados e, consequentemente, inflacionando seus preços.

Para se ter uma ideia, pesquisas indicam que os carros usados se valorizaram mais de 17% desde a pandemia. Com isso, um carro que, antes da pandemia, tinha o valor venal de R$ 50 mil, chegou a custar R$ 58.500,00, e, consequentemente, a base de cálculo do IPVA sofreu o mesmo aumento.

Contudo não há nenhuma ilegalidade nesse aumento da base de cálculo, já que foi apenas um ajuste de mercado e não um aumento legislativo. A rigor, há muito tempo a jurisprudência já pacificou que o ajuste da base de cálculo do IPVA não precisa se dar por meio de lei. Assim decidiu o STJ:

"TRIBUTÁRIO. IPVA. TABELA DE VALORES. CORREÇÃO EFETUADA POR RESOLUÇÃO ADMINISTRATIVA. INALTERADA A BASE DE CÁLCULO E O FATO GERADOR PREVISTOS NA LEI ESTADUAL DO RIO DE JANEIRO. CAPACIDADE CONTRIBUTIVA DO CONTRIBUINTE DEVIDAMENTE OBSERVADA (ARTIGO 145, §1º, DA CF). LEGALIDADE. QUESTÕES NÃO VENTILADAS NA ORIGEM NÃO PODEM SER APRECIADAS, SOB PENA DE SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. PRECEDENTES DO STF E DO STJ.
1. A correção da tabela de valores no ano da cobrança do tributo não implica violência aos princípios insculpidos na Constituição Federal, uma vez que prevalecem o fato gerador, a base de cálculo e as alíquotas previstas na legislação estadual que instituiu o IPVA. A simples correção da tabela não tem o condão de modificar o fato gerador e a base de cálculo.
[…]
5. Recurso conhecido, porém, improvido. (RMS nº 8.309/RJ, relatora ministra Laurita Vaz, Segunda Turma, julgado em 28/8/2001, DJ de 8/10/2001, p. 189)."

No mesmo sentido decidiu o STF:

"IPVA – TABELA DE VALORES – CORREÇÃO. A correção da tabela de valores no ano da cobrança do tributo não implica violência aos princípios insculpidos na Constituição Federal. Prevalecem o fato gerador, a base de cálculo e as alíquotas previstas na legislação estadual editada com observância aqueles princípios. A simples correção da tabela não modifica quer o fato gerador, quer a base de cálculo, no que se revelam como sendo a propriedade do veículo e o valor deste.
(AI 169370 AgR, relator(a): MARCO AURÉLIO, Segunda Turma, julgado em 27/10/1995, DJ 02-02-1996 PP-00861  EMENT  VOL-01814-04 PP-00675)."

Quando se trata de aumento de alíquota, a situação é outra. A norma de majoração da alíquota deve estar veiculada por lei, em razão do disciplinado no artigo 150, inciso I, da Constituição.

Muito embora a alíquota não seja matéria reservada à lei complementar, no caso do Amazonas a alíquota do IPVA está disposta no Código Tributário do Estado, a Lei Complementar nº 19, 29 de dezembro de 1997, e isso explica a escolha do legislador amazonenses em alterar a alíquota também por lei complementar. Assim não abre margem para a velha discussão a respeito da possibilidade de alteração de lei complementar por lei ordinária em matéria sem reserva legal.

A Lei Complementar Estadual nº 242/2022 alterou os incisos do artigo 150 do CTE/AM, aumentando as alíquotas de quase todos os veículos automotores. De modo geral, os veículos de passeio e motocicletas acima de 1.000 cilindradas, tiveram o aumento da alíquota 3% para 3,5%. O aumento de 0,5 pontos percentuais resulta em uma majoração de 16,66% da alíquota.

Voltando ao exemplo do veículo de R$ 50 mil, o IPVA dele no ano de 2020 foi de R$ 1.500,00 (50 mil x 3%). Contudo, com a valorização dos veículos usados, que culminou no aumento da base de cálculo, e com majoração da alíquota, em 2023 o IPVA desse mesmo veículo passou a ser R$ 2.047,50 (58.500 x 3,5%), o que representa um aumento de 36,5% do imposto devido.

A constitucionalidade desse aumento pode até ser questionada à luz dos princípios da razoabilidade e do não confisco, contudo se enveredaria para discussões mais subjetivas a fim de saber o que razoável e qual o limite para se afirmar que o tributo tem caráter confiscatório. Em vez disso, aponta-se uma inconstitucionalidade mais clara, atinente ao princípio da anterioridade nonagesimal, ou, como alguns preferem chamar, princípio da noventena.

A anterioridade nonagesimal está prevista na norma do art. 150, inciso III, alínea "c", da Constituição e proíbe que os entes federados cobrem tributos "antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou". Existem exceções a esse princípio, mas o aumento da alíquota do IPVA não é uma delas.

Em razão do princípio da noventena, o Estado do Amazonas poderia cobrar o IPVA com a nova alíquota aumentada somente após os noventa dias da publicação da lei complementar nº 242/2022, que ocorreu em 29/12/2022. Assim, a nova alíquota somente passou a valer em 29/03/2023.

Ao fazer uma análise desatenta, alguém poderia concluir então que o IPVA com a alíquota de 3,5% poderia ser cobrado daqueles cujo vencimento do mencionado imposto ocorrer após o dia 29/03/2023. Mas não é bem assim.

O princípio anterioridade nonagesimal proíbe a incidência da nova norma que aumente o tributo sobre fatos jurídicos que ocorrerem em menos de noventa dias de sua publicação. Contudo, como esclarecido nas linhas preliminares, o critério temporal da regra-matriz do IPVA no Estado do Amazonas é o dia 1º de janeiro e é esse critério que "vai marcar o instante da realização do fato" [3].

Isso significa que para todos os veículos automotores usados, o fato jurídico que levou à incidência do IPVA em 2023 (ser proprietário de veículo automotor registrado no Estado do Amazonas) ocorreu no dia 01/01/2023, apenas quatro dias depois da publicação da lei majoradora da alíquota do imposto em destaque.

Isso significa que para os veículos automotores usados, a nova alíquota de 3,5% ainda não poderia ser cobrada, uma vez que na data da realização do fato jurídico (que alguns preferem chamar de "fato gerador") a alíquota vigente era a antiga, de 3%. 

É certo que a Resolução GSEFAZ/AM nº 49/2022 estabelece um calendário de vencimento da guia de recolhimento do IPVA de acordo com a placa do veículo, de modo que o IPVA no Estado do Amazonas vence somente depois de 29/03/2023. Contudo isso não torna o aumento da alíquota constitucional para esses casos, pois trata-se de mero prazo para recolhimento.

Contudo a data de vencimento do tributo é irrelevante para regra-matriz de incidência tributária e, consequentemente, para a incidência da norma. O que importa é a data da realização do fato jurídico, na questão em análise, o dia 1º de janeiro. E como no dia 1º de janeiro a norma com vigência técnica era a antiga, com alíquota menor, é inconstitucional a cobrança do IPVA com alíquota aumentada no ano de 2023 para os veículos automotores usados.

 


[1] PIRES, Cristiane. O tempo e o tributo: estudo semiótico do critério temporal da regra-matriz de incidência tributária. São Paulo: Noeses, 2019.p. 133

[2] BRITTO, Lucas Galvão. de. O Lugar e o Tributo: Ensaio Sobre Competência e Definição do Critério Espacial na Regra-Matriz de Incidência Tributária. São Paulo: Noeses, 2014. P. 124.

[3] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: Fundamentos jurídicos da incidência. São Paulo: Noeses, 2015. p. 179.

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