Opinião

Clone virtual: uso da imagem de pessoa falecida por algoritmos de IA

Autor

  • Alexandre Freire Pimentel

    é professor doutor da Unicap (Universidade Católica de Pernambuco) da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e desembargador do TJ-PE (Tribunal de Justiça de Pernambuco).

1 de agosto de 2023, 13h19

Este artigo propõe-se a analisar as repercussões jurídicas do uso de técnicas de inteligência artificial, por de deep fakes, hologramas e outras ferramentas tecnológicas, capazes de criar clones virtuais humanos mediante a reprodução de imagens, voz e gestos de pessoas mortas em contextos não vivenciados por elas, bem como a diagnosticar a questão da possibilidade de transmissibilidade dos direitos da personalidade, com foco na clonagem algorítmica, no âmbito da herança digital, diante das disposições do Código Civil, da Lei nº 9.610/1998 e do Projeto Lei nº 2338/2023 (Marco Regulatório da IA).

Questionando se os robôs seriam, ou não, criaturas vivas, Yuval Harari conclui que a resposta "depende do que entendemos por criaturas vivas". "Mas elas certamente foram criadas a partir de um novo processo evolutivo, completamente independente das leis e limitações da evolução orgânica." [1]

Para Martine Rothblatt, o uso da superinteligência artificial inaugurará a era dos "doppelgängers" digitais. Doppelgänger, segundo a lenda germânica, é um ser mítico que possui a capacidade de apresentar-se como uma cópia idêntica de uma determinada pessoa livremente escolhida por ele, e, segundo a fábula, cada pessoa tem um doppelgänger, uma espécie de clone virtual.

No mundo virtual, os clones digitais podem perpetrar um fenômeno novo: o da imortalidade algorítmica, pois, uma vez clonada determinada pessoa, ela permanecerá na rede e, até mesmo, na vida social física, mesmo após a sua morte, interagindo com os demais usuários da Internet como um ser ciberconsciente [2]:

Os clones mentais estarão entre os primeiros seres ciberconscientes, eles usarão mecanismos computadorizados para falar, usando os tons de voz e as representações visuais dos maneirismos faciais dos humanos, quer se trate de um rosto humano em uma tela de computador de alta definição, quer de uma réplica impressa em três dimensões de uma pessoa, como BINA48[…] [3].

Essa perspectiva de uma busca pela eternidade, ou a não conformação com a morte, remete aos fantasmas de Kafka: "Os fantasmas não morrerão de fome, mas nós afundaremos", que são retomados por Byung-Chul Han em seu No Enxame: Perspectivas do Digital, obra na qual o autor coreano contextualiza essa problematização de Kafka na era digital, para concluir que, além de imortais, eles, os fantasmas digitais, são ainda mais vorazes, indo para além da forma humana e se capacitando para se comunicarem entre si sem a participação humana.

Com efeito, o fato representa uma verdadeira catástrofe humanista. O risco de uma desumanização pode ser reforçado por outros exemplos de clones virtuais, como os robôs do japonês Hiroshi Ishiguro, professor da Universidade de Osaka, que trabalha com o desenvolvimento de androides há mais de 16 anos e concebeu um robô à sua imagem e semelhança (o Geminoid).

Em março de 2023, a China apresentou ao mundo uma jornalista virtual chamada Ren Xiarong, que atua no jornal estatal People's Daily, na função de âncora, repassando notícias durante todo o dia. Segundo a própria Ren, "Milhares de âncoras de notícias transmitiram suas habilidades profissionais para mim. Por 365 dias, estarei relatando notícias, 24 horas por dia, sem descanso" [4].

Todo esse avanço tecnológico proporcionou o surgimento de fatos novos e de protestos de resistência acerca do direito ao uso da imagem de pessoa falecida, seja através de consentimento expresso da pessoa enquanto viva, seja por meio de seus herdeiros após a sua morte.

A respeito do assunto, Sílvio Romero defende que "[…] pode-se concluir que, com a morte da pessoa, extingue-se a sua personalidade. À pessoa sobrevivem, todavia, alguns bens, como o seu nome, a sua honra, a sua imagem, que podem também fazer parte do conjunto de interesses a serem conservados pelos seus parentes em nome da família; por isso, a eles são confiados o dever de proteção, recebendo do direito a legitimação processual" [5].

Com efeito, nos termos do artigo 11 do Código Civil, "[…] os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária", salvo se a lei dispuser de modo distinto. Nesse contexto, impõe-se a análise de disposições da Lei nº 9.610/1998, que regulamenta os direitos autorais e esclarece quando eles são transmissíveis.

Pois bem, de início, a alínea "e", do inciso VIII, do artigo 5º da Lei em questão, consigna que se considera obra póstuma aquela publicada após a morte do autor. Depois, o inciso IV do artigo 24 considera que são "direitos morais" do autor que se transmitem aos seus herdeiros e sucessores "o de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra".

A propósito, o Superior Tribunal de Justiça assentou, através do enunciado de nº 642 de sua súmula, que: "O direito à indenização por danos morais transmite-se com o falecimento do titular, possuindo os herdeiros da vítima legitimidade ativa para ajuizar ou prosseguir a ação indenizatória".

O STJ reitera que o que se transmite é o direito de "conservação" da imagem, da honra, bem como o de proteger a integridade de obra publicada ainda em vida ou mesmo póstuma e, por óbvio, o de salvaguardar os demais atributos da personalidade, mas não o de inovar digitalmente por meio de comportamentos ou de posicionamentos não adotados em vida pela pessoa falecida ou descontextualizados, em especial com finalidade lucrativa.

A questão remete ao instituto da denominada herança digital. A jurisprudência tem admitido que "a herança defere-se como um todo unitário, o que inclui não só o patrimônio material do falecido, como também o imaterial, em que estão inseridos os bens digitais de vultosa valoração econômica, denominada herança digital" [6].

A herança digital inclui apenas os bens que são economicamente valoráveis, isto é, aqueles que são transmissíveis com a observação da regra restritiva do artigo 11 do CC, independentemente do seu valor de mercado.

Dos dispositivos citados acima pode-se extrair, primeiramente, que a imagem da pessoa falecida, incluindo os clones virtuais, insere-se no âmbito dos direitos vitalícios da personalidade, os quais são intransmissíveis e irrenunciáveis, não se inserindo no contexto da denominada herança digital.

No entanto, aos herdeiros e sucessores transmitem-se os direitos morais e financeiros de obras autorais de pessoa falecida, ou seja, o de auferir rendimentos derivados de obra do de cujos, mas não o de usar a imagem, o corpo, a voz, o de fazer vídeos descontextualizados, o de usar hologramas, deep fakes ou tecnologias similares de Inteligência Artificial para fazer a pessoa falecida interagir em situações não vivenciadas, sobretudo com finalidade lucrativa dos herdeiros, isto malfere a regra do artigo 11 do Código Civil.

E mais, diante do caráter de irrenunciabilidade dos direitos da personalidade, nem mesmo a existência de testamento autorizativo da pessoa falecida é capaz de tornar lícito o uso post mortem da imagem, com toda essa amplitude derivada da algoritmização da pessoa finada, para além de experiências não vivenciadas ou que se choquem com as posições adotadas em vida pela pessoa falecida.

Noutra ótica, os herdeiros têm legitimidade para proteger em juízo os direitos conexos ou resultantes da personalidade de pessoa falecida, é esse direito que se transmite, isto é, o de proteger a imagem, a obra, enfim a personalidade de pessoa extinta, não o de ressuscitar o ente familiar por meio de clones virtuais.

Porém, considerando a latitude alcançada pela técnica da replicação digital, a qual outorga contornos de realidade virtual inimagináveis ao uso não só da imagem, mas da voz, do corpo, dos trejeitos, enfim da aparência reproduzidos através de hologramas, deep fakes etc., a questão que se impõe no momento atual há de enfrentar os limites éticos do direito dos herdeiros sobre o uso da imagem da pessoa falecida, pela recorrência a hologramas, deep fake ou técnica de IA similar para replicar a imagem, a fala, o corpo, gestos etc., de pessoa falecida.

A questão é urgente e impõe uma reflexão ética sobre a "brecha" deixada pelo artigo 11 do Código Civil, que, ao admitir exceções previstas em lei sobre a irrenunciabilidade e a intransmissibilidade dos direitos da personalidade, possibilita que lei formal possa relativizar a barreira protetiva aos direitos digitais personalíssimos. E isso nos remete à discussão do Projeto de Lei nº 2338/2023, que está a tramitar no Senado sobre a regulamentação do uso da inteligência artificial.

O caso do vídeo de Elis Regina cantando ao lado da sua filha, Maria Rita, numa campanha publicitária da Volkswagen impõe a necessária reflexão acerca de possível abuso de direito através da técnica de clones digitais [7].

O direito da personalidade de pessoa falecida há de ser respeitado pelos herdeiros e sucessores, tomando-se como baliza a história, as posições jurídicas, políticas, religiosas, ideológicas da pessoa falecida. Há que se admitir que, eventual relativização à proteção dos direitos digitais post mortem, nem sempre os herdeiros e sucessores agirão de boa-fé e que poderão ceder à tentação do capital na veiculação de campanhas não apenas publicitárias, mas, também, religiosas e políticas diametralmente opostas àquelas defendidas ou comungadas pela pessoa finada. Não foi por outro motivo que a cantora Madonna proibiu, através de testamento, o uso de sua imagem, voz e corpo por meio de hologramas e deep fakes, pelos seus sucessores e herdeiros [8].

O problema remonta ao ano de 2020, quando a imagem corporal e a voz da cantora Whitney Houston foram reproduzidas numa turnê póstuma através de um holograma, fato que "[…] gerou uma série de repercussões negativas" [9]. Em 2023 os roteiristas de Hollywood fizeram uma greve motivada, dentre outras razões, para garantir o estabelecimento de regras para o uso de conteúdo gerado por inteligência artificial (IA) para as plataformas de streaming, as quais "[…] não divulgam números de audiência e pagam aos atores a mesma taxa fixa, independentemente da audiência" [10].

Em suma, urge que o Congresso regulamente a matéria. O Projeto de Lei nº 2338/2023, em tramitação no Senado, nada dispõe sobre o uso da imagem de pessoa falecida manipulada pela IA, o que significa que, se aprovado como está, o projeto oferecerá uma Lei que já não estará em integral consonância com a evolução tecnológica e os danos que dela podem advir.  

Ao cabo, pode-se concluir que, se por um lado, a aprovação do PL nº 2338/2023, nos termos de sua redação atual, denunciará uma omissão legislativa sobre fenômeno tecnológico grave e recorrente, por outro lado, significará que a regra jurídica a incidir será a do artigo 11 do código civil, ou seja, a da vedação do uso de técnicas da inteligência artificial para ressuscitar algoritmicamente pessoa falecida, posto que a clonagem algorítmica refere a uma situação jurídica personalíssima não inserida no âmbito da herança digital.

 


[1] HARARI, Yuval Noah. Uma breve história da humanidade sapiens. Tradução: Janaína Marcoantonio. São Paulo: L&PM, 2017, p. 420.

[2] ROTHBLATT, Martine. Virtualmente humanos. As promessas – E os perigos – da imortalidade digital. Tradução: Jeferson Luiz Camargo. São Paulo: Cultrix, 2016, p. 69.

[3] A propósito, "BINA48" é a denominação utilizada para representar um robô mulher projetado para ser consciente. Assim como Sophia, BINA48 integra um gênero de robôs sociais que servirão como companheiros cibernéticos, dentre outras funções cognitivas que podem desempenhar. Esses robôs, que, aliás, pertencem à mesma empresa (Hanson Robotics), caracterizam-se como verdadeiros androides, porquanto possuem olhos que enxergam, ouvidos que ouvem e um processador computacional que possibilita a conversação. ROTHBLATT, Martine, idem, p. 69.

[4] Vide matéria jornalística: TV chinesa coloca no ar jornal com apresentadora em Inteligência Artificial. In: UOL.Com. Publicada em 17 de março de 2023. Disponível em: https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2023/03/17/telejornal-chines-apresenta-jornalista-criada-por-inteligencia-artificial.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em 28 de março de 2023.

[5] BELTRÃO, Sílvio Romero. Tutela jurídica da personalidade humana após a morte: conflitos em face da legitimidade ativa. São Paulo: REPRO (Revista de Processo), 2015 – Vol. 247, p. 135.

[6] BRASIL, TJ-MG – AI: 10000211906755001 MG, relator: Albergaria Costa. 3ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 28/01/2022.

[7] "A inteligência artificial proporcionou um dueto entre Elis Regina, morta há 41 anos, e a filha dela, Maria Rita, em uma campanha da Volkswagen, lançada na madrugada desta terça-feira (4). O vídeo foi produzido para comemorar os 70 anos da empresa no Brasil". BISCHOFF, Wesley. Elis Regina aparece cantando ao lado da filha Maria Rita em campanha feita com inteligência artificial. Globo-G1. Publicado em 04 de julho de 2023. Disponível em https://g1.globo.com/economia/midia-e-marketing/noticia/2023/07/04/.ghtml. Acesso em 20 de julho de 2023.

[8] VILELA, Luiza. Hologramas, direitos autorais e herança: o que Madonna exige após sua morte?. In: Exame. Publicado em 11 de julho de 2023. Disponível em: https://exame.com/pop/hologramas-direitos-autorais-e-heranca-o-que-a-madonna-exige-apos-sua-morte/. Acesso em 2º de julho de 2023.

[9] VILELA, Luiza, idem.

[10] Vide: Greve em Hollywood: O que se sabe sobre as paralisações dos roteiristas e atores. Globo-G1. Publicado em 15 de julho de 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2023/07/15/greve-em-hollywood-o-que-se-sabe-sobre-as-paralisacoes-dos-roteiristas-e-atores.ghtml. Acesso em 20 de julho de 2023.

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