Opinião

Robin Hood para legitimar as emendas dos precatórios: a lenda como farsa

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29 de abril de 2023, 6h00

As Emendas editadas em dezembro de 2021 criaram um teto para o pagamento de dívidas oriundas de decisões judiciais, representadas por precatórios (= ofício destinado ao executivo para inclusão de verba no orçamento), muito inferiores à soma necessária, autorizando uma reapropriação pela União da maior parte dos valores habilitados.

Já no primeiro ano (2022), faltou mais da metade da soma habilitada em 2021 e, até 2026, o volume de precatórios acumulados, com o carimbo "sem prazo de pagamento", poderá alcançar R$ 500 bilhões ou mais, conforme estimativas de órgãos técnicos do Congresso[1]. No fim de 2022, o estoque de precatórios não pagos da União já era o dobro do estimado.

A expropriação atinge créditos alimentares de segurados da Previdência, pequenos funcionários da União, pequenos proprietários rurais corridos de suas terras pelas grandes hidroelétricas e outros mais da base da sociedade, todos invisíveis porque espalhados no imenso território nacional.

Todos eles continuarão sujeitos a ações coercitivas de seus fornecedores, começando pelo Estado, credor de vários tributos e taxas, abrangendo todos os seus fornecedores e ainda os banqueiros a quem quase todos devem. É formado, assim, um círculo perverso sobre esse universo de pessoas.

Uma vez que as sentenças transitadas em julgado transferem os bens que eram litigiosos para o patrimônio do vencedor da ação, é evidente que as Emendas autorizaram a apropriação pela União de valores já pertencentes a centenas de milhares de credores pobres.

No texto da Emenda 114, o artigo 107-A, que bloqueia os valores devidos com a fixação do teto, anuncia que eles serão destinados ao pagamento da renda básica, visando assim legitimar a pilhagem de um universo de centenas de milhares de pessoas pobres.

As emendas foram anunciadas tal qual uma operação Robin Hood, o justiceiro à margem da lei que vivia com seu bando e assaltava os nobres em busca de víveres para distribuir aos pobres. Em verdade, a previsão e conteúdo das Emendas se assemelham muito mais a antiga prática de pilhagem, as quais durante o Estado Absoluto eram praticadas pelos monarcas nas guerras internas ou externas, modificando as leis ou mesmo agindo a margem delas baseado em seu poder absoluto e divino.

Para legitimar a pilhagem de centenas de milhares de pessoas pobres, seu real conteúdo aparece velado e é anunciado como uma forma de beneficiar os miseráveis. Na verdade, o produto da pilhagem tem destinação diversa: as emendas secretas do relator e os compradores dos precatórios aviltados, os banqueiros, receptadores habituais do crime. Os beneficiários dos despojos estavam mais uma vez no andar de cima. E a lenda se realiza como farsa.

No Estado de Direito, conquistado através das revoluções oitocentistas, foram instituídas as garantias fundamentais para assegurar o exercício dos direitos, em primeiro o direito pela liberdade e propriedade e depois contra o Estado: a igualdade de todos na aplicação da lei, o devido processo legal e, para garantia das garantias, a tutela jurisdicional.

A coisa julgada é uma garantia institucional consagrada entre os direitos e garantias individuais no artigo 5º da Constituição que dispõe: "XXXVI – A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada". A diferença entre os três consiste em que a coisa julgada opera a transferência imediata do bem litigioso para a parte favorecida pela sentença, enquanto as outras duas necessitam que seja proposta uma ação judicial para se fazer valer. Afonso da Silva (2008) assinala que "tutela-se a estabilidade dos casos julgados para que o titular do direito aí reconhecido tenha a certeza jurídica de que ele ingressou definitivamente no seu patrimônio"[2].

A operação instituída pelas emendas é uma apropriação indevida de valores monetários já pertencentes a terceiros, os vencedores das ações contra a União. Ela corresponde ao delito tipificado no artigo 168 do Código Penal como apropriação indébita, que é praticado por quem detém e retém bem alheio, sem razão legitima com pena de reclusão de uma a 4 anos e multa.

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Errol Flynn como Robin Hood em 1938
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O "espaço fiscal" que teria sido aberto pela redução das verbas para pagamento de precatórios seria destinado à cobertura da renda básica e da seguridade social conforme artigo 107-A, introduzido pela Emenda 114 referindo-se aos termos do artigo 194 da Constituição que versa a respeito da seguridade social.

Foi também introduzido pela Emenda 114 o parágrafo único do artigo 6º que cria a renda básica: "Todo brasileiro em situação de vulnerabilidade social terá direito a uma renda básica familiar, garantida pelo poder público em programa permanente de transferência de renda, cujas normas e requisitos de acesso serão determinados em lei, observada a legislação fiscal e orçamentária".

Entretanto, essa pretensa vinculação do espaço fiscal que estaria sendo aberto com os benefícios apontados é juridicamente impossível. Os recursos orçamentários gerados por impostos ou por cortes de despesas não comportam carimbo de destino, a única forma de vinculação de receitas à gastos determinados é por meio de contribuições.

O melhor exemplo são as contribuições previdenciárias, recolhidas dos segurados, dos empregadores e da própria União, receitas que devem ser contabilizadas em orçamento distinto do orçamento geral da União, consignando-se também aí as despesas com os benefícios pagos aos segurados e seus dependentes.

A destinação do "espaço fiscal" que teria sido aberto pela redução das verbas para pagamento de precatórios à cobertura da renda básica e ao custeio da seguridade social, feita no artigo 107-A do ADCT, constitui, portanto, uma falácia.

A receita destinada ao pagamento do benefício da renda básica e o custeio da seguridade social — despesas obrigatórias e permanentes e que já possuem diversas fontes de receita previstas na Constituição — não pode ser eleita discricionariamente pelos poderes constituídos a partir de medidas de exceção.

Naturalmente, a União deveria recorrer à imposição de impostos, destinados a cobrir suas despesas e obrigações constitucionais e legais. Como por exemplo, tributar os dividendos distribuídos por pessoas jurídicas a seus acionistas, que são isentos de tributação desde a década de noventa, um privilégio que só existe em outros quatro países.

Poderia também, em situação de crise, instituir um empréstimo compulsório (artigo 148), obedecendo o princípio da capacidade contributiva, em vez de recair sobre o universo dos credores por precatórios, recortados arbitrariamente na base da sociedade.

A Emenda da Transição, EC nº 126 de dezembro de 2022, postulada pelo governo recém-eleito, aumentou o teto geral de gastos do Executivo em R$ 145 bilhões para o exercício de 2023 (artigo 3º) destinando metade às despesas com a renda básica, o que afastava a alegada necessidade de apropriação indébita dos recursos para pagar precatórios.

No entanto, esta Emenda repetiu o artigo 107-A do ADCT da Emenda 114, que gerou o teto para pagamento das dívidas oriundas de decisões judiciais. A expropriação criminosa introduzido pela Emenda 114 foi ratificada pelo artigo 2º, da Emenda 126, em termos idênticos, incluindo a longa vigência até o final de 2026 e a falsa justificativa de uma operação necessária para viabilizar o pagamento da renda básica para alguns milhões de pessoas mais pobres ainda, revivendo a lenda de Robin Hood, sem ou com o conhecimento do novo presidente.   

A falsa classificação das dívidas originadas de decisões judiciais transitadas em julgado, representadas por precatórios, como despesas públicas, foi adotada pelas Emendas para considerá-las submetidas ao teto geral de gastos fixado pela Emenda 95, que incide literalmente só sobre as despesas primárias da União (artigo 107, I do ADCT).

Evidente que o corte, se fosse necessário, deveria incidir sobre despesas primárias definidas pela Emenda 95, jamais sobre dívidas da União, como são as dívidas oriundas de decisões judiciais, que têm a mesma classificação de todas as demais dívidas, como por exemplo a dívida pública e que não sujeitam a contingenciamentos.

Belluzzo (2023), em artigo intitulado A bomba da dívida[3] enfatizou que os precatórios não são despesas primárias; são ordens de pagamento emitidas pelo Judiciário contra o Executivo, que se tornou devedor. Assim, devem ser classificados como dívida. A Exposição de Motivos da PEC 23, que deu origem às Emendas 113 e 114 dizia que o montante necessário para pagamento das dívidas decorrentes de decisões judiciais transitadas em julgado, correspondia a despesas sujeitas ao teto geral de despesas fixado pela EC-95, recomendando a aprovação da Emenda para abertura de espaço fiscal no orçamento de 2022.

O Supremo Tribunal Federal já proclamou a existência de ofensa à dignidade da Justiça em face de emendas que bloqueiam o cumprimento das decisões judiciais. Como é o caso do acórdão RTJ 167/6-7 do ministro Celso de Mello que reitera a exigência de respeito incondicional às decisões judiciais como obrigação constitucional inderrogável dos do poder público.

Na última ocasião em que o tema foi apreciado pelo STF (ADIs 4.357 e 4.425), o então presidente da Corte, ministro Luiz Fux, asseverou que: "Permitir que decisões emanadas do Poder Judiciário, já definitivamente constituídas e revestidas de exigibilidade, percam sua força executiva […] representa escárnio à nobre função jurisdicional". No mesmo sentido, pronunciou-se a ministra Rosa Weber como relatora na ADI 4.357:

"Compartilho da compreensão dos que conferem exegese ampla às cláusulas pétreas do art. 60, § 4º, do nosso texto magno. Entendo que também o poder constituinte derivado ou reformador – e não apenas o legislador ordinário – está submetido ao postulado da irretroatividade consagrado no art. 5º, XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada."

As normas garantistas, que são de relevância extrema no Estado Constitucional necessariamente demandam serem aplicadas pelo tribunal, afastando assim as ameaças e lesões visadas pelo ato espúrio do legislador. Nestas condições, a omissão prolongada do STF no julgamento da medida cautelar postulada, que segue permitindo o avanço do crime continuado e a ameaça de mais pilhagens de bens de cidadãos da base da sociedade é um atentando contra o sistema de Justiça, instituição muito maior que o poder judiciário em si. 

Observe-se que as Emendas 113 e 114 foram promulgadas em 19 de dezembro de 2021 e em 13 de janeiro de 2022 foi ajuizada a ADI (ação direta de inconstitucionalidade) pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil),  AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros), e outras entidades legitimadas, com pedido fundamentado de medida cautelar, ad referendum do plenário, para suspender a incidência das duas emendas.

Em março de 2022, a OAB voltou a pedir a apreciação da cautelar postulada, tendo sido indeferida em 04 de abril sob alegação de que a complexidade da matéria estaria a exigir exame detido. Em agosto de 2022, a até então relatora ministra Rosa Weber foi substituída pelo ministro Fux, que continuou sem apreciar o pedido de cautelar.

A demora na prestação jurisdicional está permitindo a pilhagem dos bens de centenas de milhares de cidadãos da base da sociedade produzindo efeitos perversos — gerando a cada ano a apropriação indébita de valores de mais de cem mil cidadãos da base da sociedade que venceram a resistência prolongada da União em ações condenatórias, o que por si só parece suficiente para demonstrar a existência de periculum in mora.

E a razão invocada para não examinar a cautelar postulada é desprovida de razoabilidade, uma vez que a matéria é conhecida da Corte Egrégia, em particular dos ministros que se sucederam na relatoria. O STF já decidiu várias vezes sobre a matéria, declarando a inconstitucionalidade de emendas que concediam mais prazo para pagamento de precatórios devidos por Estados e municípios e entes federados que haviam deixado de pagar por vários anos precatórios regularmente habilitados.

Segundo Belluzzo[4], quando o STF declarar a inconstitucionalidade irá estourar uma bomba contra o erário. O volume do estouro, que será certamente amplificado pelos agentes políticos e pela mídia, poderá constranger esta Corte a assumir o gesto piedoso de conceder à União alguns anos mais de prazo para os pagamentos, como já ocorreu com os estados e restando ao grupo numeroso de cidadãos, aguardando justo pagamento, a alternativa de transferi-los aos receptadores habituais, por preços ainda mais aviltados.

O acesso à Justiça, considerado garantia primordial no Estado Constitucional de Direito, está consagrada no inciso XXXV do artigo 5° nos seguintes termos: "A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de lesão à direito". Parece uma mensagem ao legislador para que não edite leis (ou emendas) excluindo da apreciação do Poder Judiciário as lesões ou ameaças à direitos. Mas ela contém uma autorização ao Poder Judiciário para que invalide os atos do legislador editados com esse fim e aos cidadãos a faculdade de recorrer a tutela jurisdicional para afastar a aplicação de tal lei ou emenda.

No caso das Emendas dos Precatórios, a omissão prolongada do tribunal na apreciação da cautelar postulada (e a postergação do julgamento da ADI) pode levar à consumação do crime continuado em toda a sua extensão, impondo aos cidadãos jurisdicionados a perda definitiva da totalidade de seus bens e nesta hipótese o acesso à Justiça estará reduzido ao cumprimento de um ritual. E com isto a dignidade da vai se estiolando no tempo. Desta vez, por obra dos ministros do Tribunal Supremo, ou pelo protagonismo perseverante de suas gavetas.  

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Leia mais em: PECs 113 e 114 são verdadeiro assalto ao sistema de Justiça e à Constituição.

Crônica. Disponível aqui.

 


[1] PIMENTA, Guilherme. Estoque de precatórios da União já é o dobro do previsto. Valor Econômico. Disponível em: <https://valor.globo.com/brasil/noticia/2023/04/14/estoque-de-precatorios-da-uniao-ja-e-o-dobro-do-previsto.ghtml>.

[2] AFONSO DA SILVA, José. Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2008, p.135.

[3] BELLUZZO, Luiz Gonzaga. A bomba da dívida. Jornal O Globo. Opinião. Rio de Janeiro, 24 jan.2023, p. 2. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/opiniao/artigos/coluna/2023/01/a-bomba-da-divida-sobre-o-brasil.ghtml>

[4] BELLUZZO, Luiz Gonzaga. A bomba da dívida. Jornal O Globo. Opinião. Rio de Janeiro, 24 jan.2023. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/opiniao/artigos/coluna/2023/01/a-bomba-da-divida-sobre-o-brasil.ghtml>.

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