Opinião

Parcelamento tributário e a ADC nº 77: mais um capítulo na novela do Refis

Autor

  • Phelippe Toledo Pires de Oliveira

    é procurador da Fazenda Nacional mestre pela Universidade de Paris I Panthéon-Sorbonne mestre e doutor em Direito Tributário pela USP e professor do Ibmec-Brasília tendo sido pesquisador visitante em Berkeley Londres e Viena.

29 de abril de 2023, 15h18

No final do mês passado, a poucos dias de sua aposentadoria, o ministro Ricardo Lewandowski, relator da ADC nº 77, decidiu, em sede de cautelar, pela impossibilidade de exclusão dos contribuintes do Refis em razão do pagamento de parcelas ínfimas. A decisão refere-se ao Refis original, programa de parcelamento tributário criado há mais de duas décadas.

Os parcelamentos tributários, em sua maioria, não se limitam a permitir o pagamento parcelado de débitos tributários. Trazem, em seu bojo, descontos de multa, juros e até do próprio principal, assemelhando-se a anistias fiscais. Esses programas são bastante controvertidos, pois acabam por beneficiar os contribuintes que deixaram de pagar os tributos no prazo devido.

Foram vários os parcelamentos tributários no Brasil nas últimas décadas. Um dos primeiros programas em nível federal foi justamente o "Programa de Recuperação Fiscal". Instituído inicialmente por uma medida provisória, posteriormente convertida na Lei nº 9.964/2000, o programa ficou conhecido como Refis, sigla que passou a ser sinônimo desses regimes.

O Refis permitia que os contribuintes que optassem pelo regime pudessem pagar os seus débitos tributários ao longo dos anos com redução de até 40% das multas e a incidência de juros pela TJLP, que é uma taxa juros subsidiada. Historicamente, a TJLP era muito menor que a Selic, taxa normalmente utilizada para a cobrança de tributos federais em atraso.

Ponto ainda mais controvertido em relação ao Refis era o fato de que o programa permitia que os contribuintes pagassem seus débitos em número ilimitado de parcelas com base em percentual de sua receita bruta. O percentual aplicável variava de 0,3 a 1,5% a depender da atividade e do regime tributário a que o contribuinte estivesse sujeito [1].

Sob o aspecto de política tributária, o programa foi um fiasco. Estruturado de maneira que os contribuintes pudessem pagar suas parcelas mensais com base em percentual de sua receita bruta, incentivou fraudes. Inúmeros contribuintes desviaram suas atividades para novas empresas, mantendo as dívidas em estruturas antigas com receita bruta reduzida.

A Lei 9.964/2000 previu as condições para a exclusão dos contribuintes do Refis, sendo uma delas a inadimplência, por três meses consecutivos ou seis meses alternados, o que ocorresse primeiro [2]. No entanto, considerando que os contribuintes continuavam pagando a parcela mensal com base na receita bruta, em princípio, não se enquadravam na hipótese de exclusão.

A PGFN editou o Parecer PGFN/CDA nº 1.206/2013, permitindo a exclusão do contribuinte do Refis quando o pagamento de parcelas ínfimas. Baseou seu entendimento no fato de que o espírito do regime era de que o débito tributário fosse pago em período razoável. Com efeito, o pagamento de parcela incapaz de reduzir o débito consolidado equivaleria à inadimplência [3].

A Coordenação-Geral de Arrecadação e Cobrança da Receita Federal emitiu, então, uma nota técnica especificando o que seria considerado parcela ínfima para fins de exclusão do Refis. A nota concluiu que o prazo máximo para a liquidação do Refis seria de 50 anos, orientando as unidades a recalcular as parcelas mínimas com base nesse período de tempo [4].

Mesmo antes do parecer e da nota Refis, alguns contribuintes já haviam sido excluídos do Refis por conta do pagamento de parcelas ínfimas, tendo a questão sido levada ao Judiciário. Com o advento do parecer e da nota, contendo a fundamentação jurídica e algumas diretrizes, vários outros contribuintes foram excluídos do Refis, aumentando a judicialização da matéria.

O Superior Tribunal de Justiça vinha consolidando o seu entendimento favorável à Fazenda Nacional no sentido de equiparar o pagamento de parcelas ínfimas à inadimplência, de forma a permitir a exclusão do contribuinte do programa quando ficasse constado que as parcelas não teriam o condão de adimplir o valor consolidado do débito em período razoável [5].

A questão parecia definida até que, em 2021, o Conselho Federal da OAB propôs a ADC nº 77 para declarar a constitucionalidade dos artigos 5º e 9º da Lei 9.964/2000, que tratam das hipóteses de exclusão do Refis, com pedido de interpretação conforme à Constituição para reconhecer a impossibilidade de exclusão de contribuintes em razão do pagamento de parcelas ínfimas.

Em sede de cautelar, o ministro Ricardo Lewandowski deu interpretação conforme à Constituição aos dispositivos que tratam das hipóteses de exclusão do Refis, afirmando ser vedada a exclusão, com fundamento na tese das "parcelas ínfimas", de contribuintes que vinham regularmente adimplindo suas prestações no referido programa.

Na visão do ministro Lewandowski, o legislador não deixou margem interpretativa sobre o que poderia ser entendido por inadimplência. Portanto, o entendimento da PGFN de que o pagamento de parcelas em valores incapazes de reduzir o débito consolidado configuraria inadimplência para fins de exclusão do Refis violaria o princípio da legalidade [6].

A decisão foi uma das últimas do ministro Lewandowski antes de deixar a Suprema Corte em razão de sua aposentadoria no último dia 11 de abril. Por se tratar de decisão cautelar, ainda depende de confirmação pelo Plenário da Corte. No entanto, a prevalecer a decisão, poderemos ter dívidas tributárias infindáveis, transformando o Refis em uma novela sem fim.

O julgamento da ADC nº 77 poderá repercutir também em parcelamentos concedidos pelos demais entes federados em que as parcelas são fixadas com base em percentual da receita ou faturamento do contribuinte. É o caso, por exemplo, do parcelamento criado pela Lei nº 7.116/2015 do estado do Rio de Janeiro, pendente de julgamento no STJ [7].

Independentemente da decisão final do Supremo Tribunal Federal a respeito do assunto, é importante que não se repita o equívoco de se conceder parcelamento tributário com base em percentual do faturamento ou receita do contribuinte sem estabelecer um número máximo de prestações em eventuais novos parcelamentos. A experiência nesse sentido foi desastrosa.

 


[1] Art. 2º, §4º, II, da Lei nº 9.964/2000.

[2] Art. 5º, II, da Lei nº 9.964/2000.

[3] Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, Parecer PGFN/CDA nº 1.206/2013.

[4] Receita Federal do Brasil, Nota Refis nº 003/2013.

[5] Superior Tribunal de Justiça, 2ª Turma, REsp nº 1.447.131-RS, rel. min. Mauro Campbell Marques, j. 20/05/2014, DJe 26/05/2014.

[6] Supremo Tribunal Federal, ADC nº 77, rel. min. Ricardo Lewandowski, Decisão monocrática em cautelar, j. 30/03/2023, DJe 31/03/2023.

[7] Superior Tribunal de Justiça, 1ª Turma, AREsp nº 1.723.732 (pendente de julgamento).

Autores

  • é procurador da Fazenda Nacional, mestre pela Universidade de Paris I Panthéon-Sorbonne, mestre e doutor em Direito Tributário pela USP e professor do IBMEC-Brasília, tendo sido pesquisador visitante em Berkeley, Londres e Viena.

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