Opinião

Coligação contratual e atributos da obrigação retratada no título executivo

Autor

  • Luiz Roberto Hijo Sampietro

    é doutorando e mestre em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo (USP) especialista em Direito Empresarial pela Escola Paulista de Direito (EPD) bacharel em Direito pela Universidade São Judas Tadeu (USJT) advogado professor de Processo Civil no Núcleo de Direito à saúde da ESA/OAB-SP e em cursos de pós-graduação lato sensu.

28 de abril de 2023, 6h32

A execução, provisória ou definitiva, fundamenta-se em título executivo (nulla executio sine titulo). Como bem ensinam Fredie Didier Jr., Leonardo Carneiro da Cunha, Paula Sarno Braga e Rafael Alexandria de Oliveira [1], "[a] regra de que não há execução sem título impõe que a atividade executiva, provisória ou definitiva, somente pode ser instaurada se for apresentado um instrumento de um ato jurídico a que a lei atribua a eficácia executiva".

Esse instrumento comprova a existência da obrigação e o descumprimento dela, na medida em que os atributos da certeza, liquidez e exigibilidade devem estar presentes no título (CPC, artigo 783). Segundo Francesco Carnelutti [2], "[e]l derecho resultante del título deve ser 'cierto, líquido y exigible'. El derecho es certo cuando el título no deja duda acerca de sua existencia; es líquido cuando el título no deja duda acerca de sua objeto; es exigible cuando el título no deja duda acerca de sua actualidad" [3].

Os negócios jurídicos de baixa complexidade talvez não exijam grandes esforços hermenêuticos para que o intérprete consiga auferir os elementos obrigacionais que permitam o manuseio da tutela executiva, que é voltada à pronta satisfação do direito substancial espontaneamente inadimplido. No entanto, a autonomia privada e a complexidade das relações negociais intersubjetivas alteraram a estrutura tradicional das obrigações — vínculo entre dois sujeitos para que um satisfaça determinada prestação em proveito de outro [4]  e dos negócios jurídicos: basta pensar, por exemplo, na aquisição de um bem financiado por instituição financeira.

Contrata-se a aquisição da coisa e, também, uma cédula de crédito bancário para viabilizar tal compra. Em tal hipótese, a compra e venda do bem móvel ou imóvel e a contratação do crédito representam uma unidade negocial, pois "são os interesses concretos das partes que determinam o nexo existente entre os contratos coligados, constituindo a chave para a sua interpretação e qualificação" [5]. A partir dessa realidade, torna-se inviável a mera análise estrutural e isolada de cada contrato.

A coligação contratual demanda exame sistêmico dos negócios que compõem o plexo obrigacional. De acordo com a lição de Carlos Nelson Konder [6], "dentro da grande heterogeneidade do fenômeno da conexão entre contratos — que pode envolver dois ou mais contratos, as mesmas partes ou parte diversas, estruturas lineares ou triangulares – observa-se um aspecto comum a todas suas facetas: a insuficiência da tradicional análise puramente estrutural dos negócios, presa ao modelo do contrato singularizado, colocando o desafio de como lidar, de forma valorativamente adequada, com as implicações jurídicas das vinculações fáticas existentes entre os negócios jurídicos".

A coligação entre contratos, naturalmente, influencia os atributos obrigacionais que permitem ao interessado se valer da tutela executiva. Se a aferição da liquidez, da certeza ou da exigibilidade da obrigação depender de investigação ou da prova de determinados atos ou fatos, não haverá, segundo Carlos Alberto Carmona [7], a "liquidez a autorizar o manejo imediato do processo executivo, sendo necessário recorrer às vias cognitivas para apuração do montante devido ao credor". Em julgado proferido ainda na vigência do Código de Processo Civil de 1973, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) identificou coligação contratual que prejudicou o manuseio da ação de execução de título executivo extrajudicial: "Processual civil – Titulo executivo extrajudicial – Ausência de liquidez, certeza e exigibilidade. I – Título executivo extrajudicial, previsto no artigo 585, II, do CPC, e o documento que contém a obrigação incondicionada de pagamento de quantia determinada (ou entrega de coisa fungível) em momento certo. Os requisitos da certeza, liquidez e exigibilidade devem estar ínsitos no titulo. A apuração de fatos, a atribuição de responsabilidades, a exegese de cláusulas contratuais tornam necessário o processo de conhecimento, e descaracterizam o documento como titulo executivo. II – recurso não conhecido". (REsp nº 39.567/MG, relator ministro Waldemar Zveiter, 3ª T., j. 15.12.1993).

Mais recentemente, o STJ entendeu que seria possível ao interessado suscitar a exceção de contrato não cumprido em litígio envolvendo coligação contratual. Em tal hipótese, a exigibilidade do título executivo e a respectiva ação de execução ficaram comprometidas. Veja-se a ementa do julgado: "A unidade de interesses, principalmente econômicos, constitui característica principal dos contratos coligados. Concretamente, evidenciado que o contrato de financiamento se destinou, exclusivamente, à aquisição de produtos da Companhia Brasileira de Petróleo Ipiranga, havendo sido firmado com o propósito de incrementar a comercialização dos produtos de sua marca no Posto de Serviço Ipiranga, obrigando-se o Posto revendedor a aplicar o financiamento recebido na movimentação do Posto de Serviço Ipiranga, está configurada a conexão entre os contratos, independentemente da existência de cláusula expressa. A relação de interdependência entre os contratos enseja a possibilidade de arguição da exceção de contrato não cumprido. Na execução, a exceção de contrato não cumprido incide sobre a exigibilidade do título, condicionando a ação do exequente à comprovação prévia do cumprimento de sua contraprestação como requisito imprescindível para o ingresso da execução contra o devedor. Recurso especial desprovido". (REsp nº 985.531/SP, relator ministro Vasco Della Giustina (desembargador convocado do TJRS), 3ª T., j. 1º.9.2009).

Assim, aquele que estiver interessado na execução de obrigações derivadas de contratos coligados terá de perquirir se os modais (condição, termo, encargo, modo) porventura existentes nos negócios ou as particularidades das convenções não comprometem a certeza, a liquidez e/ou a exigibilidade retratadas no título alegadamente executivo.

[1] DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de direito processual civil, v. 5. Salvador: Juspodivm, 2009, p. 62.

[2] CARNELUTTI, Francesco. Instituciones del processo civil, v. I. Buenos Aires: E.J.E.A., 1959, p. 271.

[3] Especificamente sobre a liquidez da obrigação do título executivo, e em senso análogo ao exposto por Carnelutti, ver THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao código de processo civil, v. XV. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 205, e BASTOS, Antonio Adonias Aguiar. Comentários ao novo código de processo civil. Coord. Antonio do Passo Cabral e Ronaldo Cramer. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 1.114.

[4] GOMES, Orlando. Obrigações. 18ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 13.

[5] MARINO, Francisco Paulo de Crescenzo. Contratos coligados no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 133.

[6] KONDER, Carlos Nelson. A coligação contratual na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. O Superior Tribunal de Justiça e a reconstrução do direito privado. Coord. Ana Frazão e Gustavo Tepedino. São Paulo: RT, 2011, p. 318.

[7] CARMONA, Carlos Alberto. Código de processo civil interpretado. Coord. Antonio Carlos Marcato. São Paulo: Atlas, 2022, p. 1.334.

Autores

  • é doutorando e mestre em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo (USP), especialista em Direito Empresarial pela Escola Paulista de Direito (EPD), bacharel em direito pela Universidade São Judas Tadeu (USJT), advogado e professor de Processo Civil no Núcleo de Direito à Saúde da ESA/OAB-SP e em cursos de pós-graduação lato sensu.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!