Opinião

O círculo e a espiral hermenêutica: por que isso não é trivial

Autor

  • Hélio Roberto Silva de Sousa

    é advogado especialista em Direito Administrativo e servidor de carreira da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) e membro da Comissão de Assuntos Regulatórios da Comissão de Direito Administrativo na OAB-DF.

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28 de abril de 2023, 19h32

De início, é importante apontarmos a natureza ontológica da interpretação, qual seja a compreensão de algo, e isso requer uma análise mais analítica.

Tanto na hermenêutica geral quanto na jurídica, deve-se atentar para a essência do que vem a ser compreender algo. Para tal, não se pode passar ao largo da construção trazida por Heidegger — sistematizada por Gadamer — quanto à árdua tarefa de se compreender o que vem a ser compreender. Segundo Eros Grau, o compreender é algo existencial, sendo, assim, experiência daquele que compreende [1].

Foi nessa odisseia filosófica (determinar o alcance e papel da compreensão para hermenêutica) que se cunhou a expressão círculo hermenêutico.

Tomando o conceito de Heidegger, Gadamer afirma que, em outras palavras, a compreensão consiste em um movimento circular, a partir de uma retroalimentação interpretativa entre o intérprete e o objeto da interpretação [2].

Entender o conceito de círculo hermenêutico é de suma importância para a correta aplicação do Direito, máxime pela necessidade de esclarecer que o processo interpretativo vai muito além da mera subsunção de determinado texto normativo a uma situação posta. Nas palavras de Hassemer, enxergar a hermenêutica como mero ato de subsunção não passa de inocência [3].

Pois bem, segundo a ideia decorrente do círculo hermenêutico, a compreensão do texto parte de uma pré-compreensão do intérprete em direção ao objeto a ser interpretado, o que consiste em uma antecipação de sentido. Desta forma, esse sentido prévio do intérprete o aproxima do objeto a ser interpretado, sofrendo, simultaneamente, influência deste, protagonizando verdadeira valsa síncrona (por vezes assíncrona) de mútua influência, até que haja transformação recíproca (tanto no intérprete quanto no objeto) produtora da interpretação (compreensão). Nas palavras de Gadamer:

"Quem quiser compreender um texto deverá sempre realizar um projeto. Ele projeta de antemão um sentido do todo, tão logo se mostre um primeiro sentido no texto. Esse primeiro sentido somente se mostra por que lemos o texto já sempre com certas expectativas, na perspectiva de um determinado sentido. A compreensão daquilo que está no texto consiste na elaboração desse projeto prévio, que sofre uma constante revisão à medida que aprofunda e amplia o sentido do texto" [4].

Nesta linha, Hassemer afirma que "esse processo se desdobra com o tempo; envolve, portanto, o indivíduo com sua história de vida e o contexto das tradições sociais ('compreensão prévia')" [5].

Desta feita, é importante atentar para o fato de que, conforme se extrai do instituto do círculo hermenêutico, o processo de compreensão é dinâmico, não consistindo em mera contemplação do objeto pelo intérprete, mas sim em movimento do intérprete em relação ao objeto e da influência mútua entre eles.

Apresentado, ainda que em apertadas linhas, o conceito de círculo hermenêutico, é necessário que avancemos no entendimento relacionado à mútua influência que ocorre entre intérprete e objeto, de modo a ratificarmos se a figura apresentada por Gadamer é a mais adequada para explicar tal fenômeno.

Hassemer aduz que esse processo de mútua influência é melhor entendido a partir de uma espiral hermenêutica, superando, de certa forma, a figura do círculo hermenêutico vislumbrada por Gadamer.

Nas palavras de Hassemer:

"Puesto que no es contemplación (de un sujeto frente a un objeto), sino acercamiento en desarrollo, se produce de forma circular o, como hay que decir más correctamente, en forma de espiral: el sujeto y el objeto se acercan el uno al otro en el proceso de la comprensión, se presuponen mutuamente en los dife­rentes niveles de acercamiento" [6].

Ao se considerar que, inobstante o círculo hermenêutico traga em seu bojo teórico a concepção de movimento, bem verdade é que a figura apresentada (círculo) não consegue representar de forma completa esse movimento de retroalimentação. Entendo ser inadequado afirmar que ao se movimentar em direção ao objeto, impulsionado por sua pré-compreensão, e, após sofrer influência deste, o intérprete retorne ao mesmo ponto de partida.

Por certo, este intérprete sofrerá a ação de força atrativa por parte do objeto, deslocando-o do ponto em que originariamente se encontrava na periferia do círculo, tornando, outrossim, incompleta a ideia do círculo hermenêutico.

Neste cenário, mais apropriado seria dizermos que essa simbiose intérprete-objeto é melhor representada por uma espiral hermenêutica, como visualizado por Hassemer, ao ponto em que a cada ação que o objeto/intérprete venha a exercer sobre o outro, há mútua alteração do ponto em que estavam, gerando-se, portanto, trajetória condizente com verdadeira espiral, ou seja, uma espiral hermenêutica.

Entender esse processo cognitivo como uma espiral hermenêutica faz fenecer a ideia de que o processo interpretativo é estático e que é possível encontrar um único conhecimento do direito, o que não quer dizer que as possíveis possibilidades sejam infinitas. Vale a pena, mais uma vez, recorrermos aos preciosos ensinamentos de Hassemer:

"Este movimiento excluye la posibilidad de medir y comprobar la com­prensión acertada (el conocimiento “verdadeiro”). Ya que res e intellectus no se encuentran mutuamente en una relación estática de contempla­ción, sino en una relación dinámica de acercamiento, la “verdade” no puede ser adaequatio rei et intellectus, es más bien un fenómeno dialogal, consesual y procedimental" [7].

Entendo, portanto, que a melhor compreensão deste movimento, por vezes síncrono, por vezes assíncrono, que envolve intérprete e objeto, é ilustrada pela figura da espiral hermenêutica, o que não significa, repito, que há número indiscriminado de potenciais interpretações, já que o próprio enunciado normativo não pode ser elidido.

Destarte, o mais apropriado seria falarmos em uma espiral hermenêutica contida na moldura interpretativa de Kelsen, sendo esta limitadora das potenciais resultantes interpretativas, sem que se anule o processo de mútua influência existente entre o intérprete e o objeto.

Devemos, ainda, alçar a hermenêutica à posição de destaque na aplicação do Direito. Assim, a previsibilidade e confiabilidade da aplicação da norma pacificarão as insurgências do jurisdicionado. É necessário que se faça um apelo, portanto, à sã aplicação da hermenêutica, tão essencial à melhor aplicação do Direito, o que gerará previsibilidade, cientificidade e tecnicidade ao manuseio da norma jurídica.

Ao se compreender a relação intérprete-objeto, pode-se melhor entender que a arte interpretar não é trivial, e nem poderia ser. A correta compreensão do círculo e da espiral hermenêutica é divisor de águas na interpretação e aplicação do Direito, fato este que não se pode passar ao largo por aqueles que, de forma sincera, buscam a melhor mais excelente aplicação do Direito.

 


[1] GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a Interpretação / Aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 101.

[2] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II. Petrópolis: Editora Vozes, 2002. p. 75.

[3] HASSEMER, Winfrield. Hermenéutica y Derecho. Anales de la Cátedra Francisco Suarez 25. Universidad de Granada, 1985. p. 80.

[4] GADAMER. Op cit., p. 75.

[5] HASSEMER. Op cit., p. 79.

[6] Ibid., p. 79. Tradução livre: Por não ser uma contemplação (de um sujeito diante de um objeto), mas uma abordagem em desenvolvimento, ela se dá de forma circular ou, como se deve dizer mais corretamente, em forma de espiral: o sujeito e o objeto aproximando-se uns dos outros no processo de compreensão, eles pressupõem um ao outro em diferentes níveis de abordagem.

[7] Ibid., p. 79. Tradução livre: Este movimento exclui a possibilidade de medir e verificar a compreensão correta (conhecimento "verdadeiro"). Uma vez que res e intellectus não se encontram em uma relação estática de contemplação, mas em uma relação dinâmica de abordagem, a "verdade" não pode ser adaequatio rei et intellectus, é antes um fenômeno dialógico, consensual e procedimental.

Autores

  • é advogado, especialista em Direito Administrativo e Servidor de carreira da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e membro da Comissão de Assuntos Regulatórios, da Comissão de Direito Administrativo e todas na OAB/DF.

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