Senso Incomum

Quais são os limites do Poder Judiciário? (parte 1)

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27 de abril de 2023, 8h00

Esta coluna é necessária. Sabemos que advocacia é para os fortes, como se diz. Stoic mujic (ver aqui). Mas deve haver um limite. Uma fronteira. O caso que vou contar a seguir exigiria, metaforicamente, uma "CPI hermenêutica".

Spacca
O ponto é: quais são os direitos das partes e dos advogados nesse sistema de justiça que se estabeleceu no Brasil?

Todos os dias embargos são aniquilados com recorta e cola. Por mais omissa e contraditória que seja a decisão, as decisões obedecem a um padrão: negar os embargos. Afinal, como ousa a parte dizer que uma decisão se omitiu, é contraditória ou obscura? E se a parte interpuser outros embargos, leva multa. Ou não tem sido assim?

E quando a coisa aperta, diz-se que há processos em demasia e lá vem jurisprudência (mais) defensiva (ainda).

Mas isso é só a ponta do iceberg.

De novo: qual é o limite do poder judicial? Essa pergunta é revestida de grande dimensão simbólica. Qual é o papel da doutrina em um país continental como o Brasil? Só os tribunais cuidam do direito? É deles o monopólio de dizer o direito?

Para falar disso farei uma crítica lhana e sofisticada. Usarei a teoria do direito.

Com efeito.

Uma crítica que Dworkin faz ao positivismo é dizer que é criterialista. Talvez seja difícil explicar o que é esse conceito. Mas no Brasil ninguém morre de tédio e funciona como um laboratório para explicar coisas antes mesmos que tenham nome próprio.

Pois o Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR) acaba de dar uma "aula" de criterialismo (Recurso: 0000918-66.2021.8.16.0092/3). Determinado cidadão ingressou com recurso especial e, horas depois — e na mesma data — interpôs recurso extraordinário. Sim, horas depois.

Para surpresa, o TJ-PR inadmitiu o recurso extraordinário porque não foi interposto "simultaneamente". Afinal, diz a decisão, "A violação constitucional ocorrida no julgamento efetuado pelo tribunal local deve ser impugnada mediante recurso extraordinário interposto simultaneamente ao recurso especial, sob pena de preclusão" (RE 915324 AgR).

Mais: "Nos termos da jurisprudência do Supremo, somente é possível o envio dos autos ao Superior Tribunal de Justiça para que processe a demanda, quando não há interposição simultânea dos recursos extraordinário e especial" (RE 1288529 ED-AgR-ED).

Pergunto: quem foi o estagiário quem fez o esboço do voto? Ou o assessor? Para começar, o STF nunca disse que tinham que ser interpostos no mesmo segundo. No mesmo instante. Aliás, como seria isso?

Mais ainda, para piorar a situação, a decisão do TJ-PR violou o artigo o artigo 1.031, caput do CPC, que diz que, na hipótese de interposição conjunta de recurso extraordinário e recurso especial, os autos serão remetidos ao Superior Tribunal de Justiça. Alguém leu "simultaneamente"?

Bastava um google. O estagiário poderia fazer isso. O assessor também, para não colocar sua chefia em uma fria. Veja o resultado de um simples google:

"AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. […] tem a parte recorrente o prazo simultâneo de 15 (quinze) dias para a interposição tanto de recurso extraordinário, como de recurso especial, sendo que a segunda impugnação não fica preclusa caso manejada em data posterior àquela em que protocolizada a primeira, desde que respeitado o interregno legal. ANTE O EXPOSTO, dou provimento ao agravo e determino, por conseguinte, sua conversão em recurso especial." (STJ – AREsp: 2126023 GO 2022/0138038-5).

Parece incrível (ou crível) que, nesta quadra da história, tenhamos chegado ao ponto máximo do positivismo jurídico (não no sentido que o senso comum pensa, é claro — positivismo é um conceito sofisticado). Refiro-me às críticas feitas ao positivismo no sentido de que é convencionalista e criterialista.

O caso do TJ-PR é um exemplo paradigmático que mostra como a mentalidade dogmática-tribunalícia que vigora no Brasil é convencionalista, criterialista: trata o direito, que é um fenômeno essencialmente interpretativo, como se fosse criterial, como se seus conceitos fossem criteriais. O que é "simultaneamente"? No caso, a coisa é até mais simples: a palavra "simultaneamente" foi inventada, fruto de uma "convenção". Não consta no CPC! Mesmo que o STF a tenha usado, não o fez no sentido que a ela foi dada pelo TJ-PR.

Isto é, no caso do TJ-PR, o criterialismo é ad hoc: definem-se na hora os critérios semânticos para aplicação criterial de um conceito e pronto. Quem define talvez seja o estagiário.

Isto tem nome: realismo (que no Brasil é retrô): direito é o que o Judiciário diz que é. E contra legem. Porque a própria decisão sobre os recursos viola o CPC, ensejando, ela mesma, um recurso especial por violação da lei que lhe dá direito aos recursos. Paradoxalmente, um recurso especial contra negativa de vigência de dispositivo do CPC que trata dos recursos especiais e extraordinários.

Se o papel da boa dogmática é o de, intersubjetivamente, construir os conceitos para uma interpretação correta — íntegra e coerente (e aqui estou usando termos do Código) da norma jurídica, permitam-me a pergunta: onde está a boa dogmática? Essa não é uma crítica. É um chamado.

Como prometi, tratei do tema elegantemente e à luz da mais abalizada teoria do direito. Eu poderia ter feito de outro modo. Mas não é do meu feitio. Como sou lhano, faço como Guimarães Rosa: em vez de dizer que a água da cachoeira cai, prefiro "a cachoeira é barranco de chão e água se caindo por ele". Compreendem? Há vários modos de dizer as coisas.

De todo modo, resta perguntar, com ou sem sofisticação na crítica: até quando os causídicos aguentarão?

Numa palavra final: alguém pode dizer que a decisão do TJ-PR é um ponto fora da curva, assim como algumas tantas decisões monocráticas do STJ ou do STF. OK. Aceito o argumento. Todavia, com relação a ele, deixo sua avaliação aos causídicos de todo o Brasil. Afinal, posso estar equivocado. E tenho humildade científica para ser convencido do contrário.

Numa palavra: até quando?

Adendo: O IMPÉRIO DOS ENUNCIADOS E UM NOVO REALISMO

Não vale ler este adendo sem ler a parte de cima da coluna. OK?

O Brasil tem um tipo diferente, talvez híbrido, de realismo jurídico. Em vez de o direito é o que os tribunais dizem, tem também o direito que os fóruns de enunciados dizem que é. Têm tanto poder que fazem "novas leis" — e nada acontece.

Querem ver? O Fonaje "promulgou" o enunciado 162, pelo qual "Não se aplica ao Sistema dos Juizados Especiais a regra do artigo 489 do CPC/2015 diante da expressa previsão contida no art. 38, caput, da Lei 9.099/95"). Mas o que diz o artigo 38? A sentença mencionará os elementos de convicção do juiz, com breve resumo dos fatos relevantes ocorridos em audiência, dispensado o relatório. Segundo o Fonajef, isso dispensaria a aplicação do art. 489 do CPC. Quer dizer: para o Fonaje, trata-se de um direito à parte. Invocar precedentes, etc, é coisa para o "outro direito". Nos juizados vigora o direito… dos juizados.

Pronto. Enquanto o CPC diz que não se considerará fundamentada qualquer decisão que — e aí o legislador coloca seis incisos, o Fonaje diz o contrário da lei. Simples assim.

Ah, você, causídico, não concorda? Faça REsp. Poxa. Lamento. Não cabe REsp de decisão dos juizados. Mas, perguntaria o causídico recém derrotado: "- Mas eu invoquei, nos termos do CPC, art. 489, um precedente do próprio STJ e outro do STF". Lamento, nada há a fazer [1]. Eis o "sistema".

De novo a pergunta de um milhão de CPCs e CPPs: "Até quando"?

 


[1] Claro. Há casos teratológicos quem nem mesmo o "sistema" aguenta. Ou não dá conta. Há uma decisão interessante Iujef 200481100176162 que mostra isso. Vale verificar. O problema é que os juizados não obedecem a esse precedente. Porque não é necessário. E há ainda as súmulas. Isso fica para outra coluna. Há a possibilidade de RE. Afinal, o Fonaje ou correlatos ainda não tiveram a ousadia de elaborar um enunciado de matéria constitucional… Porém, como fazer "passar" um RE de decisão de juizado?

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