Direito Digital

A proteção de dados pessoais de crianças e adolescentes no Brasil e no mundo

Autores

  • Maria Gabriela Grings

    é mestre e doutora em Direito processual pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) coordenadora do Legal Grounds Institute e advogada.

  • Samuel Oliveira

    é doutorando em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) coordenador do Legal Grounds Institute e advogado.

  • José Humberto Fazano Filho

    é doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) pesquisador no Legal Grounds Institute e advogado.

27 de abril de 2023, 8h00

O Legal Grounds Institute, atento ao seu papel no fomento de políticas públicas digitais, aceitou o honroso convite do senador Alessandro Viera para apresentação de sugestão de projeto de lei para proteção de crianças e adolescentes em ambientes digitais. A participação foi refletida na redação do Projeto de Lei nº 2.628/2022 (PL nº 2.628), em tramitação no Senado e que avançou, no dia 18 de abril de 2023, para a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa. No presente artigo, abordaremos o cenário vigente e as discussões mais proeminentes sobre o tema da proteção de dados pessoais de crianças e adolescentes, em âmbito nacional e internacional, muitas das quais serviram de inspiração para a proposta apresentada. Em segundo momento, adentraremos na análise das previsões específicas do PL nº 2.628.

123RF
O tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes é prática comum, independentemente do nível de desenvolvimento tecnológico da sociedade. No entanto, muitas vezes, é realizado de forma imperceptível, tanto para crianças e adolescentes, alvos do tratamento de dados, quanto para os seus pais ou responsáveis legais. Essas práticas podem acarretar uma série de implicações no que diz respeito aos direitos à privacidade, à não discriminação, à liberdade de expressão, de reunião e de informação, à autonomia individual e à autodeterminação informativa desses indivíduos. Especialmente por se tratarem de pessoas em condição peculiar de desenvolvimento (artigo 6 º da Lei nº 8.069/2009 — Estatuto da Criança e do Adolescente), a vigilância operada através dos dados —‚ seja por parte do Estado, de empresas privadas ou de seus pais e responsáveis legais — é particularmente perniciosa, pois pode influenciar diretamente seus comportamentos e crenças, interferindo e prejudicando a formação de sua personalidade.

A intensa e crescente datificação da vida humana impõe o desafio de maximizar os benefícios trazidos pelos dados e informações e, ao mesmo tempo, garantir que, principalmente, crianças e adolescentes, sejam protegidos do uso prejudicial de seus dados e informações. A vertente moderna desse entendimento propugna pelo reconhecimento de certa autonomia intelectual desses jovens, especialmente dos adolescentes, respeitando o seu grau de maturidade e de desenvolvimento individual, possibilitando que seus gostos e opiniões sejam considerados nos processos de tomada de decisão, tendo como base o amplo conhecimento do seu uso e dos seus direitos. Isso, porque a proteção das crianças e adolescentes é responsabilidade de todos: pais e responsáveis legais, governos, empresas e, claro, dos próprios jovens.

Diversas iniciativas de regulação do tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes surgiram em todo o mundo nos últimos anos. Embora muitas delas sejam centradas essencialmente no princípio do melhor interesse da criança e na figura do consentimento parental, essas iniciativas frequentemente envolvem também o reconhecimento de crianças e de adolescentes como sujeitos de direitos autônomos, cuja voz deve ser ouvida e cujas decisões devem ser respeitadas no momento da criação de políticas de governança de dados que os envolvam diretamente. O Manifesto por uma Melhor Governança de Dados de Crianças [1], publicado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), o Código de Práticas para Serviços Online [2] do Information Comissioner's Office (ICO), a Nova Lei de Proteção da Juventude da Alemanha [3] e o Children's Online Protection Privacy Act (Coppa), dos EUA, são importantes exemplos.

Em síntese, o manifesto publicado pelo Unicef apresenta um apelo em prol de iniciativas fundamentais para um modelo de governança intencionalmente projetado para atender às necessidades e direitos de crianças e adolescentes. Um grupo de trabalho composto por 17 especialistas do setor privado, da academia e think tanks forneceu análises, orientações e comentários, que resultaram no documento publicado em maio de 2022 e que apresenta dez pontos principais a serem observados para o desenvolvimento de uma estrutura adequada de governança dos dados de crianças. Destacam-se, entre eles: a busca pela proteção das crianças a partir de uma abordagem centrada em seu melhor interesse e que leve em conta suas capacidades; a mudança da responsabilidade pela proteção de dados das crianças, que deverá ser de governos e empresas, e não das próprias crianças e adolescentes; e a busca pela cooperação global, a fim de se estabelecer uma estrutura internacional de governança.

Em sentido semelhante, mas com previsões mais concretas, o Age Appropriate Design Code (também conhecido como "Children's Code") elaborado pela autoridade de proteção de dados do Reino Unido, é um código de práticas de proteção de dados, aplicável para aplicativos, sites, videogames, redes sociais e brinquedos inteligentes que são ou podem ser utilizados por crianças. Entre as normas elencadas, merecem destaque: a recomendação e/ou obrigação de se realizar avaliações de impacto sobre a proteção de dados, a depender do caso concreto; a busca por altos padrões de privacidade por padrão (by default); a exigência de minimização da coleta e armazenamento dos dados; a vedação ao compartilhamento dos dados pessoais de crianças e adolescentes, exceto em casos em que se demonstre que o compartilhamento leva em consideração os seus melhores interesses; a recomendação de que técnicas e serviços de geolocalização e perfilamento sejam desativados by default. O documento do ICO se destaca ainda pelo alto nível de preocupação com o respeito à autonomia e à capacidade das crianças e adolescentes, ressaltando que as crianças têm os mesmos direitos que os adultos sobre seus dados pessoais, na medida em que sejam competentes para exercê-los. A intenção do Código é, assim, criar mecanismos através dos quais uma criança possa exercer seus direitos relativos à proteção de seus dados pessoais, na medida de sua capacidade, levando em consideração os seus próprios interesses.

Na Alemanha, o Deustcher Bundestag (Parlamento Federal) aprovou, em março de 2022, uma lei que altera a Jugendschutzgesetz (Lei de Proteção à Juventude, em tradução literal). Chama atenção o fato de a participação de crianças e jovens, um dos princípios basilares da Convenção da ONU sobre os Direitos das Crianças [4], estar presente no texto legislativo pela primeira vez. Com a nova lei, pretende-se que crianças e jovens sejam representados em um conselho consultivo que será estabelecido no âmbito da Agência Federal para a Proteção de Menores na Mídia, onde também participarão da avaliação regular da eficácia da norma. A lei alemã prevê ainda que as plataformas devem adotar medidas para proteger as crianças e adolescentes no ambiente virtual. Essas medidas incluem: termos de serviços "amigáveis", i.e., compreensíveis para crianças e adolescentes; a adoção de configurações padrão de segurança que limitem os riscos às crianças e adolescentes, com base na sua idade; e a criação de mecanismos de ajuda e denúncia dentro das próprias plataformas. Sugere-se ainda que os órgãos de autorregulação atuem em conjunto com os prestadores de serviços para desenvolver diretrizes para a implementação de tais medidas de precaução, incluindo a opinião de crianças e jovens. As plataformas de vídeo online (streaming) e de jogos que realizam a oferta de produtos e serviços para o público alemão, mesmo que não estejam domiciliadas na Alemanha, somente poderão disponibilizar o produto caso esse tenha sido previamente rotulado. A nova legislação ainda enumera medidas preventivas de verificação da adequação entre a classificação etária e o público consumidor, que poderão ser checadas por entidades de autorregulação regulada ou pelo poder público. O sistema jurídico brasileiro admite e comporta iniciativa assemelhada.

O Coppa, por sua vez, foi uma das primeiras legislações específicas voltadas para a proteção da privacidade de crianças. Promulgada em 1998 nos Estados Unidos, com vigência a partir de abril de 2000, o principal objetivo da legislação é ampliar o controle dos pais e responsáveis legais sobre os dados pessoais de crianças coletados online. A lei se aplica a todos os sites e fornecedores de serviços online, incluindo aplicativos e equipamentos que se valem da tecnologia de internet das coisas, como os brinquedos inteligentes. Para que o Coppa incida, não há necessidade de que o serviço seja direcionado para o público infantil, bastando que o fornecedor saiba que está coletando informações obtidas de usuários de outro site ou serviço online voltado para essa categoria, o que impacta diretamente a atividade dos provedores e dos serviços de telefonia. Outro ponto de destaque do Coppa advém da alteração legislativa ocorrida em 2013, que prevê o estabelecimento de "safe harbor programs" ("programas de porto seguro", em tradução literal), a serem desenvolvidos pelas empresas que atuam no setor, mediante supervisão direta do Federal Trade Commission (FTC).

Ainda nos Estados Unidos, no estado de Utah, o governador assinou em março de 2023 leis que limitam como as crianças podem usar as mídias sociais, com medidas que exigem o consentimento dos pais antes que as crianças possam se inscrever em aplicativos como TikTok e Instagram, além de proibir menores de 18 anos de usar as mídias sociais entre 22h30 e 6h30, exigir verificação de idade para qualquer pessoa que queira usar a mídia social no estado e permitir ações judiciais em nome de crianças que alegam que a mídia social as prejudicou. Em síntese, privilegia os direitos dos pais sobre a autonomia das crianças e adolescentes menores de 18 anos. Coletivamente, procura-se evitar que crianças sejam atraídas a aplicativos por características supostamente viciantes e a inserção de anúncios promovidos e destinados aos jovens [5].

Voltando a atenção para o ordenamento jurídico brasileiro, verifica-se que se trata de um sistema composto por diversas figuras jurídicas que procuram proteger crianças e adolescentes. Segundo a Constituição de 1988, cabe à família, à sociedade e ao Estado o dever de assegurar e de promover os seus direitos e garantias fundamentais (Artigo 227). A noção é reforçada pelo ECA, que estabelece os princípios da proteção integral, da prevalência absoluta dos seus interesses e o reconhecimento de sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento como premissas absolutas do microssistema de proteção infanto-juvenil, brasileiro. A questão é que, a despeito da existência de um conjunto de normas jurídicas voltadas especificamente para a proteção das crianças e adolescentes, é inegável a escassez de dispositivos legais que abordem o tema no ambiente digital em âmbito nacional. Há poucas previsões nos principais textos sobre a matéria, nomeadamente na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) – Lei n. 13.709/2018 — e no Marco Civil da Internet — Lei nº 12.965/2014.

Nesse sentido, merece destaque a Resolução nº 163/2014 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), que versa sobre a abusividade do direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança e ao adolescente. Ademais, o Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária, editado pelo Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), busca estabelecer diretrizes para o setor, incluindo a publicidade voltada para crianças e adolescentes. Todavia, sua observância é voluntária, ou seja, não prevê sanções em caso de descumprimento.

Ademais, cumpre apontar que em nenhum dos instrumentos legais já citados há menção às novas tecnologias que podem atuar no combate à violação dos direitos à proteção de dados e à privacidade, como as chamadas privacy enhancing technologies (PETs), relacionadas às noções de privacy by design e privacy by default. Não há previsão também acerca da necessidade de que tais tecnologias sejam amigáveis (user-friendly), estando correlacionadas à forma como deve ser prestado o dever-direito de informação para poder oxigenar a implementação das PETs.

Nesse contexto, é urgente e necessário que a legislação nacional seja aprimorada para suprir as lacunas existentes e garantir uma proteção efetiva aos direitos da infância e da adolescência no ambiente digital. É com este desiderato que o Legal Grounds Institute contribuiu para a iniciativa legislativa em curso, que avança no Senado. No próximo artigo da nossa série sobre o tema, traremos uma análise do Projeto de Lei nº 2.628/2022, com foco nas contribuições especificas realizadas pelo Legal Grounds Institute. Acompanhe o desenvolvimento na nossa coluna e nas redes sociais do Instituto.

 


[1] UNICEF. The case for a Better Governance of Children´s Data: A Manifesto, What does a better model of data governance for children look like? May 2021. Disponível em: <https://www.unicef.org/globalinsight/reports/better-governance-childrens-data-manifesto> Acesso em 20 abr. 23.

[2] INFORMATION COMISSIONER´S OFFICE. Age appropriate design: a code of practice for online services, 17.10.2022. Disponível em: <https://ico.org.uk/for-organisations/guide-to-data-protection/ico-codes-of-practice/age-appropriate-design-a-code-of-practice-for-online-services/>. Acesso em 20 abr. 2023.

[3] DEUTSCHER BUNDESTAG. Zweites Gesetz zur Änderung des Jugendschutzgesetzes, 30.04.2021 Disponível em: <https://dip.bundestag.de/vorgang/…/268540>. Acesso em 20 abr. 23.

[4] Convenção sobre os Direitos da Criança. Artigo 12. 1. Os Estados Partes devem assegurar à criança que é capaz de formular seus próprios pontos de vista o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados a ela, e tais opiniões devem ser consideradas, em função da idade e da maturidade da criança. 2. Para tanto, a criança deve ter a oportunidade de ser ouvida em todos os processos judiciais ou administrativos que a afetem, seja diretamente, seja por intermédio de um representante ou de um órgão apropriado, em conformidade com as regras processuais da legislação nacional.

[5] ZWEIFEL-KEGAN, Cobun. A view from DC: Utah, ‘parent over shoulder’ will be the new normal. IAPP, 3 de março de 2023. Disponível em: https://iapp.org/news/a/a-view-from-dc-in-utah-parent-over-shoulder-will-be-the-new-normal/. Acesso em: 28 mar. 2023.

Autores

  • é mestre e doutora em Direito Processual pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), pesquisadora do Legal Grounds Institute, membro do Grupo de Estudos em Novas Regulações de Serviços Digitais no Direito Comparado do Legal Grounds Institute e advogada.

  • é doutorando em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), coordenador do Legal Grounds Institute e advogado.

  • é doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), pesquisador no Legal Grounds Institute e advogado.

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