Opinião

Lula, o Supremo Tribunal Federal e a prensa hidráulica dialética

Autor

  • Marcio Sotelo Felippe

    é advogado e ex-Procurador Geral do Estado (SP). Mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direto publicou Razão Jurídica e Dignidade Humana Brasil em Fúria (em coautoria) e Moral e Direito (coleção Para Entender Direito).

26 de abril de 2023, 10h07

Em 1935 um jovem jurista estadunidense, Felix S. Cohen, publicou um artigo na Columbia Law Review com o título Transcendental nonsense and the functional approach. Cohen morreu prematuramente, mas deixou como legados esse precioso texto e a formulação de políticas de proteção aos indígenas.

O artigo foi traduzido para o espanhol pelo jurista argentino Genaro Carrió, [1] que presidiu a Corte Suprema no crítico período 1983–1985, de transição para a democracia. Carrió alterou o título original para O método funcional no direito sob a justificativa de que "parecia sob medida para afuguentar advogados" e todo advogado devia lê-lo. Na verdade, também todo estudante de direito.

No Brasil contemporâneo o cuidado de Carrió não seria tão necessário: a lembrança da atuação do STF (Supremo Tribunal Federal) nos últimos anos faria o título original, nonsense transcendental, ter certo atrativo.

Cohen inicia o texto com uma descrição do sonho de Jhering,[2]  célebre jurista alemão do século 19. Jhering contava que havia sido conduzido em sonho a um paraíso especial reservado aos teóricos do direito e nele se deparou com os conceitos jurídicos abstraídos da vida humana. Lá estavam a boa e má-fé, a propriedade, a posse, a negligência, etc, e todos os meios lógicos para que se pudesse fazer o que se quisesse para manipulá-los.

Havia uma prensa hidráulica dialética para interpretação capaz de extrair de qualquer norma ilimitado número de significados, um aparelho de construir ficções, uma máquina de dividir cabelos que podia repartir cabelos em 999.999 partes iguais e cada uma delas em mais 999.999 partes.

Cohen, influenciado pela filosofia analítica e Wittgenstein, valeu-se da boutade de Jhering para criticar a doutrina jurídica clássica e defender o que denominou de método funcional do direito, cuja síntese colheu do jurista estadunidense Wendell Holmes: direito é a profecia do que os tribunais farão efetivamente e não qualquer outra coisa pretensiosa.

Importa o viés que Cohen confere ao conceito, em Holmes apenas uma singela expressão do positivismo jurídico. Pode-se sintetizar esse viés  em alguns aspectos. Os sistemas, princípios, regras, conceitos, decisões jurídicas devem ser entendidos como funções do comportamento humano. Forças econômicas tem um papel nas decisões judiciais. Juízes refletem as atitudes de sua classe social.

Pontos de vista de juízes sobre o direito correspondem a uma experiência passada como advogados de certos interesses. Um juiz ex-advogado de uma non union shop (empresas que não aceitavam  trabalhadores sindicalizados nos EUA) tem certas ideias no campo trabalhista. Um juiz que teve  uma infeliz vida afetiva é parcimonioso na fixação de alimentos. Um juiz pode estar politicamente orientado. Uma série de sequestros  provocará uma onda de aplicação de penas máximas para tal crime, e assim por diante.

Em uma concepção mais avançada de crítica do direito que Cohen não alcançou, o paraíso dos conceitos jurídicos cumpre papel ideológico na estrutura capitalista. A igualdade formal dos sujeitos de direito nas relações de produção, por exemplo, ignorando o constrangimento econômico a que o trabalhador está submetido  e que desfigura qualquer autonomia da vontade; a comutatividade aparente que confere às prestações e contraprestações dos contratos de trabalho um aroma de  "justiça" e tantos outros conceitos jurídicos moldadas pelo e para o capitalismo.

O texto de Cohen é um instrumento precioso para analisar o comportamento do STF nos últimos anos. Por exemplo, a prensa hidráulica dialética com que Jhering se deparou no paraíso dos conceitos jurídicos foi bastante utilizada para extrair o que se quisesse da presunção de inocência. Em 2009 o STF decidiu que a pena somente podia ser executada após o trânsito em julgado. Em 2016 decidiu que iniciar o cumprimento da pena após a decisão de segundo grau não violava o princípio constitucional da presunção de inocência. Graças a essa decisão as eleições presidenciais de 2018 foram mutiladas e o candidato favorito alijado da disputa, abrindo as portas para o fascismo. Diante da barbárie do governo fascista eleito a presunção de inocência de 2009 foi restaurada.

Com o uso da prensa hidráulica dialética o ministro Gilmar Mendes retirou da presidente da República a prerrogativa constitucional de nomear ministros, impedindo a posse de Lula no cargo de ministro chefe da Casa Civil em 2016.

Reprodução
Reprodução de artigo de Émile Zola, publicado no L'Aurore, de 13.jan.1898

Os desmandos, arbitrariedades e o evidente interesse político do então juiz Sergio Moro não tiveram então qualquer consequência, fatos jurídicos que estavam interferindo severamente na vida política do país e mudando o rumo da história.

Um dos mais notáveis usos da prensa dialética coube à ministra Rosa Weber. Embora convencida de que a presunção de inocência não permitia o cumprimento da pena antes do trânsito em julgado, a ministra com a  prensa dialética de Jhring resolveu tudo com o "princípio da colegialidade". A  maioria votava contra a própria e sagrada convicção de jurista da ministra, por ela expressamente declarada, mas o tal princípio da colegialidade sobrepôs-se à sua consciência jurídica e à Constituição, ainda que seu voto — um toque surrealista — passasse a fazer coincidir a sua convicção com a do colegiado. O Habeas Corpus em favor de Lula foi negado.

Eram decisões políticas às quais se davam as formas jurídicas que habitam o paraíso dos conceitos. Tratava-se de política, de interesse da elite política, econômica, jurídica, que tinham como objetivo afastar do cenário institucional a principal liderança que no espectro ideológico  estava à esquerda. Supunham que um direitista suave, liberal e bonzinho, afastado Lula da disputa, ganharia a eleição. A trama jurídico-político foi um desastre, permitindo a eleição de um personagem grotesco, fascista, professando e cometendo barbáries que iam destruindo  o patamar mínimo  civilizatório desta sociedade.

Não foi o zeloso advogado Zanin, não obstante seu trabalho mereça todos os elogios, que tirou Lula da prisão. O hacker de Araraquara, cujas descobertas não podiam ser ignoradas por um tribunal que precisa ter a legitimidade de um mínimo de decência, e o susto com o assombroso fascismo de Bolsonaro puseram a funcionar a prensa dialética lá do paraíso dos conceitos, utilizada para moldar tudo de novo. Restaurou-se  a presunção de inocência, anularam-se os processos julgados por Sergio Moro, abriu-se a possibilidade da candidatura de Lula, único capaz de derrotar a barbárie fascista.

Há algum tempo citei em artigo publicado na revista Cult o advogado francês Jacques Vergès, especialista em processos políticos, e seu livro De la Stratégie Judiciaire, de 1968. lawfare é palavra nova para o que  é milenar: Sócrates, Jesus, Joana D'Arc, Dreyfus, Fidel Castro, Lula, etc. Retomo aqui Vergès para ainda ilustrar o paraíso dos conceitos jurídicos.

Vergès dizia que há dois modos de enfrentar um processo judicial político. Um é a conivência, por assim dizer, em que a atitude do réu é de acatamento passivo  às formas jurídicas, tal como manipuladas,  e consequentemente legitimação delas. Outro é a de ruptura. Neste ignora-se a moldura jurídica e se faz a denúncia política dos acusadores. Joana D'Arc, ao dizer que obedecia a Deus antes da Igreja, recusou a conivência e deslegitimou os acusadores. Se tivesse reconhecido a  autoridade deles podia ganhar a vida, mas perderia a História.

Fidel, quando julgado após o levante de Moncada, proferiu o célebre discurso "a história me absolverá" e instrumentalizou politicamente o tribunal. Mas Dreyfus foi o réu conivente que apenas negava o fato. Se Zola não tivesse, com o J'accuse denunciado a  ignomínia e, portanto,  utilizado a categoria que Vergès denominava de ruptura, o militar francês teria morrido na Ilha do Diabo.

O réu vítima de uma perseguição política judicial já está condenado. O processo é moldado desde o primeiro momento para isso. A conivência do réu significa a sua própria colaboração para o objetivo dos acusadores. A denúncia política é o caminho que lhe resta, seja para escapar da perseguição, seja para deixar um testemunho à História e à sociedade. Uma defesa técnica baseada em regras contra uma acusação política, ou seja, sem regras (ou prensadas na prensa dialética), não pode livrar ninguém do cadafalso.

O papel do Intercept no caso Lula, cuja sorte estava largada nas mãos de um juiz e de tribunais comprometidos politicamente contra o que ele representava, foi o equivalente do J'accuse de Zola ao publicar o material hacker. Escancarou a subordinação do jurídico ao político, restando ao  seu suposto "julgador", na verdade inquisidor, o mesmo opróbio que a História destinou aos acusadores de Joana D'Arc ou de Dreyfus.

Lula escolherá pelo menos dois ministros do STF. A escolha é juridicamente discricionária nos limites postos pela Constituição, notório saber jurídico e reputação ilibada. Mas não é politicamente, moralmente, socialmente discricionária. Esse erro já foi cometido. A escolha deve considerar aqueles cujo passado acadêmico, ou de operador do direito, ou de articulista jurídico, seja notoriamente comprometido com certa visão de mundo. E comprometido há muito tempo. A escolha deve permitir profetizar, usando o conceito defendido por Cohen, o que o escolhido decidirá quando estiverem  em jogo conquistas do garantismo penal, quando estiver em jogo o papel do Estado, quando estiverem em jogo políticas públicas sociais, proteção de minorias, quando estiverem em jogo, enfim, questões fundamentais  para uma sociedade democrática. Tudo de que não precisamos agora é de alguém que, escolhido, se possa dizer: " uma esfinge". E há algumas esfinges postulando.


[1] El método funcional en el derecho, Abeledo- Perrot, Buenos Aires, 1962

[2] O Paraíso dos conceitos jurídicos.

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