Opinião

Sobre os sistemas processuais penais

Autor

  • Thalis Santos da Mota

    é assessor da vice-presidência da OAB-RJ pós-graduado em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Ucam e membro da Comissão de Direito Penal do IAB e das comissões de Política Criminal e Penitenciária e de Política Sobre Drogas da OAB-RJ.

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25 de abril de 2023, 16h25

Para compreensão do sistema processuais penais é necessário começarmos pelo entendimento de que um sistema é um conjunto de normas, ordenadas e coordenadas entre si, intimamente correlacionadas, componentes de uma estrutura organizada dentro do ordenamento jurídico.

O estudo dos sistemas processuais penais está condicionado a fatores de ordem político-ideológica, sendo que em alguns períodos o Estado busca promover concentração de funções, alterando a relação da equação entre direitos da sociedade e do Estado em contraposição aos direitos ou interesses individuais. Em alguns casos são ampliados os direitos e garantias individuais, mas em outros podem ser reduzidos ou mesmo suprimidos.

Os direitos e garantias individuais somente se afirmam em sociedades que reconhecem o indivíduo como titular de direitos perante a sociedade ou o Estado. Em sociedades holísticas não há que se falar em direitos ou garantias individuais. Assim, o sistema processual penal adotado será sempre reflexo dos valores da sociedade, bem como da ideologia predominante em determinado espaço de tempo.

A passagem do direito medieval para o direito moderno, no momento de formação dos estados nacionais, não se deu sem conflito, notadamente com a prevalência do sistema inquisitorial. Analisando o sistema inquisitório observamos uma aglutinação de concentração de poderes que teve seu apogeu na Idade Média nos tribunais eclesiásticos mais precisamente no Tribunal do Santo Ofício.

O inquisidor aglutinava funções em uma única pessoa que e tinha um viés punitivista, ao passo que no sistema acusatório é consequência de um ideal garantista e democrático.

No sistema inquisitório bastava um rumor para que a investigação tivesse lugar e com ela seus particulares métodos de averiguação. Na Inquisição o réu é "objeto" no processo, devendo provar sua inocência, enquanto no sistema acusatório é sujeito de direitos e presumidamente inocente, o que transfere o ônus da prova ao órgão que acusa.

A doutrina identifica três sistemas de processo penal: o inquisitivo, o acusatório e o misto.

No sistema inquisitivo não havia contraditório, nem ampla defesa, os processos — de maneira geral — eram secretos e a prisão no curso do processo era a regra, até porque facilitava a obtenção da famigerada confissão, geralmente conquistada mediante a tortura.

O sistema inquisitivo, como o próprio nome diz, remonta ao século 12 e 13, período da Santa Inquisição e da constituição do Tribunal do Santo Ofício para reprimir as heresias e a defesa dos dogmas da Igreja Apostólica Romana, também chamado de tribunais eclesiásticos.

Nesse sistema, o juiz atua como parte, investiga, dirige toda a produção da prova, acusa e julga, concentrando as funções. O processo é sigiloso secreto sem o contraditório a fim de que a curiosidade dos populares não atrapalhe os "métodos" do inquisidor de averiguações, sem espaço para o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal.

Não há devido processo legal, pois este somente existe no Estado de Direito, com sujeição de controle dos atos do agente. No sistema inquisitorial o processo não está sujeito ao controle que somente a publicidade possibilita. No tocante às provas, vigora o sistema tarifado, ou seja, estas possuem valor preestabelecido e presunções absolutas, sendo a confissão a "rainha das provas".

No que tange aos aspectos jurídicos, o sistema processual inquisitivo caracteriza-se por ser antidemocrático, autoritário; nos dias atuais inconcebível, principalmente depois da secularização, ou seja, a separação do Estado da igreja. No sistema inquisitivo tem-se um "super juiz", visto que se atribuem ao magistrado diversas funções, e não só a que é verdadeiramente sua, qual seja, a de julgar mais sim de inquisidor de uma investigação preestabelecida com o fim de incriminar e não apurar.

O juiz não consegue, nem que queira, ser imparcial, porquanto é o verdadeiro administrador, gestor do processo, incumbindo-lhe investigar, acusar, defender e julgar. Esse sistema peca, ainda, por carecer de coerência lógica.

O sistema acusatório é mais garantista destaca-se pela existência do actum trium personarum e tem como característica primordial às divisões das funções de acusar, julgar e defender atribuídas às pessoas distintas.

O sistema acusatório é marco da civilidade. Decorrente da separação das funções estatais preconizada por Montesquieu que preconizava não haver liberdade quando distintas funções estatais estejam encerradas nas mãos da mesma pessoa ou do mesmo corpo político:

"Quando, na mesma pessoa ou o mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade, poque se pode temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado crie leis tirânicas para executá-las tiranicamente.
Tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse unido ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse unido ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor." [1]

O sistema acusatório mostra-se mais democrático, pois há a nítida separação entre as funções de acusar, defender e julgar. Por haver partes distintas exercendo cada uma das funções, garante-se a equidistância do juiz. Caracteriza-se pela imparcialidade do magistrado, o efetivo exercício do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa e pela publicidade. Rege-se pelo princípio da busca da verdade. Neste sistema o juiz fica inerte e não participa da confecção das provas.

No sistema acusatório vige o princípio do livre convencimento motivado ou persuasão racional, pelo qual não há hierarquia pré-determinada entre provas, podendo o juiz utilizar qualquer delas para a formação da convicção desde que fundamente sua decisão.

O sistema acusatório é um dos tipos processuais penais que se destaca pela "(…) defesa dos direitos fundamentais do acusado contra a possibilidade de arbítrio do poder de punir do Estado".

A insatisfação com o sistema acusatório da época foi causa para que os magistrados usurpassem aos poucos as atribuições dos acusadores, originando a junção, em um mesmo órgão do Estado, das funções de acusar e julgar.

De acordo com Gustavo Badaró os países da common law, a regra básica do adversary system, modelo esse tipicamente anglo-saxão, ou melhor, sistema acusatório, é a participação ativa das partes, por outro lado, o magistrado tem o papel de um sujeito passivo, agindo neutramente entre as partes. Nessa disputa entre as partes, o juiz, inclusive na produção de provas, fica inerte, cabendo as partes toda iniciativa probatória

É inconteste o ponto de vista de Geraldo Prado que aduz:

"Quem procura sabe ao certo o que pretende encontrar e isso, em termos de processo penal condenatório, representa uma inclinação ou tendência perigosamente comprometedora da imparcialidade do julgador. Desconfiado da culpa do acusado, investe o juiz na direção da introdução de meios de provas que sequer foram considerados pelo órgão de acusação, ao qual nessas circunstâncias, acaba por substituir. Mas do que isso, aqui igualmente se verificará o mesmo tipo de comprometimento psicológico objeto das reservas quanto ao poder do próprio juiz iniciar o processo, na medida que o juiz se fundamentará, normalmente, nos elementos de prova que ele mesmo incorporou ao processo, por considerar importantes para o deslinde da questão. Isso acabará afastando o juiz da desejável posição de seguro distanciamento das partes e de seus interesses contrapostos, posição essa apta a permitir a melhor ponderação e conclusão".

O sistema acusatório clássico na visão de Aragoneses Alonso tem como característica.

a) a atuação dos juízes era passiva, no sentido de eles se mantinham afastado da iniciativa e gestão da prova, atividades a cargo das partes;

b) as atividades de acusar e julgar estão encarregadas a pessoas distintas;

c) adoção do princípio ne procedat iudex ex officio, não se admitindo a denúncia anônima nem processo sem acusador legítimo e idôneo;

d) estava apenado o delito de denunciação caluniosa, como forma de punir acusações falsas e não se podia proceder contra réu ausente (até ´porque as penas são corporais);

e) acusação era por escrito e indicava as provas;

f) haja contraditório e direito de defesa;

g) o procedimento era oral;

h) os julgamentos eram públicos, com os magistrados voltando ao final sem deliberar;

Do mesmo modo, Aury Lopes Jr: aduz que o sistema acusatório contemporâneo é um imperativo do moderno processo penal, frente à atual estrutura social e política do Estado. Assegura a imparcialidade e a tranquilidade psicológica do juiz que sentenciará, garantindo o trato digno e respeitoso com o acusado, que deixa de ser um mero objeto para assumir sua posição de autêntica parte passiva do processo penal.

Também conduz a uma maior tranquilidade social, pois se evitam eventuais abusos da prepotência estatal que se pode manifestar na figura do juiz "apaixonado" pelo resultado de seu labor investigador e que, ao sentenciar, olvida-se dos princípios básicos de justiça, pois tratou o suspeito como condenado desde o início da investigação

O sistema acusatório, na visão do magnífico Frederico Marques, é o sistema ideal:

"Os atos de colaboração, entre os interessados no litígio penal e o juiz, estão subordinados a uma forma procedimental em que não se ponha em risco a imparcialidade do órgão jurisdicional e na qual o jus puniendi do Estado e o direito de liberdade do réu sejam amplamente focalizados e debatidos. Nisto consiste o procedimento acusatório, único modus procedendi compatível com o verdadeiro processo penal."

O sistema misto surgiu após a Revolução Francesa no código de Napoleão e, segundo a doutrina, uniu — por isso mesmo misto — os sistemas inquisitivo e acusatório. Assim, diz-se que ele é composto por duas fases: uma preliminar, instrutória, de caráter inquisitivo; e outra — fase de julgamento — com a observância do devido processo legal com contraditório e ampla defesa.

É inconteste que o sistema processual misto contém as características de ambos os sistemas mencionados. Possui duas fases: a primeira, inquisitória e a segunda, acusatória. Tem origem no Código Napoleônico (1808).

A primeira fase é a da investigação preliminar no processo penal. O inquérito tem nítido caráter inquisitório sem o contraditório e o processo está em consonância com sistema acusatório que possui como princípio unificador o fato de o gestor da prova ser pessoa distinta do julgador, criação do Ministério Público como órgão oficial da acusação. Há, pois, nítida separação entre as funções de acusar, julgar e defender, o que não ocorria no sistema inquisitivo. Destarte, o juiz é imparcial e somente julga, não produz provas e nem defende o réu.

O sistema misto adotado no processo penal brasileiro é modelo intermediário entre os dois sistemas anteriormente mencionados, pois há observância de garantias constitucionais (presunção de inocência, ampla defesa, contraditório), mas mantém alguns resquícios do sistema inquisitivo, como a faculdade de o juiz na iniciativa probatória (ex ofício).

No sistema misto, ocorre que na fase instrutória ou preparatória, também chamada de fase pré-processual, mantiveram fortes resquícios do modelo inquisitório, em contrapartida, na fase processual propriamente dita, ganhou traços característicos do tipo acusatório. A primeira faze destituída de contraditório.

Temos o inquérito policial regido pelos princípios do sistema inquisitorial e o processo regido pelo sistema acusatório.

É importante frisar que o novo Código de Processo Penal introduz a figura do juiz das garantias, responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos fundamentais do acusado (artigo 14).

Atualmente, um mesmo juiz participa da fase de inquérito e profere a sentença, porque foi o primeiro a tomar conhecimento do fato (artigo 73, parágrafo único do CPP). Com as mudanças, caberá ao juiz das garantias atuar na fase da investigação e ao juiz do processo julgar o caso — este tendo ampla liberdade em relação ao material colhido na fase de investigação.

Para concluir é de bom alvitre frisar que o processo tem duas fases. A primeira fase é essencialmente inquisitiva, caracterizada na fase da persecução criminal dirigida pelo delegado de policia ou o promotor de justiça, sigilosa, escrita, sem contraditório, cujo objetivo é apurar a materialidade e autoria do crime.

A segunda fase, de natureza acusatória, admite o exercício do contraditório e da ampla defesa. Esse modelo surge na França, no século 18. O sistema acusatório é o que foi consagrado, porém sob o enfoque do Código de Processo Penal, têm-se no Brasil um sistema acusatório misto em razão da influência de algumas normas de caráter inquisitivo que dão poderes instrutórios ao juiz, a exemplo os artigos 5º, II e 13, II, ambos do Código de Processo Penal.

Ocorre que, à luz da doutrina pátria, conclui-se que o sistema adotado no Brasil é o acusatório pátrio.

Isso porque, em suma, as funções de acusar e julgar pertencem a órgãos distintos. Além disso, no Brasil, nota-se que vigora um sistema lastreado pelos princípios constitucionais.

 


BIBLIOGRAFIA

ARAGONESES ALONSO, P., Instituciones de Derecho procesal penal, Madrid, 1984 P. 39 SS.

BADARÓ, Gustavo Henrique R. Ivahy. Ônus da Prova no Processo Penal. São Paulo: RT, 2003, p. 126-128.

GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Sistemas Processuais Penais. São Paulo 2021; Tirant.

MARQUES, José Frederico. A investigação Policial, p. 70-71, 2001 Apud AMBOS, Kai e POLASTRI, Marcellus Lima. O Processo Acusatório e a Vedação Probatória Perante as realidades alemã e brasileira. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2009, p. 49.

PRADO, Geraldo. Sistema acusatório. A conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. P. 137.

LOPES JR, Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

MONTESQUIEU, Charles de Secondad. Baron de. O Espírito das Leis. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

 


[1] Montesquieu, Charles de Secondad. Baron de. O Espírito das Leis. São Paulo: Martins Fontes, 1996/167.

Autores

  • é assessor da vice-presidência da OAB-RJ, pós-graduado em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Ucam e membro da Comissão de Direito Penal do IAB e das comissões de Política Criminal e Penitenciária e de Política Sobre Drogas da OAB-RJ.

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