Opinião

Transparência e discriminação: as preocupações em torno do SP Recrim

Autor

  • David Pimentel Barbosa de Siena

    é professor de Criminologia Direito Penal e Direito Processual Penal da Academia de Polícia Dr. Coriolano Nogueira Cobra (Acadepol) da Strong Business School (Strong FGV) da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) e da Universidade Nove de Julho (Uninove) doutorando e mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC) delegado de polícia do estado de São Paulo (PC-SP).

25 de abril de 2023, 11h19

A Resolução SSP nº 021, de 11 de abril de 2023, da Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo, instituiu o Sistema de Informações e Prevenção à Reiteração Criminal. Segundo o referido ato normativo, o denominado SP Recrim tem por objetivo integrar, consolidar, monitorar, divulgar, avaliar e aperfeiçoar dados e informações sobre o problema da reiteração criminal no estado de São Paulo e às políticas, serviços, programas e ações destinadas à mitigação desse problema e consequente aumento da prevenção criminal e melhoria da segurança pública da população paulista.

O relatório preliminar de estudo inédito sobre reincidência criminal no Brasil, divulgado pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen) em 2022, apontou que a taxa geral de reincidência no Brasil é de 39%, ou seja, quase quatro em cada dez pessoas que saem da prisão voltam a cometer crimes em até dois anos. Contudo, a taxa de reincidência varia de acordo com o tipo de crime cometido e o perfil do preso. Por exemplo, a reincidência é mais alta entre os condenados por crimes contra o patrimônio (45%) do que entre os condenados por crimes contra a vida (23%).

Divulgação
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Segundo esse estudo, a reincidência é mais comum entre os jovens e os menos escolarizados. Pessoas que cometeram o primeiro crime antes dos 18 anos têm uma taxa de reincidência de 53%, enquanto a taxa entre aqueles que cometeram o primeiro crime aos 30 anos ou mais é de 30%.

Já a taxa de reincidência entre pessoas sem escolaridade é de 45%, enquanto entre as que têm nível superior completo é de 16%. Os estados com as maiores taxas de reincidência são Acre (58%), Amapá (57%) e Piauí (52%), enquanto aqueles com as menores taxas são Roraima (23%), Espírito Santo (25%) e Rio de Janeiro (26%). O estudo também identificou que fatores como a falta de trabalho, a falta de educação e a falta de apoio familiar são associados a uma maior probabilidade de reincidência.

O SP Recrim pode ser visto como uma iniciativa que se concentra na prevenção secundária, ou seja, a redução da reincidência entre os indivíduos que já têm histórico criminal, uma vez que busca por agregar dados e informações sobre antecedentes criminais, situação perante o sistema de justiça criminal, número do(s) processo(s) ou procedimento(s) pré-processual(is) correlato aos fatos, número do procedimento de comunicação da situação identificada e resultado do procedimento de comunicação, bem como informações sobre políticas, programas e ações realizadas para prevenção da reiteração criminal no estado e consequente aumento da prevenção criminal e melhoria da segurança pública da população paulista.

Alguns países adotaram iniciativas semelhantes ao SP Recrim. O sistema estadunidense de Justiça Criminal tem vários bancos de dados, incluindo o National Criminal Information Center (NCIC) e o Law Enforcement National Data Exchange (N-DEx), que permitem que as agências policiais compartilhem informações sobre criminosos e atividades criminais.

O Reino Unido tem um sistema de registro de crimes, chamado de Police National Computer (PNC), que permite que as agências policiais compartilhem informações sobre suspeitos e condenados. A França tem um sistema centralizado de registro de criminosos, chamado de "Casier Judiciaire National" (Registro Criminal Nacional), que armazena informações sobre condenações criminais. O Canadá tem um sistema de informações criminais chamado Canadian Police Information Centre (CPIC), que permite que as agências policiais compartilhem informações sobre atividades criminais e suspeitos.

Na obra Predicting Recidivism Using Survival Models, Peter Schmidt e Ann D. Witte (1988) examinaram modelos de sobrevivência [1] para prever a reincidência de delitos. O estudo analisou dados de 25.788 indivíduos, que foram condenados por crimes em um período de 15 anos, na Carolina do Norte. A partir desses dados, os autores desenvolveram um modelo de risco de reincidência para prever o tempo até o próximo crime. A metodologia utilizada para desenvolver o chamado "modelo de sobrevivência", envolveu a análise de vários fatores, como idade, gênero, etnia, tipo de crime, histórico criminal anterior, entre outros.

Os autores também discutiram as implicações práticas da utilização do "modelo de sobrevivência" na previsão da reincidência criminal, bem como as limitações e desafios dessa abordagem. O trabalho é relevante para a compreensão do uso de modelos estatísticos na previsão de comportamentos criminais, especialmente no que se refere à reincidência. Além disso, traz importantes reflexões sobre a validade e confiabilidade desses modelos, bem como sobre os possíveis impactos das previsões de reincidência na tomada de decisões judiciais e na implementação de políticas públicas na área da justiça criminal.

A reincidência é um fenômeno complexo e multifacetado, influenciado por fatores biológicos, psicológicos e sociais. Os indivíduos que cometem crimes repetidamente tendem a ter histórico de comportamento antissocial desde a infância e adolescência, além de fatores de risco como pobreza, falta de habilidades sociais e problemas de saúde mental. A prevenção da reincidência deve ser feita por meio de intervenções que abordem esses fatores de risco e promovam fatores de proteção, como apoio social e habilidades de vida.

O tratamento de indivíduos que já cometeram crimes também deve ser baseado em intervenções que abordem as causas subjacentes do comportamento criminoso e que promovam a reintegração na sociedade (Zamble & Quinsey, 1997).

A reabilitação correcional é mais eficaz em reduzir a reincidência quando os programas são baseados em evidências empíricas e são adaptados para as necessidades individuais dos infratores. Programas que utilizam abordagens cognitivo-comportamentais e que são baseados em princípios de aprendizagem social demonstraram ser mais eficazes do que programas que se concentram apenas na punição.

A qualidade da implementação dos programas é fundamental para o seu sucesso. Programas bem implementados, com profissionais qualificados e bem treinados, tendem a ser mais eficazes do que programas mal implementados. A eficácia dos programas de reabilitação pode ser afetada por fatores como a duração do programa, a intensidade da intervenção e o tempo em que o programa é oferecido (por exemplo, durante ou após a prisão).

Embora haja evidências de que a reabilitação correcional pode ser eficaz em reduzir a reincidência, os resultados variam consideravelmente entre os programas e as populações de infratores, o que indica a necessidade de mais pesquisas e avaliações rigorosas para identificar as intervenções mais eficazes (Latessa et al, 2007).

Algumas intervenções, como terapia cognitivo-comportamental e programas de habilidades sociais, podem reduzir a reincidência criminal em alguns casos. A avaliação de risco é importante para identificar os indivíduos mais propensos a cometer novos crimes e direcionar os recursos para os casos mais críticos.

A prevenção da reincidência deve ser um esforço colaborativo, envolvendo não apenas o sistema de justiça criminal, mas também outros setores, como a educação, a saúde e o trabalho. As políticas de prevenção da reincidência devem ser baseadas em evidências científicas e adaptadas às necessidades específicas da população-alvo (McGuire, 2008).

No relatório Reducing Recidivism: States Deliver Results, a National Conference of State Legislatures (2017) revisou a literatura existente e apresenta exemplos de políticas bem-sucedidas de prevenção da reincidência em diversos estados dos EUA. A reincidência é um problema significativo nos Estados Unidos, com mais de 600 mil indivíduos retornando às prisões a cada ano.

As políticas de prevenção da reincidência devem ser baseadas em evidências, envolver parcerias entre agências governamentais e comunitárias e ter um forte componente de supervisão e acompanhamento. As políticas que mostraram ser eficazes incluem: programas de liberdade condicional baseados em evidências, programas de tratamento de drogas e saúde mental, educação e treinamento profissionalizante para detentos e egressos, e políticas que visam reduzir as barreiras ao emprego e moradia para egressos.

Alguns estados apresentam um sucesso notável na redução da reincidência, incluindo Rhode Island, Connecticut e Mississippi. Esses estados foram capazes de implementar políticas eficazes de prevenção da reincidência e alcançar uma redução significativa nas taxas de reincidência.

Para que o SP Recrim seja eficaz, é fundamental que as informações utilizadas estejam corretas e atualizadas. Caso contrário, o sistema pode gerar erros ou informações desatualizadas, o que pode levar a decisões equivocadas ou ações inadequadas para prevenir a reincidência criminal. Conforme os autores citados, a literatura criminológica estadunidense aponta a importância da coleta de dados precisos e atualizados para a elaboração de políticas públicas eficazes no combate à criminalidade. Além disso, os textos mencionam desafios na coleta de dados confiáveis e na avaliação da eficácia das políticas adotadas, o que evidencia a relevância dessa questão para o desenvolvimento de estratégias efetivas de prevenção da criminalidade.

Por outro lado, o SP Recrim poderá ser objeto de críticas sobre a falta de transparência podem se referir a questões como quem tem acesso aos dados, como as informações são compartilhadas entre diferentes agências e órgãos, como são definidos os critérios para a inclusão ou exclusão de indivíduos no sistema, como são tratados os erros e inconsistências nos dados, entre outras questões.

A falta de transparência pode gerar preocupações com relação à proteção da privacidade e dos direitos dos indivíduos, bem como com relação à eficácia e à justiça do sistema. Por isso, é importante que haja esforços para garantir a transparência do SP Recrim e de outros sistemas de informação utilizados no campo da justiça criminal.

A coleta e análise de dados sobre antecedentes criminais e políticas de prevenção da reincidência podem contribuir para a tomada de decisões mais informadas e embasadas em evidências na área de justiça criminal. No entanto, é possível que o uso do SP Recrim possa levar ao etiquetamento criminal.

O etiquetamento criminal ocorre quando uma pessoa é rotulada como criminosa e, consequentemente, passa a ser vista como tal pela sociedade e pelo sistema de justiça criminal, independentemente de suas ações futuras (Becker, 2008). No caso do Recrim, o fato de serem coletados dados e informações sobre antecedentes criminais pode levar a uma categorização dos indivíduos como "criminosos" e, portanto, serem tratados de forma diferente pela polícia e pelo sistema de justiça criminal, mesmo que não tenham cometido nenhum crime posteriormente.

Para evitar o etiquetamento criminal, é importante que os dados coletados pelo Recrim sejam usados de forma cuidadosa e criteriosa, levando em consideração as especificidades de cada caso e evitando generalizações e estereótipos. Além disso, é importante que o sistema de justiça criminal trabalhe em conjunto com outras políticas e programas que visem a prevenção da criminalidade, de forma a reduzir a necessidade de rotular as pessoas como criminosas e garantir um tratamento justo e igualitário para todos os cidadãos.

Sempre há o receio de que sistemas como o SP Recrim possam utilizar informações, que não estão diretamente relacionadas à atividade criminal dos indivíduos, como raça, etnia, religião, orientação sexual ou outras características pessoais, para tomar decisões sobre esses indivíduos. Isso poderia levar a um tratamento desigual e injusto, prejudicando certos grupos sociais de forma desproporcional. Por exemplo, se o sistema levasse em consideração informações como a cor da pele ou a religião para classificar indivíduos como mais ou menos propensos a cometer crimes, isso poderia levar a uma discriminação injusta e estigmatização desses grupos. É importante que a utilização de dados no SP Recrim seja baseada em critérios objetivos e relacionados à atividade criminosa dos indivíduos, para evitar qualquer forma de preconceito ou discriminação.

Por derradeiro, a eficácia de sistemas da natureza do SP Recrim em prevenir a reincidência é questionável, de acordo com alguns críticos. Isso se deve em parte à complexidade do processo de prevenção da reincidência, que envolve uma série de fatores, incluindo o acesso a serviços e recursos que ajudem os indivíduos a evitar o retorno ao crime.

Enquanto o SP Recrim pode fornecer informações úteis para os profissionais que trabalham com prevenção da reincidência, ele não é capaz de resolver todos os problemas associados à reincidência. Além disso, o SP Recrim pode ser menos eficaz para lidar com certos tipos de crimes ou com certos tipos de criminosos. Por exemplo, pode haver dificuldades em prevenir a reincidência em casos de crimes violentos, que podem envolver determinações ("causas") diferentes dos casos de crimes não violentos.

Da mesma forma, o SP Recrim pode não ser tão eficaz para lidar com indivíduos que apresentam problemas de saúde mental ou dependência química, que requerem abordagens específicas de prevenção da reincidência.

 


Referências:

BRASIL. Departamento Penitenciário Nacional. Reincidência criminal no Brasil. Relatório preliminar de estudo inédito. Brasília, DF: DEPEN, 2022. Disponível em: https://www.gov.br/depen/pt-br/assuntos/noticias/depen-divulga-relatorio-previo-de-estudo-inedito-sobre-reincidencia-criminal-no-brasil/reincidencia-criminal-no-brasil-2022.pdf/. Acesso em: 13 abr. 2023.

BECKER, Howard. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

CULLEN, Francis T.; JONSON, Cheryl Lero; LATESSA, Allison. The Effectiveness of Correctional Rehabilitation: A Review of Systematic Reviews. Annual Review of Law and Social Science, v. 14, p. 109-128, 2007.

McGUIRE, James. Offender Rehabilitation and Treatment: Effective Programmes and Policies to Reduce Re-Offending. Chichester, West Sussex: Wiley-Blackwell, 2008.

NATIONAL CONFERENCE OF STATE LEGISLATURES. Reducing Recidivism: States Deliver Results. Washington, DC: National Conference of State Legislatures, 2017.

SCHMIDT, P.; WITTE, A. D. Predicting Recidivism Using Survival Models. New York: Springer, 1988.

ZAMBLE, Edward; QUINSEY, Vernon L. The Criminal Recidivism Process. New York: Cambridge University Press, 1997.

 


[1] O modelo de sobrevivência, também conhecido como modelo de análise de sobrevivência ou modelo de risco de tempo, é um tipo de modelo estatístico utilizado para analisar a duração de um evento ou processo até que ocorra um determinado evento de interesse. O evento de interesse pode ser uma morte, falha de um equipamento, recuperação de uma doença, entre outros. No contexto da previsão da reincidência criminal, o modelo de sobrevivência é utilizado para analisar o tempo até que ocorra um novo crime, considerando fatores como a idade, o gênero, o histórico criminal anterior, entre outros. A partir desses dados, é possível estimar a probabilidade de um indivíduo com determinadas características cometer um novo crime em um período específico. Os modelos de sobrevivência são úteis para prever eventos que não ocorrem em todos os indivíduos em um determinado período de tempo e para levar em consideração o tempo decorrido até que o evento ocorra. Eles são amplamente utilizados em diversas áreas, como saúde, engenharia, finanças e, no caso da previsão da reincidência criminal, na justiça criminal e na segurança pública.

Autores

  • é professor de Criminologia, Direito Penal e Direito Processual Penal da Academia de Polícia Dr. Coriolano Nogueira Cobra (Acadepol), da Strong Business School (Strong FGV) e da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS), doutorando e mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC) e delegado de polícia do estado de São Paulo (PC-SP).

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