Segunda Leitura

O pertencimento nas carreiras públicas, local, funções e felicidade

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

23 de abril de 2023, 8h00

Na atual realidade brasileira estamos vivendo um momento de grande movimento de pessoas oriundas de locais diversos nas carreiras públicas. Não que isto fosse inexistente no passado. Sempre houve procura por estados que pagavam melhor e detinham boas condições de vida. A Guanabara, anexada ao estado do Rio de Janeiro pela Lei Complementar nº 20/1974, atraía uma legião de candidatos, por força de bons vencimentos e pelos múltiplos encantos que a cidade do Rio de Janeiro oferecia à época.

Atualmente, contudo, o que era exceção tornou-se algo comum, quase regra. Em concurso para juiz substituto do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo), em 2018, inscreveram-se 23.122 candidatos, inclusive oriundos do Paraná (que teve o maior número de aprovados de fora), RJ, MG, DF, BA, TO, ES e PA. Isto se repete, ora mais, ora menos, em todas unidades da federação..

Esta mudança se deve a várias circunstâncias, a começar pelos vencimentos, que são bons nas carreiras públicas de todos estados. Mas não é só isto. Há também um mercado de trabalho saturado para os advogados, facilidades de inscrição (no passado exigia-se a presença física), comunicação, deslocamento e vedação de qualquer tipo de restrição a candidatos de outros locais.[1]

Pertencer a uma carreira pública significa ser aprovado em um certame disputado por milhares de pessoas. Há os que, realmente vocacionados, direcionam seus esforços apenas para um ou dois concursos. E há os que buscam um cargo público bem remunerado, para ter estabilidade em suas vidas, segurança em um mundo inseguro, acesso a bens materiais e satisfação pessoal no exercício de suas funções.

Vocacionados ou concurseiros, merecem todo o respeito. Estão lutando com armas legítimas para alcançar as suas aspirações. Partem de pressupostos diferentes, mas atuam na forma legítima de um concurso público e não através da bajulação, esperteza mal direcionada ou indicações políticas.

No entanto, o que aqui se analisa não são estes aspectos ou o concurso público, mas sim a consequência deles, ou seja, a felicidade depois da conquista. É dizer, o day after. E aí o foco será apenas aos que, vocacionados ou concurseiros, deslocam-se de seus estados para experimentar uma nova vida a centenas ou até milhares de quilômetros de distância.

A primeira reflexão que faço é a de que quem parte está fugindo de alguma coisa. A fuga pode ser da rotina de uma vida pacata demais, de uma situação econômica indesejada, de um passado que não se deseja lembrar, de um amor não correspondido ou até de uma família problemática. Pode, inclusive, ser inconsciente. Esta afirmação, aparentemente dura, não significa crítica aos que partem. Afinal, eu mesmo parti mais de uma vez, a primeira delas com apenas 24 anos de idade, aprovado em concurso para delegado de Polícia Federal.

Spacca
A segunda observação é para quem tem ou está planejando ter família. Esta decisão tem que ser discutida e decidida a dois. Ir sem a família, com o posterior  ir e vir semanal, é cansativo e caro. Pode levar quem sai a viver sem eles e quem fica a se acostumar sem o ausente. Como alerta Max Gehringer, "empregos são temporários, famílias são para sempre".[2]

Consumado o ato e chegando a outras paragens, surge o risco de chegar, viver, mas não pertencer. Ser um eterno estranho, assim sendo considerado e assim se considerando. Um crítico eterno a revelar, a todos que queiram dar-lhe ouvidos, a sua inadaptação.

Esta forma de conduzir-se leva inevitavelmente ao não pertencimento, à sensação de perda das raízes, disto resultando desinteresse, apatia, pouca comunicação com terceiros, falta de motivação, em suma, um vazio existencial. Certamente, não há melhor descrição de não pertencimento do que a dada por  Günther Anders descrevendo Franz Kafka:

Como judeu não pertencia totalmente ao mundo cristão. Como judeu indiferente (…) não se integrava completamente com os judeus. Por falar alemão, não se amoldava inteiramente aos checos. Como judeu de língua alemã, não se incorporava de todo aos alemães da Boêmia. Como boêmio não pertencia integralmente à Áustria. Como funcionário de uma companhia de seguros de trabalhadores, não se enquadrava por completo na burguesia. Como filho de burguês, não se adaptava de vez ao operariado. Mas também não pertencia ao escritório, pois sentia-se escritor. Escritor também não é, pois sacrifica as suas forças pela família.[3]

Após a posse, o candidato poderá sofrer deste mal por duas razões principais: não se sentir parte do local para onde foi designado ou da carreira pela qual optou. Vejamos ambas, separadamente.

Mudança de estado nunca é algo fácil e as dificuldades crescerão na medida em que a distância seja maior. Certamente menos significativas para alguém da Paraíba, que assume o cargo de AGU (Advocacia-Geral da União) no Rio Grande do Norte, e mais significativas para alguém do Paraná que assume o cargo de defensor público no interior do Pará. O estranhamento pode ir desde a adoção de diferentes autores de livros jurídicos até aos nomes de ruas, quando se homenageiam vultos locais. O humor pode ser diferente, o que é engraçado no Ceará poderá não ser bem recebido em Santa Catarina. A diferença de tratamento à autoridade também varia. Um mineiro, habituado à suavidade do trato com as autoridades, estranhará o hábito gaúcho de não bajular, confundindo-o erroneamente com pouca consideração.

Mas, se o novo local foi o escolhido, de nada adiantará ficar resistindo contra tudo e contra todos. Ao contrário, o que se recomenda é a adaptação e esta será fácil na medida em que o forasteiro procure se integrar, revele interesse pelas coisas locais, aproveite tudo o que há de bom no lugar e não hesite em elogiar, sempre que possível.

Integrar-se não significa abrir mão do passado e criticar seu local de origem. Não precisa renunciar ao seu time de futebol, mas será de boa política adotar um do local e dizer, lá sou X, aqui sou Y. Praticar um esporte, associar-se a um clube, participar de um grupo de pessoas unidas por um interesse comum (v.g., música ou cinema), fazer aquele mestrado adiado em razão do concurso, viajar a cidades próximas em excursões, participar de pescarias, são medidas que sempre ajudam. Bom lembrar que casais com filhos pequenos levam vantagem. Nas reuniões dos pais ou na saída dos alunos das escola que se fazem muitas amizades.

Em se tratando de um casal, a participação do cônjuge será essencial. Se for uma pessoa introvertida, com limitados dotes de inteligência para avaliar a situação ou que não acompanhe a ascensão social da qual está participando em razão do novo cargo do (a) parceiro (a), as dificuldades serão maiores.

Tudo isto pode ser para uma permanência provisória (cargo federal com possibilidade de remoção e retorno) ou definitiva (cargo estadual ou municipal). Pouco importa. Sejam 6 meses ou 60 anos, o melhor a fazer é adaptar-se, aproveitar o que o novo local tem de bom.

Mas o não pertencimento poderá ser sentido em razão do local de trabalho. Morando ou não na própria cidade. Talvez não sendo bem recebido pelos colegas de trabalho, por esta ou aquela razão, ou por perceber que a profissão adotada não é a adequada ao seu temperamento, fazendo com que cada dia seja um sacrifício.

Bem, em tal situação é preciso, acima de tudo, ter calma para enfrentar a situação. Jamais um rompante infantil de largar tudo e voltar para a origem. Esta atitude, além de significar a perda do cargo público, será um amargo regresso. Sim, porque se a saída foi uma vitória, familiares e amigos festejaram a conquista, a volta é a derrota, a tristeza.

A insatisfação com o cargo se resolve com outro concurso. Quem já venceu o primeiro, certamente vencerá o segundo. E aí, com mais maturidade, fará a escolha certa. Por vezes, o temperamento se ajusta muito mais a uma função do que a outra. Aos de temperamento introvertido e que não gostam de receber pessoas, ser defensor público é um inferno. Aos que têm horror ao embate  e preferem a discussão teórica, por certo não se ajustam ao figurino de promotor de Justiça, adaptando-se mais ao magistério superior. Os que levam horas para decidir se compram ou não um livro, jamais devem ser juízes. Os que gostam de um padrão econômico mais elevado, os concursos do foro extrajudicial estão à disposição.

Mas, seja qual for a carreira pública, o mais importante é não ficar a vida toda fazendo o que não gosta, reclamando, desempenhando mal as suas funções, espalhando pessimismo, criando problemas para terceiros. Os reflexos de tal tipo de conduta, físicos ou psicológicos, virão mais cedo ou mais tarde.

Em suma, quando uma pessoa dedica cinco ou mais anos de sua vida a um concurso, abre mão dos prazeres da juventude, em troca de, ao final, ser feliz. Mas a felicidade não se esgota no dia da posse, momento maior da longa peregrinação. Na verdade, é no depois, a depender de como a pessoa se conduz, que as alegrias virão ou não. E com certeza elas não virão se a pessoa não se sentir como parte útil  e respeitada de sua instituição, além de membro plenamente integrado à sua comunidade.


[1] No passado o TJ-SP exigia residência no estado há três anos e o TJSC conhecimentos de fatos ligados à realidade estadual.

[2] GEHRINGER, Max. Aprenda a ser chefe. 4ª. São Paulo: Ed. Integrare, 2014, p.190.

[3] SANDERS, Günther, apud LEITE, Eduardo de Oliveira. Direito e Literatura: A verdade na ficção. Rio de Janeiro: Lumen Jurís. 2023, p. 384.

Autores

  • é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná; pós-doutor pela FSP/USP, mestre e doutor em Direito pela UFPR; desembargador Federal aposentado, ex-Presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª. Região. Foi Secretário Nacional de Justiça, Promotor de Justiça em SP e PR, presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

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