Opinião

Supremo vai dizer se espionagem de advogados anula arbitragem

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22 de abril de 2023, 10h26

Assim como ocorre com as artes, as ciências e os costumes, a história do Direito tem suas camadas, que se transformam com o tempo. Se, no final do século 20, as demandas decorrentes dos conflitos entre o Estado e o cidadão eram as que mais marcaram os tribunais, nos anos recentes foram as questões do Direito Privado que mais se avolumaram. Não por acaso têm-se multiplicado as varas especializadas na área empresarial.

Lesões a direitos, que foram típicas da relação do Estado com o particular, como a interceptação das comunicações — o popular grampo — agora tornam-se objeto de julgamento entre privados. O vigor da indústria da espionagem privada foi exposto em uma estimativa feita por uma associação de profissionais do setor, em 2007, que calculou o estratosférico número de 300 mil brasileiros grampeados. Do total, 15 mil com ordem judicial.

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Essa prática tóxica contamina a lealdade concorrencial, fulmina quem usa a livre iniciativa honestamente e promove a imoralidade empresarial. O Supremo Tribunal Federal tem agora a oportunidade de delimitar as fronteiras desse crime nefasto

O caso concreto está em uma Reclamação Constitucional que trata da espionagem cumulada da violação de sigilo Advogado-Cliente. O pedido foi feito por diversos advogados que tiveram seus e-mails invadidos por quase um ano, enquanto defendiam seu cliente em procedimento arbitral em trâmite perante a Corte Internacional de Arbitragem (ICC Brasil).

No caso, mesmo tendo avisado o tribunal arbitral acerca das investigações iniciadas pela Polícia Civil de São Paulo para apuração da invasão, referido tribunal arbitral nada fez, prolatando, logo em seguida, sentença que ignora os avisos e requerimentos dos advogados espionados durante o curso do procedimento.

A história não parou por aí. Logo após a divulgação da teratológica sentença arbitral, foi proposta ação anulatória no TJ-SP (Tribunal da Justiça de São Paulo), devido à falha no dever de revelação por conta do tribunal, bem como por conta da invasão de comunicações dos advogados durante o procedimento, que no momento da propositura da ação no judiciário, já havia sido confirmada em laudo de perícia criminal.

Surpreendentemente, ao analisar o caso, a juíza da 2ª Vara Empresarial de São Paulo, de maneira teratológica, relativizou de maneira ilegal a falha no dever de revelação do árbitro, que deveria ser absoluto, e colocou em dúvida todo o trabalho da Polícia Civil de São Paulo, afirmando não estar convencida da autoria da invasão, ao mesmo tempo em que, contraditoriamente, constatou ser incontroversa a espionagem de centenas de advogados diretamente envolvidos na arbitragem, no curso desta.

É importante lembrar que o Brasil já foi condenado na Corte Interamericana de Direitos humanos, por ter sido negligente ao tratar a violação da privacidade de seus cidadãos, consubstanciada na realização de grampos ilegais com posterior vazamento à imprensa, sem a devida punição aos responsáveis ou medidas adotadas para evitar a continuidade da situação.

Trata-se do caso "Escher e outros vs. Brasil". As vítimas eram membros de cooperativa e associação de pequenos produtores, entidades que tiveram seus telefones ilegalmente grampeados.

O Caso da Corte de Direitos Humanos
A juíza identificada no caso concedeu dois pedidos de interceptação telefônica sem fundamentar sua decisão, e não respeitou os dois requisitos básicos para a concessão da medida: i) probabilidade de autoria e participação em uma infração penal ou de existência de uma infração penal e ii) a indispensabilidade da prova para a instrução penal. Ademais, os agentes da Polícia Militar não tinham competência para formular tal requerimento e o Ministério Público não foi notificado da diligência

Ao submeter o caso à Corte, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos "considerou que o presente caso representa uma oportunidade valiosa para o aperfeiçoamento da jurisprudência interamericana sobre a tutela do direito à privacidade".

Segundo a Corte, "o âmbito da privacidade caracteriza-se por estar isento e imune a invasões ou agressões abusivas ou arbitrárias por parte de terceiros ou da autoridade pública". Cita precedentes da Corte: Caso dos Massacres de Ituango, supra nota 48, par. 194; Caso Escué Zapata Vs. Colômbia. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 4 de julho de 2007. Série C No. 165, par. 95; e Caso Tristán Donoso, supra nota 9, par. 55.)

Ao formular a acusação, a comissão afirmou "os resultados dos recursos tentados no âmbito interno [Brasil] mostram […] uma série de intromissões na vida privada das vítimas (…), e que o Estado não respondeu com a devida diligência".

Interessante também destacar o seguinte trecho do voto do juiz Sérgio García Ramírez: "a invasão dessa zona reservada outorga um poder imenso a quem a prática e diminui profundamente a autonomia de quem a padece".

A Reclamação Constitucional que visa proteger o sigilo de advogados e clientes
Agora, o Supremo tem a chance de evitar a reiteração do erro Estatal, da omissão jurisdicional, a chancela da violação do Direito à Privacidade, e pior, do Sagrado Sigilo Advogado-Cliente, eis que se encontra diante de um caso de gritante violação a essa garantia pelo judiciário e pela jurisdição privada arbitral.

Isso porque, consta dos autos da Reclamação Constitucional que, enquanto a jurisdição privada agiu no mínimo com negligência diante de fatos tão graves, ao não tomar nenhuma providência após ser avisada das investigações em curso, o juízo estatal, a saber, a 2ª Vara Empresarial de São Paulo, foi além.

Mesmo diante de investigação conclusiva pela perícia criminal da Polícia Civil de São Paulo, a magistrada julgou improcedente a ação anulatória, afirmando, de maneira teratológica, que não estaria convencida da autoria da invasão. Contraditoriamente, reconheceu a violação ao sigilo de centenas de advogados diretamente envolvidos com a defesa de uma mesma parte, durante o curso do procedimento arbitral, sem que isso importasse em qualquer violação ao Devido Processo Legal da arbitragem questionada.

Cabe indiscutivelmente ao Supremo, defender e manter incólume a Constituição, que protege não só a privacidade, como também o devido processo legal, garantia que não pode subsistir sem a observância irrestrita do sigilo das comunicações entre Advogado e Cliente.

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