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Como usar a inovação para desenvolver o mercado de capitais: uma provocação

Autor

  • Isac Costa

    é sócio de Warde Advogados professor do Ibmec do Insper e da LegalBlocks doutor (USP) mestre (FGV) e bacharel (USP) em Direito engenheiro de Computação (ITA) e ex-analista da CVM onde também atuou como assessor do colegiado.

19 de abril de 2023, 8h00

Costumamos não dar muita importância às facilidades extraordinárias que temos hoje e que eram impensáveis no início dos anos 2000. Em 20 anos, nossa sociedade, a economia e a democracia foram radicalmente transformadas — para o bem e para o mal — pelo aumento do fluxo de informações entre pessoas, empresas e instituições. Como teríamos sobrevivido à pandemia de Covid-19 sem internet?

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Contudo, este texto não é mais um "louvor" à tecnologia, mas sim uma provocação sobre como a inovação pode ser utilizada para a superação de modelos de negócios ineficientes e desenvolver o mercado financeiro.

A bolsa brasileira no "big bang" da internet
No final dos anos 1990, a Nettrade foi uma das pioneiras e fornecer acesso à bolsa para investidores de varejo. Poucos anos depois, foi adquirida pela Patagon, que estampou anúncios em revistas sobre como investimentos em bolsa poderiam ser mais cômodos e mais baratos com a utilização da internet — tanto na bolsa brasileira como na de outros países [1]. Naquela época (e ainda por alguns anos depois disso), as taxas de corretagem baseadas no percentual de volume eram impeditivas para a negociação de pequenos lotes.

A repressão ao uso indevido de informação privilegiada e à manipulação de preços em um mercado com poucas companhias abertas e baixa liquidez, associada a uma conjuntura econômica que afastava investidores estrangeiros, resultavam em um contexto pouco favorável ao crescimento do mercado de capitais brasileiro.

A popularidade da bolsa no Brasil só viria a aumentar após a estabilização econômica e a forte tendência de alta entre 2003 e 2008, quando os percentuais de dois dígitos de valorização estamparam as capas de algumas revistas e surgiram os primeiros fóruns de discussão sobre investimentos em ações na internet.

Com o aprimoramento da negociação eletrônica na Bovespa e na BM&F, o fim do pregão viva-voz e a introdução do acesso direto ao mercado, principalmente via home broker, a internet finalmente tornou-se um canal primordial para o mercado de capitais.

Todavia, a tecnologia não foi suficiente para fazer nosso mercado florescer. O setor de fundos de investimentos ainda estava estritamente vinculado a clientes de alta renda ou a fundos pulverizados distribuídos por bancos com elevadas taxas de administração. As safras de IPOs da primeira década de 2000 e a percepção do Brasil como um palco para a listagem de companhias com padrão internacional de governança corporativa foram ofuscadas com a incerteza e o desencanto gerados pela crise de 2008.

Disrupção: fundos estruturados, agentes autônomos e corretagem zero
Após a "terra arrasada" decorrente da crise de 2008, um novo cenário de taxa de juros no país favoreceu a emissão de valores mobiliários de dívida, especialmente debêntures e o gradual crescimento das ofertas de CRI, CRA e FIDC. Ainda, a modernização da regulação de fundos de investimento, especialmente os fundos estruturados, contribuiu substancialmente para o desenvolvimento do setor.

Nesse contexto, merece destaque o modelo de vendas agressivo adotado pela XP, por meio da atuação de agentes autônomos de investimento. Progressivamente, os canais digitais de atendimento tornaram-se mais populares. A competição por clientes com taxas de corretagem cada vez menores levou, de um lado, a melhores condições para negociação no mercado secundário, mas, de outro lado, a um modelo de negócios para as corretoras cuja sustentabilidade viria a ser colocada em xeque.

No final da década passada, antes da pandemia, observamos o aumento do número de gestoras independentes (com alguns "gestores-influencers"), a digitalização das corretoras, a disseminação de escritórios de agentes autônomos e um direcionamento de certas casas de análise a um conteúdo de massa. Naturalmente, o volume de negociação na B3 ganhou proporções inéditas, consolidando o crescimento do mercado secundário brasileiro.

A metade vazia do copo
É importante notar, porém, que, apesar de todo esse crescimento, o custo do capital continuou elevado para as companhias que buscavam o mercado de capitais, incapaz de fazer frente ao mercado bancário como fonte de financiamento da atividade econômica. O número de companhias abertas continuou na casa de poucas centenas, sendo a maior parte das ações com baixíssima liquidez. Investidores de varejo foram induzidos a negociar derivativos com a narrativa de ganhos rápidos pela alavancagem e cursos e influencers "viralizaram" com a difusão do sonho de ficar rico operando na bolsa, explorando vieses cognitivos e a péssima educação financeira em nosso país.

Infraestruturas de mercado financeiro: a chave para a verdadeira disrupção
Devemos somar a esse quadro um dado importante: o ato de concentração entre BVMF e Cetip, que resultou na formação da B3 em 2017. O monopólio da nova e única bolsa brasileira decorreu não apenas do aproveitamento de sinergia entre as duas companhias envolvidas, mas da ineficiência econômica decorrente da existência de mais de uma infraestrutura para depósito centralizado de valores mobiliários.

Por trás das cores dos gráficos e das cotações e das redes sociais financeiras e suas tretas, existe um motor silencioso que é o conjunto de serviços de infraestrutura de mercado financeiro. Esses serviços representam, em essência, sistemas de informação e processos para garantir a segurança na concreção do direito de propriedade (por exemplo, respondendo a perguntas como: quem são os acionistas de uma companhia? Quais são as ações que você detém?) e a garantia do adimplemento das obrigações (o pagamento em dinheiro nas operações com valores mobiliários).

Nesse contexto, a CVM regula as atividades de escrituração e emissão de certificados de valores mobiliários, custódia e depósito centralizado. Ainda, a compensação e liquidação das operações é objeto da Lei nº 10.214/2001 e da regulação pelo Conselho Monetário Nacional e pelo Banco Central (especialmente a Resolução CMN nº 4.952/2021) e também pela B3. A preocupação principal é a estabilidade financeira: ninguém larga a mão de ninguém, todas as obrigações são cumpridas e o jogo continua.

Ocorre que essa infraestrutura é centralizada e apresenta algumas ineficiências e custos indesejados. A interoperabilidade com outros sistemas é um problema adicional, quando consideramos os procedimentos burocráticos e a insegurança na circulação de certos instrumentos financeiros, tais como duplicatas, recebíveis de pagamentos e outros títulos de crédito. Essas dificuldades são experimentadas por fundos de investimento em direitos creditórios e companhias securitizadoras em particular.

Adicionalmente, algumas operações a cargo de administradores fiduciários de fundos de investimento ainda são marcadas por algumas dificuldades tecnológicas, com sistemas isolados e custos de pós-negociação que poderiam ser otimizados. Por fim, a distribuição de valores mobiliários ainda está nas mãos de poucas instituições, muitas delas fortemente ligadas ao setor bancário, fazendo com que nosso mercado de capitais seja um prolongamento dos bancos em alguma medida. Ou seja, queixar-se dos emolumentos da B3 enquanto monopolista é apenas mais uma peça de um quebra-cabeça de ineficiências nas infraestruturas de mercado.

Cartas na mesa
Se pensarmos que as tecnologias descentralizadas permitem a criação de alternativas a cartórios, podemos fazer uma aposta na sua utilização para a transformação do mercado de capitais.

Por exemplo, caso os participantes de mercado criassem uma rede compartilhada com informações sobre os investidores (hoje o cadastro de investidores ainda não é unificado e cada corretora faz o seu) e a propriedade de valores mobiliários (e o registro de títulos e contratos), com a compensação e liquidação programada por meio de ativos virtuais, muitas das ineficiências comentadas acima poderiam ser mitigadas ou mesmo superadas. Há projetos em curso no Brasil que conduzem experiências nesse sentido e a chegada do real digital pode concretizar o open finance no mercado, para além da mera portabilidade de cotas de fundos de investimentos.

Se a troca de dados entre sistemas dos bancos pode fomentar a concorrência no mercado de crédito e de pagamentos, a interoperabilidade nos serviços de infraestrutura de mercado pode mudar radicalmente toda a lógica do sistema de distribuição de valores mobiliários em nosso país, com a redução ou eliminação de alguns intermediários.

O uso das tecnologias de registro descentralizado em infraestruturas de mercado financeiro pode ter um efeito nos custos operacionais da estruturação de emissões de valores mobiliários análogo ao da redução de corretagens em decorrência do surgimento do home broker em conjunto com novos de modelos de negócios das corretoras, abrindo o mercado a um maior número de investidores. Em teoria, a maior eficiência poderia diminuir o custo do capital e aproximar mais empresas do mercado de capitais. Ainda, seria possível abrir caminho para novas bolsas, pois a infraestrutura seria compartilhada (cadastro de usuários e controle da propriedade dos valores mobiliários), com a compensação e liquidação programáveis e entrega contra pagamento em sintonia com o projeto do real digital.

Daqui a 20 anos, a emissão de certificados de recebíveis ou a cessão de créditos em escala podem ser muito mais comuns do que hoje e a abertura de capital pode nem mesmo ser a principal meta de companhias, pois a diversificação de fundos com operações mais eficientes pode oferecer alternativas mais interessantes para a obtenção de financiamento, juntamente com o aumento da concorrência nos intermediários que participam da distribuição dos valores mobiliários em mercado. A existência de múltiplas bolsas no país ou da negociação dos mesmos ativos em diversas bolsas no mundo (como ocorre com as exchanges de criptoativos) pode ser o lugar comum, potencialmente aumentando a liquidez e o público de investidores para além das fronteiras de um único país.

No fim, o que todos desejamos é a circulação do crédito com a menor fricção possível e com as devidas salvaguardas para a estabilidade financeira, transparência das informações e clareza sobre os riscos envolvidos e mecanismos para mitigá-los. O primeiro passo para a mudança começa com o diagnóstico: o que não está bom em nosso mercado? Então, tecnologia e regulação surgem como instrumentos de inovação, dando suporte à criatividade dos agentes de mercado. Regular não é dizer "não", mas ajudar na construção de caminhos seguros para que possamos chegar ao "sim".

 


[1] A Patagon foi adquirida pelo Santander, que descontinuou as atividades da empresa no país por entender que o mercado brasileiro ainda não comportava a participação de um público maior. Utilizando a linguagem de hoje das startups, o produto não ganhou "tração".

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