Opinião

"Loop temporal processual", SUS e a galinha dos ovos de ouro

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18 de abril de 2023, 13h18

Há alguns meses escrevi um artigo aqui na ConJur [1] comentando o desafio a cargo da advocacia pública estadual de vencer a resistência da magistratura estadual e federal em dar cumprimento integral (ao invés de seletivo) à tese de Repercussão Geral fixada pelo STF (Supremo Tribunal Federal) no bojo do RE nº 855.178/SE (Tema 793), que ao confirmar a solidariedade passiva preconizada pelo artigo 196 da Constituição de 1988, nela inseriu alguns temperamentos (a solidariedade no SUS é diferente da solidariedade clássica do Código Civil), ou seja, uma necessária "correção de rumos" que conciliaria a "saúde do paciente" com a "saúde do SUS".

Com efeito, muito embora tenha reafirmado a tese da solidariedade passiva (cidadão ajuíza a demanda em desfavor de qualquer ente), o STF avançou nessa temática de forma a viabilizar o acerto financeiro entre a União, estados e municípios, a fim de que o fenômeno da judicialização da saúde não resultasse em desnaturação da diretriz de descentralização que norteia o SUS (Artigo 198, inciso I), desequilíbrio financeiro e desprogramação orçamentária e nessa perspectiva fixou a seguinte tese para o Tema 793:

"Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro".

Vale dizer: a situação dos estados e municípios ao fornecer um medicamento que, na verdade, deveria ser fornecido pela União Federal não se equivale e nem pode ser pensada sob a mesma ótica de um avalista de um título de crédito (solidariedade clássica), na medida em que que para além dos personagens da relação jurídica individual há todo um sistema de proteção social (SUS) que, assim como a vida e a saúde dos pacientes, também precisa de ser preservado.

Pois bem. Conforme narrado no texto anterior (junho de 2022), a essência de um "loop temporal" é obrigar o personagem de uma história a girar, girar e girar até voltar ao início do ciclo no qual ele está aprisionado. E, desde então, passados alguns meses após a publicação do primeiro texto, essa ciranda de trabalho e retrabalho não parou de rodar e confirmou a sua essência de "loop temporal", ou seja, sempre voltar ao início do ciclo:

– Em setembro de 2022 o Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral dessa mesma temática no bojo do RE 1.366.243/SC (Tema 1.234): Legitimidade passiva da União e competência da Justiça Federal, nas demandas que versem sobre fornecimento de medicamentos registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), mas não padronizados no Sistema Único de Saúde (SUS).

– Em janeiro de 2023 a Procuradoria Geral da República emitiu parecer favorável ao provimento RE 1.366.243/SC (Tema 1.234), ou seja, referendou a tese do litisconsórcio passivo necessário;

– No dia 11 de abril de 2023 o eminente ministro Gilmar Mendes determinou a "suspensão nacional do processamento dos recursos especiais e extraordinários que tratam da questão controvertida no Tema 1.234 da Repercussão Geral, inclusive dos processos em que se discute a aplicação do Tema 793 da Repercussão Geral, até o julgamento definitivo deste recurso extraordinário, ressalvado o deferimento ou ajuste de medidas cautelares".

– No dia 12 de abril de 2023 a 1ª Seção do STJ, por unanimidade, aprovou a seguinte tese jurídica no bojo do IAC/14: "a) Nas hipóteses de ações relativas à saúde intentadas com o objetivo de compelir o Poder Público ao cumprimento de obrigação de fazer consistente na dispensação de medicamentos não inseridos na lista do SUS, mas registrado na Anvisa,deverá prevalecer a competência do juízo de acordo com os entes contra os quais a parte autora elegeu demandar. b) as regras de repartição de competência administrativas do SUS não devem ser invocadas pelos magistrados para fins de alteração ou ampliação do polo passivo delineado pela parte no momento da propositura ação, mas tão somente para fins de redirecionar o cumprimento da sentença ou determinar o ressarcimento da entidade federada que suportou o ônus financeiro no lugar do ente público competente, não sendo o conflito de competência a via adequada para discutir a legitimidade ad causam, à luz da Lei n. 8.080/1990, ou a nulidade das decisões proferidas pelo Juízo estadual ou federal, questões que devem ser analisada no bojo da ação principal. c) a competência da Justiça Federal, nos termos do art. 109, I, da CF/88, é determinada por critério objetivo, em regra, em razão das pessoas que figuram no polo passivo da demanda (competência ratione personae), competindo ao Juízo federal decidir sobre o interesse da União no processo (Súmula 150 do STJ), não cabendo ao Juízo estadual, ao receber os autos que lhe foram restituídos em vista da exclusão do ente federal do feito, suscitar conflito de competência (Súmula 254 do STJ)".

Ou seja, apesar dos sinais claros que já foram dados pelo guardião da Constituição acerca da natureza constitucional dessa questão (Repercussão geral reconhecida no RE 1.366.243/SC — Tema 1.234), do parecer favorável da PGR referendando a tese do litisconsórcio passivo necessário com a União e da decisão do ministro Gilmar Mendes proferida no dia 11.04.2023, que considerou "imprescindível aprofundar o conceito constitucional de solidariedade, municiando a Federação dos mecanismos, protocolos e fluxogramas necessários para assegurar o acesso efetivo da população a direito fundamental, sem desequilíbrio financeiro e desprogramação orçamentária", o STJ, no dia seguinte, voltou a insistir nessa temática (de natureza constitucional, ou seja, da alçada do STF) de não inclusão da União Federal nos processos (que deverão permanecer na Justiça estadual), o que, na prática, considerando a eficácia subjetiva da coisa julgada [2], praticamente inviabiliza o sistema de compensação dos ônus financeiros, na medida em que:

– O juiz não pode, sem importar em ofensa ao devido processo legal, contraditório e ampla defesa, condenar alguém (no caso a União) que sequer faz parte da lide a promover qualquer ressarcimento;

– Caso condene, essa condenação não tem eficácia em relação ao terceiro (União) na forma dos artigos 506 e 535, inciso I do CPC.

Nesse contexto, muito embora tenhamos, de fato, voltado a "estaca zero" por mais uma decisão do STJ no bojo do IAC/14 (a roda girou, girou e voltou ao mesmo lugar), a fundamentação contida na decisão proferida no dia anterior pelo ministro Gilmar Mendes traz um alento e uma esperança de que o tema da solidariedade passiva estabelecida pelo artigo 196 da Constituição será tratado com uma visão macro do sistema ao invés da visão clássica e individualista do Código Civil e que a União ("dona do cofre" e ente responsável pela tomada das decisões estruturantes) não irá continuar assistindo "em berço esplêndido" os estados e municípios sendo injustamente onerados pelo cumprimento de obrigações suas e sem garantia alguma do ressarcimento do ônus financeiro.

E de outra forma não poderia ser, já que é absolutamente equivocado pensar que defender o correto funcionamento do SUS vai contra o direito dos seus respectivos pacientes. Essa é, aliás, a razão de ser da 2ª parte do Tema 793 e agora do Tema 1.234: permitir a assistência integral ao usuário do SUS (mantida a solidariedade) sem que isso importe no "adoecimento" gradual do próprio sistema (pelo desarranjo orçamentário ocasionado pelo cumprimento de obrigações por um ente no lugar do outro cumulado com óbices intransponíveis ao efetivo ressarcimento):

"A síntese da questão controvertida, embora corretamente delimitada diante do quadro processual que chegou ao Supremo Tribunal Federal, pode induzir o intérprete a concluir equivocadamente que se trata de mera discussão acerca da competência de ramos da Justiça ou sobre a legitimidade processual da União. Seria um equívoco que esta Corte percebesse a matéria apenas nesses termos, desconsiderando a rede de relações e estruturas federativas que enfeixam a concretização do direito fundamental à saúde, no qual o Poder Judiciário em regra desempenha função apenas lateral, usualmente deflagrada por conta de aspectos pontualmente defeituosos de uma política pública abrangente. Noutros termos, essa controvérsia, profunda em suas origens e sistêmica em suas consequências, não será resolvida apenas com uma decisão judicial. Pelo contrário, o próprio dissenso engendrado pelo julgamento do Tema 793 evidenciou que dilemas estruturais dessa natureza dificilmente são solucionados pela atuação jurisdicional, ainda que bem intencionada. É importante recordar que não estamos a falar aqui em simples interpretação de normas jurídicas ou distribuição de competências judiciais. Há uma política pública a ser aperfeiçoada, em processo que se mostre verdadeiramente estruturante. Nessa linha, o enfrentamento adequado do tema impõe abordagem que contemple todo o processo de prestação de ações e serviços de saúde pelo Estado brasileiro, desde o custeio até a compensação financeira entre os entes federativos, abrangendo os medicamentos padronizados e os não incorporados pelo Sistema Único de Saúde. Não basta afirmar quem é responsável pela entrega do medicamento e deve compor o polo passivo em ação judicial, mostra-se imprescindível aprofundar o conceito constitucional de solidariedade, municiando a Federação dos mecanismos, protocolos e fluxogramas necessários para assegurar o acesso efetivo da população a direito fundamental, sem desequilíbrio financeiro e desprogramação orçamentária" (Trecho de decisão proferida pelo ministro Gilmar Mendes no bojo do RE 1.366.243/SC — Tema 1.234).

A defesa da tese da solidariedade pura (Poder Judiciário condena qualquer um dos entes públicos a fornecer medicamentos para um paciente do SUS e deixa a questão do ressarcimento para resolver depois — Depois quando? Depois como?) em ações dessa natureza, além de bem-intencionada, é realmente sedutora. Todavia, tomando emprestado algumas frases da literatura.

– "No meio do caminho tinha uma pedra" [3]: a tese, apesar de sedutora e bem-intencionada, enxerga o problema numa perspectiva de curto prazo (míope). Ao olhar para o macro o operador do Direito percebe que há uma pedra no meio do caminho.

– "As consequências vêm sempre depois" [4]: decisões judiciais amparadas na tese da solidariedade clássica do Código Civil resolvem a vida do paciente "a" ou "b", autor da demanda judicial, mas considerando que "saúde não tem preço. Mas tem custo" [5]. resultam em inegável "desequilíbrio financeiro e desprogramação orçamentária", com reflexos deletérios inequívocos aos demais usuários do SUS.

Nesse sentido, guardadas as devidas proporções, interessante é o ensinamento trazido pela fábula A Galinha dos Ovos de Ouro em que o fazendeiro sentiu na pele o mau negócio de ter matado a galinha ao invés de ter apostado na sua longevidade. Com efeito, não há como negar que os maiores interessados em que o SUS funcione (e funcione adequadamente) são os seus respectivos usuários. Assim, embora possa parecer por vezes antipática, a estratégia da Advocacia Pública estadual de defender o bom funcionamento do SUS é sinônimo de defender a saúde e a vida de quem dele precisa, o que vem de encontro ao parecer da PGR e à recente decisão proferida pelo eminente ministro Gilmar Mendes no bojo do RE 1.366.243/SC (Tema 1.234).

Post scriptum:
Neste tema específico, o operador do direito pode até morrer de susto, mas nunca de tédio. Após o envio do texto à ConJur tomei conhecimento hoje (18/4) de uma nova decisão proferida pelo ministro Gilmar Mendes no bojo do RE 1.366.243 (Tema 1234). Trata-se do deferimento parcial de um pedido de tutela provisória de urgência formulado pelo Colégio Nacional de Procuradores Gerais dos Estados e do DF (Conpeg), estabelecendo algumas diretrizes que, na prática, resultam em um alinhamento mínimo entre a atuação do Poder Judiciário e a forma pela qual se estrutura a política pública de fornecimento de medicamentos no país.

A fundamentação trazida nessa nova decisão renova a esperança de que o conceito de solidariedade passiva será trabalhado com uma visão macro que preserva o paciente mas também protege o SUS (consegue enxergar a "pedra no meio do caminho") ao invés da visão míope da solidariedade clássica, que ao não enxergar a pedra, põe em risco a longevidade do sistema (mata a galinha).


[2] Art. 506. A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não prejudicando terceiros.

[3] Carlos Drummond de Andrade

[4] Personagem Conselheiro Acácio, do romance Primo Basílio, de Eça de Queiroz

[5] Trecho de um texto escrito por Juliano Gasparetto e publicado no Correio Braziliense em 20/7/2022 (https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2022/07/5023338-artigo-saude-nao-tem-preco-mas-tem-custo.html)

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