Opinião

Consequências da decisão do STJ em incidente de assunção de competência

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28 de junho de 2022, 11h19

O brasileiro é, de forma geral, um povo de fé. Ter "fé na vida, fé no homem, fé no que virá" [1] parece ser o destino de quem nasceu nessa terra que um dia já foi chamada de "oaís do futuro" e que não perde a esperança de que apesar dos pesares "amanhã há de ser outro dia" [2].

O pequenino "grão de mostarda" tem o seu destino transformado, abandonando a treva e o frio da terra em busca da luz, quando cruza o seu destino com um "homem de fé" que nele investe seu tempo, dinheiro e trabalho sem garantia alguma de retorno. E a exemplo do homem do campo, parece ser também destino do operador do Direito a missão de ter fé e sempre acreditar… Acreditar na promessa da Constituição de 1988 e do CPC de uma "razoável duração do processo", acreditar na "primazia da decisão do mérito" e acreditar que a nossa jurisprudência um dia se tornará estável, íntegra e coerente.

E por falar em primazia da decisão de mérito, após longos e longos anos de intensa discussão o Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento dos embargos de declaração no bojo do RE nº 855.178/SE (Tema 793), fixou a seguinte tese de repercussão geral:

"Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro".

Ou seja, foram incluídos alguns temperamentos na tese da solidariedade e o efetivo cumprimento de obrigação relacionada com a saúde pública deve ser direcionado ao ente responsável conforme a repartição de competências existentes no SUS, com a ressalva expressa de que caso a tecnologia não esteja ainda padronizada (em todas as suas hipóteses) a União Federal deverá, obrigatoriamente, compor o polo passivo:

"v) Se a pretensão veicular pedido de tratamento, procedimento, material ou medicamento não incluído nas políticas públicas (em todas as suas hipóteses), a União necessariamente comporá o polo passivo, considerando que o Ministério da Saúde detém competência para a incorporação, exclusão ou alteração de novos medicamentos, produtos, procedimentos, bem como constituição ou a alteração de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica (artigo 19-Q, Lei 8.080/90), de modo que recai sobre ela o dever de indicar o motivo da não padronização e eventualmente iniciar o procedimento de análise de inclusão, nos termos da fundamentação".

Maravilha! Hora de "arregaçar as mangas" e mergulhar na discussão do mérito (aquele mérito que deve — ou pelo menos deveria — ter primazia), certo? Errado! Mesmo depois da definição dessa questão pelo STF o que se viu foi uma (certa) resistência da magistratura estadual em cumprir a tese relativa ao Tema 793 a partir da premissa (com todas as vênias equivocada) de que a inclusão da União nas demandas de saúde ajuizadas perante a Justiça estadual só deveria ocorrer nas hipóteses de medicamentos não registrados na Anvisa (Tema 500).

Mas depois de vencida essa resistência inicial na Justiça estadual essa questão processual e periférica foi abandonada e passou-se à discussão do mérito propriamente dito, certo? Errado! Houve (forte) resistência da magistratura federal em absorver esse acervo de processos, que foram devolvidos diretamente para a Justiça estadual (com base no enunciado de súmula 150 do STJ e a partir da suposta inexistência de interesse jurídico da União da causa) ou com base em decisões judiciais proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça em sede de conflitos de competência (Nesse sentido AgInt no CC 183809/PR, julgado em 14/06/2022).

Foi preciso então que o Supremo acolhesse pedidos formulados em sede de reclamações ajuizadas pelos Estados federados (por exemplo: AG.REG. NA RECLAMAÇÃO 50.456) para que essa resistência encontrada no âmbito da Justiça Federal fosse aos poucos vencida. E o que se observa, no momento, é o início da reversão dessa tendência, com decisões no âmbito da Justiça Federal acolhendo a competência declinada pelos Juízes estaduais, trazendo novamente a esperança de que as partes litigantes, finalmente, irão se debruçar sobre o mérito e que as promessas da Constituição e do CPC irão, finalmente, se impor e concretizar. Ledo engano desses "homens de pouca fé"

Essa esperança novamente se desfez e o quadro que se avizinha é de retorno a "estaca zero" com a renovação da discussão sobre quem deve compor o polo passivo nesses processos e qual órgão jurisdicional deve examiná-los a partir da admissão, em 13/06/2022, de um Incidente de Assunção de Competência proposto nos Conflitos de Competência nº 187276/RS, 187533/SC e 188002/SC (Tema 14) com a seguinte questão submetida a julgamento: "Tratando-se de medicamento não incluído nas políticas públicas, mas devidamente registrado na Anvisa, analisar se compete ao autor a faculdade de eleger contra quem pretende demandar, em face da responsabilidade solidária dos entes federados na prestação de saúde, e, em consequência, examinar se é indevida a inclusão da União no polo passivo da demanda, seja por ato de ofício, seja por intimação da parte para emendar a inicial, sem prévia consulta à Justiça Federal".

Sem prejuízo da admissão do incidente, a 1.ª Seção deliberou que "até o julgamento definitivo do incidente de assunção de competência (IAC), o Juiz estadual deverá abster-se de praticar qualquer ato judicial de declinação de competência nas ações que versem sobre tema idêntico ao destes autos, de modo que o processo deve prosseguir na jurisdição estadual, nos termos da questão de ordem proposta pelo senhor ministro relator".

A impressão que ficou depois dessa (nova! Mais uma!) reviravolta é que o operador do Direito que atua diariamente em demandas dessa natureza foi incluído numa espécie de "loop temporal", uma estrutura de narrativa que aparece em filmes ou histórias em que os personagens são obrigados a viver (e reviver infinitamente!) o mesmo período de tempo (dias, horas etc), sempre retornando ao início do ciclo no qual estão aprisionados. Trata-se nesse caso das ações judiciais envolvendo medicamentos não padronizados de uma espécie de "loop temporal processual" em que a discussão do mérito fica (mais uma vez) postergada (para sabe-se lá quando), a fim de que sejam (re) discutidas questões que já haviam sido definidas pelo STF, o que não combina, em absoluto, com primazia do mérito, com a razoável duração do processo e, sobretudo, com a prometida estabilidade, integridade e coerência da nossa jurisprudência.

E se a situação de perplexidade do advogado é grande (Em qual órgão jurisdicional e contra quais entes públicos propor a demanda envolvendo a saúde?) mais difícil é a situação da magistratura estadual, imersa que está em um DILEMA de ter que escolher qual decisão irá cumprir e, consequentemente, qual decisão será obrigada a descumprir. Explico: o STF vem decidindo no bojo das reclamações que lhe são dirigidas que a presença obrigatória da União nos processos judiciais envolvendo tecnologias não incorporadas ao SUS configura hipótese típica de litisconsórcio passivo necessário. E de outra forma não poderia ser, pois se a presença da União é obrigatória o litisconsórcio é necessário. Nesse sentido acórdão proferido no bojo do AG.REG. NA RECLAMAÇÃO 50.456:

"1. Ao apreciar o RE 855.178-ED, processo piloto do Tema 793 da sistemática da repercussão geral, do qual fui redator designado para o acórdão, DJe 16.4.2020, o Plenário do Supremo Tribunal Federal concluiu pela responsabilidade solidária dos entes federados pelo dever de prestar assistência à saúde.
2. Revelando a
necessidade da formação de um litisconsorte necessário, esta Corte assentou o dever da autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competência e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro.
3. Uma vez que o medicamento em questão não foi incorporado ao SUS e que é a União a detentora de competência administrativa para a incorporação de novas tecnologias, incumbe à autoridade reclamada, na linha do que decidido no Tema 793, determinar a inclusão do citado ente federado no polo passivo da demanda, com a consequente remessa dos autos à Justiça Federal, devendo o fornecimento do medicamento ser mantido até a apreciação da matéria pelo juízo competente".

Assim, em cumprimento a precedente vinculativo do STF (a presença da União é obrigatória!) e na esteira do artigo 114 do CPC [3] a eficácia da sentença a ser proferida ao final dessas demandas que se buscam tecnologias não incorporadas ao SUS pressupõe a integração na lide da União.

Ocorre que no bojo do já mencionado Incidente de Assunção de Competência (Tema 14) o Superior Tribunal de Justiça deliberou que "até o julgamento definitivo do incidente de assunção de competência (IAC), o Juiz estadual deverá abster-se de praticar qualquer ato judicial de declinação de competência nas ações que versem sobre tema idêntico ao destes autos, de modo que o processo deve prosseguir na jurisdição estadual, nos termos da questão de ordem proposta pelo senhor ministro relator".

Reside aí o cerne do problema: o STF disse que o caso é de litisconsórcio passivo necessário, ou seja, a eficácia da sentença pressupõe a inclusão (obrigatória) da União no polo passivo do processo (e, consequentemente, a remessa dos autos para a Justiça Federal). Todavia, paralelamente, essa providência não pode ser adotada porque a magistratura estadual está impedida, por decisão do STJ no IAC, de remeter os autos para a Justiça Federal (consequência natural da — obrigatória — inclusão da União Federal no processo).

Vale dizer: o Juiz estadual, ao cumprir a decisão do STF (inclui a União no processo e, consequentemente, remete os autos para a Justiça Federal), se vê obrigado a descumprir a decisão do STJ (proíbe a declinação da competência). Por outro lado, se optar por cumprir a decisão do STJ, se vê obrigado a descumprir a decisão do STF e, pior, deverá prosseguir com o processo (não foi determinada ou autorizada a suspensão dos processos) embora a lei processual (Artigo 114 do CPC) seja clara no sentido de que a eficácia da sentença nesses casos de litisconsórcio passivo necessário pressupõe a inclusão na lide da União.

Assim, a única solução que resta à magistratura estadual, de forma de conciliar dois posicionamentos antagônicos das duas Cortes Superiores e, paralelamente, cumprir a Lei processual (artigo 115, parágrafo único [4], do CPC) é a extinção de todas essas demandas, sem resolução de mérito. Com efeito, tratando-se de hipótese de litisconsórcio passivo necessário (tese do STF no Tema 793) a presença da União é condição para eficácia da sentença. E estando vedada tal providência (decisão do STJ no IAC — Tema 14) não resta ao magistrado outra solução diferente daquela preconizada pelo artigo 115, parágrafo único, do CPC.

Quanto à advocacia, além de muita fé e uma boa dose de persistência ("A esperança equilibrista sabe que o show de todo artista tem que continuar" [5]), a única garantia de ver, finalmente, direcionada a discussão para o mérito, com alguma chance de desvinculá-la dessa temática periférica, é a propositura das demandas envolvendo tecnologias não incorporadas ao SUS diretamente na Justiça Federal e mediante a inclusão da União no polo passivo já na petição inicial.


[1] Trecho da música "Nunca pare de sonhar" de Gonzaguinha

[2] Trecho da música "Apesar de você" de Chico Buarque

[3] Artigo 114. O litisconsórcio será necessário por disposição de lei ou quando, pela natureza da relação jurídica controvertida, a eficácia da sentença depender da citação de todos que devam ser litisconsortes.

[4] Artigo 115. A sentença de mérito, quando proferida sem a integração do contraditório, será: Parágrafo único. Nos casos de litisconsórcio passivo necessário, o juiz determinará ao autor que requeira a citação de todos que devam ser litisconsortes, dentro do prazo que assinar, sob pena de extinção do processo.

[5] Trecho da música "O Bêbado e o Equilibrista" de Elis Regina

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