Opinião

Vega González v. Chile: imprescritibilidade nos crimes de lesa humanidade

Autores

  • Atalá Correia

    é professor do IDP (Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa) doutor em Direito Civil pela USP (Universidade de São Paulo) e juiz de direito no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios.

  • Beatriz Diniz Canedo

    É estudante de Direito do Instituto de Direito Público de Brasília (IDP).

17 de abril de 2023, 12h22

A Corte Interamericana de Direitos Humanos tem exercido relevante influência no Direito interno dos países latinoamericanos, induzindo a adoção de mudanças significativas em prol dos direitos fundamentais. Em razão disso, seus julgamentos têm ganhado paulatinamente mais espaço nos debates jurídicos e políticos nesses países, incluindo o Brasil. É nesse contexto que chama atenção o caso Vega González e outros versus Chile, ainda pendente de julgamento.

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General Augusto Pinochet (1915-2006)
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O caso trata sobre as supostas violações que o Estado chileno teria incorrido às garantias judiciais e proteção judicial (artigos 8 e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos) como resultado da aplicação pela Suprema Corte do Chile de um instituto jurídico sui generis, existe apenas naquele país, denominado meia-prescrição, que acabou por beneficiar acusados de crimes de lesa-humanidade em 14 processos judiciais.  

Para nos aprofundarmos no tema, é necessário fazer uma pequena digressão sobre o contexto e o marco fático dos processos em análise. Os julgamentos contra os crimes perpetrados durante a ditadura militar (1973-1990) começaram a avançar no ordenamento chileno no início dos anos 2000, tendo a primeira sentença condenatória por um desaparecimento forçado (caso Sandoval Rodriguez) sido prolatada em 2004. Tal decisão foi seguida por novas sentenças no mesmo sentido, sendo todas elas condenatórias com penas efetivas de cárcere.

No ano de 2006, a Corte Suprema do Chile também reconheceu que os crimes cometidos por agentes da ditadura são imprescritíveis por se tratarem de delitos de lesa humanidade [1]. Assim, o Chile se tornava uma referência latinoamericana quanto a punição às graves violações aos direitos humanos por meio de sua adesão ao direito internacional e humanitário. De fato, muitas vezes, a Corte IDH indicou que "a prescrição da ação penal é inadmissível e inaplicável quando se trata de violações muito graves aos direitos humanos nos termos do Direito Internacional" [2].

Todavia, em 30 de julho de 2007 a Corte Suprema do Chile começou a aplicar o instituto da prescrição gradual nos crimes consumados por agentes de estado, reduzindo de maneira significativa a pena imposta aos responsáveis, que em sua grande maioria foram beneficiados com a outorga de penas substitutivas ou alternativas ao cárcere. Para se ter uma ideia, dos 46 agentes condenados nos 14 processos analisados, 41 se viram beneficiados com penas alternativas e apenas cinco foram submetidos à pena de prisão.

Tal como ocorre em nosso país, o Código Penal chileno traz regras relativas à prescrição da pretensão punitiva e da pretensão executória, mas estabelece um prazo geral de dez anos. Há diversas causas de suspensão relevantes. De todo modo, o legislador pretendeu dar resposta para a aparente injustiça daqueles que, ao final do prazo, são processados e punidos com penas tão duras quanto aquelas aplicáveis para a pessoa presa em flagrante. Então, introduziu a ideia de uma prescrição gradual.

Quanto maior o tempo transcorrido para o exercício da pretensão, menor a pena possível. De modo mais específico, escolheu-se o marco temporal da metade do prazo. Em outras palavras, quem só é alvo das pretensões estatais após o decurso de meio prazo, tem sua pena reduzida [3]. Trata-se de ficção jurídica, que impõe a aplicação ficta de duas circunstâncias atenuantes e nenhuma agravante ao caso concreto, de forma a minorar de maneira significativa a pena estabelecida.

No centro da controvérsia reside a classificação da meia-prescrição. A Corte Suprema do Chile considerou que os crimes de desaparecimento forçado são imprescritíveis, mas que, todavia, a meia-prescrição não diz respeito à prescrição. Sua natureza sui generis estaria mais próxima de uma atenuante ou causa de redução de pena. Assim, chegou-se ao contraditório resultado da possibilidade de aplicação do instituto da meia-prescrição para crimes imprescritíveis.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanas apresentou o caso à Corte, atendendo a pedido dos familiares das vítimas, sob o argumento de que os graves crimes contra direitos humanos não haviam sido sancionados adequadamente. Nesse sentido, vale lembrar que o parágrafo primeiro do artigo 77 do Estatuto de Roma (utilizado subsidiariamente como fonte de direito internacional) estabelece que os Estados devem impor "pena de prisão por um número determinado de anos" à pessoa condenada por um delito de competência da corte penal internacional.

Durante a sessão de instrução do caso, ocorrida no dia 1º de fevereiro de 2023 [4], os representantes das vítimas enfatizaram esse argumento, ao defender que as sentenças condenatórias proferidas pela Corte Suprema não deveriam possuir autoridade de coisa julgada, pois conformam coisa julgada fraudulenta. Visaram, com isso, possibilitar a anulação das decisões e o rejulgamento dos casos com imposição de penas adequadas.

O Estado chileno reconheceu que a interpretação dada por sua Corte Suprema está equivocada, comprometendo-se a melhoria de sua legislação interna. Entretanto, defendeu a impossibilidade de superação da coisa julgada. Argumentou que a aplicação equivocada de um instituto jurídico pela Corte Suprema não caracterizaria uma fraude processual. Dessa forma, sustentou que uma sentença que está afetada por vícios graves deve diferenciar-se de uma aplicação equivocada da lei. A intencionalidade só pode ser presumida em condutas abusivas, em infrações conscientes de regras, mas não em erros de interpretação do direito, de forma que uma sentença pode ser válida ainda que injusta.

Naturalmente, será necessário aguardar a manifestação final da Corte IDH para avaliar os impactos do referido caso sobre as legislações nacionais. A controvérsia em análise permitirá que a Corte IDH se aprofunde sobre temas de extrema relevância para o Direito Internacional, como o alcance da regra de imprescritibilidade, a adequação das sanções penais nos crimes de lesa humanidade e sobre os limites da coisa julgada.

De nossa parte, pensamos que o instituto da meia-prescrição resultou contrário ao ordenamento jurídico. As reduções de pena ou atenuantes devem ser aplicadas em atenção à conduta do agente e à pouca reprovabilidade de sua ação. A prescrição, por sua vez, existe em função da passagem do tempo e de seus efeitos. Assim, a meia-prescrição, que tem como causa tão só o decurso do prazo, não pode ser tratada como causa de redução da culpabilidade. Note-se que a imprescritibilidade dos crimes graves contra direitos humanos existe porque, em regra, eles são praticados pelo Estado, ou com conivência deste, razão pela qual não se pode premiar a omissão de quem deveria atuar na salvaguarda dos direitos fundamentais. A imprescritibilidade geral existe para se evitar impunidade sistêmica e ela deve se desdobrar para o tema da meia-prescrição. Aqui, mais que nunca, aplica-se o brocardo segundo o qual o que está errado há mais de cem anos, não se torna correto com o passar dos dias.

De todo modo, como anteriormente destacado, esse ponto e os demais só estarão bem esclarecidos quando da decisão final da Corte Internacional de Direitos Humanos, a qual deve acontecer ainda este ano.


[1] Uma contextualização do tema da imprescritibilidade pode ser vista em JORGE SANTOS, C. Prescrição Penal e Imprescritibilidade. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010, p. 121 e seguintes; em Herzog e Outros vs. Brasil, item 222 e em CORREIA, Atalá. Prescrição: entre o passado e o futuro. 1. ed. São Paulo: Almedina, 2021, p. 277 e seguintes.

[2] Albán Cornejo vs. Equador, item 111.

[3] O artigo 103, do Código Penal Chileno, estabelece que "si el responsable se presentare o fuere habido antes de completar el tiempo de a prescripción de la acción penal o de la pena, pero habiendo ya trascurrido la mitad del que se exige, en sus respectivos casos, para tales prescripciones, deberá el tribunal considerar el hecho como revestido de dos o más circunstancias atenuantes muy calificadas y de ninguna agravante y aplicar las reglas de los artigos 65, 66, 67 y 68, sea en la imposición de la pena, sea para disminuir la ya impuesta. Esta regla no se aplica a las prescripciones de las faltas y especiales de corto tiempo".

Autores

  • é professor do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo e juiz de Direito no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. É co-responsável pela coordenação acadêmica do IX Fórum de Lisboa.

  • É estudante de Direito do Instituto de Direito Público de Brasília (IDP).

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