Opinião

Violência obstétrica e a urgência de regulamentação legal

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13 de abril de 2023, 6h11

O conceito de violência obstétrica não tem uma definição única, o que reflete as dificuldades em torno da sua caracterização fática. Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde, 2014), essa prática contempla "abusos verbais, restringir a presença de acompanhante, procedimentos médicos não consentidos, violação de privacidade, recusa em administrar analgésicos, violência física, entre outros". Assim, esse tipo de violência não contempla somente as lesões ocorridas durante o parto, mas também o pré-natal, o trabalho de parto, o parto e o pós-parto. Nesse sentido, os abusos podem ser derivados tanto nos excessos físicos, como se verifica na manobra de Kristeller [1]; verbais, quando ocorre a prática de xingamentos ou ameaças a parturientes; e institucionais, quando se verifica a recusa de assistência médica e leitos disponíveis (VELOSO; SERRA, 2016). Há também um tipo de violência obstétrica que se caracteriza pela violação à integridade sexual da parturiente. Nesse quadro, até mesmo o aborto nos casos previstos em lei, conforme o rol estabelecido no artigo 128, I e II do Código Penal, quando negado, configura-se como violência obstétrica por não levar em consideração o risco a vida da mulher e o descumprimento de um direito.

Desse modo, muito embora ainda seja uma realidade invisibilizada do ponto de vista jurídico, dada a sua complexidade e ausência de regulamentação legal, a popularização das mídias sociais contribuiu para conferir notoriedade a alguns episódios [2] dessa prática violenta, como o caso do médico anestesista Giovanni Quintella Bezerra, amplamente divulgado na mídia, que praticou estupro com a paciente sob efeitos de anestésicos durante o procedimento de cesária. Desse modo, impõe-se a necessidade da formulação de uma agenda de discussão que contribua para o desenvolvimento de quadros normativos que visem à proteção integral da parturiente.

Não por outro motivo, foi editada no Brasil a lei do acompanhante (n° 11.108/2005), que em termos prevê o direito de ter um acompanhante, durante todo o trabalho de parto e pós-parto, indicado pela própria parturiente. Entretanto, entende-se que as disposições constantes no referido diploma legal, muito embora se caracterizem como um avanço na questão, expresso, por exemplo, na possibilidade de doulas acompanharem os procedimentos médicos, não são suficientes para resguardar de forma mais ampla a segurança da parturiente e da criança. Não há no citado diploma legal o delineamento de instrumentos capazes de garantir que a presença do acompanhante seja eficaz para viabilizar a segurança da parturiente, já que os responsáveis por assumir esse posto, em geral, são pessoas do círculo afetivo e social da mulher, familiares, amigos ou o próprio marido. Nesse mesmo sentido, inexiste na lei uma explicitação do que eventualmente pode configurar a prática abusiva, de forma que o mero acompanhamento, apesar de contribuir, não é garantia de proteção à integridade.

Outras iniciativas fora do escopo legislativo como a Rede pela Humanização do Parto e do Nascimento (Rehuna), instituição atuante desde 1993 com o intuito de divulgar e prestar assistência aos cuidados perinatais; o Programa de Humanização do Pré-Natal e Nascimento (PHPN), criado em 2000 pelo Ministério da Saúde; a Rede de Atenção Materno Infantil (Rami), criada pelo Ministério da Saúde em 2022, que busca implementar rede interligada de assistência à gestante, puérpera e ao recém-nascido, além de assegurar a adequada atuação dos profissionais; a resolução n° 561 do Conselho Nacional de Saúde, de 2017, dispõe — além do aspecto da promoção do parto humanizado e de uma assistência qualificada — acerca de penas nos âmbitos civil, penal e administrativo a todo e qualquer profissional que pratica ações que configuram a violência obstétrica, dando prioridade, nesse sentido, ao direito das mulheres; e também as campanhas "Sim, a violência obstétrica existe e o Conselho Nacional de Justiça a reconhece" promovida pelo Rehuna e o Dia Mundial da Segurança do Paciente 2021, cuja temática se voltou ao "Cuidado materno e neonatal seguro", promovido pela OMS com apoio da Anvisa, podem ser citados como ações que buscaram contribuir nas discussões sobre a problemática e suas repercussões negativas. No entanto, mesmo sendo importantes iniciativas, os programas e as campanhas referidas esbarram na falta de investimentos de caráter permanente e esse contexto dificulta a implementação de medidas efetivas.

Assim, pelo menos três elementos contribuem na explicação da ausência de um quadro legal que tenha como objetivo proteger de forma plena a parturiente e a criança. O primeiro deles diz respeito ao tratamento vago conferido pelos órgãos que desempenham a fiscalização da atividade dos profissionais da saúde e demais categorias que lidam com a questão. Como exemplo, cita-se que a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e o Ministério da Saúde consideram a denominação "violência obstétrica" como incorreta, uma vez que, segundo os órgãos citados, a conduta do agente de saúde não porta intenção de dano a paciente. Acontece que esse argumento não pode ser tomado plenamente como válido. Explica-se.

Não é por ausência do elemento volitivo do dolo, que se elimina a culpabilidade do sujeito, assim, a conduta, se tipificada e regulamentada penalmente, mesmo sem intenção de gerar prejuízo à terceiro, pode se configurar como crime culposo. Outro tratamento incoerente, que de certa forma, legitima a interpretação de possível flexibilização de condutas vinculadas a violência obstétrica, se deu a partir do CFM (Conselho Federal de Medicina), com o parágrafo 2° do artigo 5° da resolução nº 2.232 de 2019, em que dispõe sobre a possibilidade do profissional da saúde realizar intervenções médicas às gestantes, sem caracterização emergencial e contra sua vontade.

O segundo elemento a ser considerado é a organização estritamente masculina dos espaços de poder, o que impacta em um "[…] sistema de direito masculino universal à apropriação dos corpos das mulheres" (GROSZ, 1994, p. 9). Isso pode ser verificado, por exemplo, ao se observar que temas geralmente associados às questões biológicas do corpo da mulher [3], como menstruação, gravidez, parto e amamentação são tabus, pois não representam mecanismos biológicos verificados nos corpos masculinos. Esse preconceito se relaciona à análise do corpo feminino historicamente associado na forma de acessório quando comparado ao masculino, além da disposição de inúmeras características negativas, conforme explicita (Beauvoir, 1960).

Essa concepção negativa e acessória do corpo feminino resulta em uma lógica de dominação que tem rebatimentos, inclusive, na prática dos profissionais de saúde, expressando o que Foucault (2012) define como poder disciplinar fundamentado no biopoder, isto é, a definição daquele que tem o direito à vida e à morte. Nesse contexto, a violência obstétrica é expressão da violência de gênero e institucional (Aguiar, 2010), pois as lesões são direcionadas ao corpo feminino simplesmente pela sua condição biológica de ser mulher.

Como forma de repensar e reestruturar juridicamente essa lógica de apropriação e subjugação da mulher, surge o constitucionalismo feminista (Barboza, Demetrio, 2019). Esse movimento tem como fundamento a isonomia e os elementos interpretativos na perspectiva de gênero, em que se busca conceber um estado plurinacional, ao se observar que a generalidade e abstração conferida pelos diplomas constitucionais aos sujeitos de direito seguem incorporando valores predominantemente europeus e conservadores, sendo necessário haver a incorporação da perspectiva de sujeitos historicamente à margem dos processos políticos e sociais, a exemplo das mulheres. O atual escopo constitucional que tem como parâmetro uma regulamentação neutra, como se observa no caput do artigo 5° da CF/88, dotada de metafísicas de cunho universal, não impactam em reformas concretas, minimizando a possibilidade do próprio Direito agir como potência (Mirovic, 2019) e capaz de realizar políticas públicas eficazes.

Como terceiro elemento, tem-se a questão racial. Conforme a pesquisa "Nascer no Brasil" (2014), mulheres negras durante a episiotomia [4], tem possibilidade 50% (cinquenta por cento) menor de receber anestesia, além da maior chance de realizar pré-natal inadequado e menor viabilidade de leitos, o que exprime a relação entre violência obstétrica e condutas racistas que potencializam os abusos praticados contra vítimas negras que reúnem elementos de subjugação em relação à raça e gênero.

Sem dúvidas as condutas que violam a integridade física, moral e psicológica das parturientes afrontam direitos fundamentais garantidos na Constituição de 1988, tais como dignidade da pessoa humana, direito à integridade física, à vida, à honra e à assistência para as gestantes, na condição de bens jurídicos relevantes a serem resguardados. Portanto, se determinado direito fundamental se encontra lesionado ou na iminência da sua lesão em decorrência de uma conduta praticada por outrem, o Direito penal tem o dever de agir.

Assim, apesar de alguns dos atos que se caracterizam como violência obstétrica poderem ser inseridos nos tipos penais de lesão corporal e importunação sexual, isso representa tratamento residual e insatisfatório diante da problemática. Muito mais eficaz seria a tipificação específica e, por conseguinte a responsabilização criminal sobre a prática da violência obstétrica e seus reflexos, apesar de não ser condição única para coibir a prática. Nessa conjuntura, a tipificação penal específica precisa ser conjugada ao planejamento, desenvolvimento e execução de programas de conscientização da população em geral e dos profissionais da saúde, inclusive, com a proposição de alteração curricular nos cursos de graduação da área e o incentivo ao debate e pesquisas em nível de pós-graduação, com o objetivo de promover maior qualificação.

Nesse mesmo sentido, o desenvolvimento de um quadro normativo regulador da violência obstétrica, também poderia contribuir na ampliação das denúncias contra os profissionais que praticam essa violência, pois há certo comprometimento probatório em torno dos abusos cometidos em decorrência do cenário de dor e fragilidade feminina no momento do parto, além do desconhecimento das mulheres e/ou seus acompanhantes de quais atos configuram a prática lesiva (Aguiar, 2010; Rede Parto do Princípio, 2012).

Ressalta-se que, na experiência internacional, é possível verificar legislações que tratam da matéria, tais como a Lei do Parto Humanizado (Lei 25.959/2004) na Argentina, que estabelece direitos às mulheres nas fases anterior, durante e posterior ao parto, assim como aos pais e aos próprios recém-nascidos e a Lei Orgânica sobre o Direito das Mulheres a uma Vida Livre de Violência (2007) na Venezuela, a qual conceitua e prevê a violência obstétrica e suas consequentes sanções (Cutrim; Sousa; Pires, 2016).

No Brasil, está em trâmite na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, projetos de lei que visam regulamentar a matéria, a exemplo do projeto de Lei nº 422/23, de autoria da deputada Laura Carneiro (PSD-RJ), o qual visa alterar a Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), incluindo entre as formas de violência contra a mulher a obstétrica e o projeto de lei n° 190/2023, que visa modificar o Código Penal, tipificando a conduta do profissional de saúde que ofende a integridade física ou psicológica da mulher, sem o seu consentimento, durante as fases da gravidez (gestação, parto e pós-parto), prevendo também a pena de 1 a 5 anos de reclusão e multa.

De forma geral, os projetos de lei citados são eficientes pontos de partida, mas precisam de debates e alterações que os qualifiquem a tutelar o máximo possível a plena integridade da parturiente, o que não será possível somente com a inclusão da violência obstétrica no rol de formas de violência contra a mulher prevista na Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) e muito menos com a tipificação da conduta lesiva do profissional da saúde somente nos casos em que não haja consentimento da parturiente, como objetiva o projeto de Lei n° 190/2023.

Neste enquadramento, uma regulamentação legislativa que vise proteger a integridade física da parturiente, precisa considerar a explicitação das diversas e possíveis lesões nos três momentos em que pode ocorrer a violência obstétrica (antes, durante e após o parto). Além disso, é preciso considerar elementos específicos voltados às interseccionalidades femininas como a existência de questões raciais, quilombolas, indígenas e das pessoas trans, grupos evidentemente em maior situação de vulnerabilidade.

Desse modo, apesar do Direito Penal ser a última ratio, sua atuação no que se refere à violência obstétrica é fundamental pois é evidente a afronta a bens jurídicos relevantes, bem como à integridade moral, física e psicológica de sujeitos que se encontram em estado de hipervulnerabilidade. O fato de outros países sul-americanos, como citado, já possuírem legislação punitiva da prática da violência obstétrica reflete, em alguma medida, a involução do ordenamento jurídico brasileiro que, ao não regulamentar a temática, acaba por legitimar processos de violência.

 


Referências

AGUIAR, J. M. Violência institucional em maternidades públicas: hostilidade ao invés de acolhimento como uma questão de gênero. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, SP, 2010. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/5/5137/tde-21062010-175305/publico/JanainaMAguiar.pdf. Acesso em: 27 mar. 2023

BARBOZA, E. M. de Q.; DEMÉTRIO, A. Quando o gênero bate à porta do STF: a busca por um constitucionalismo feminista. Revista Direito GV, São Paulo, v. 15, n. 3, p. 1-2, jan. 2019. Fapunifesp (SciELO). http://dx.doi. org/10.1590/2317-6172201930.

BEAUVOIR, S. O segundo sexo: fatos e mitos. São Paulo: Difusão. Européia do Livro, 1960.

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FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber; tradução de Maria Thereza da Costa e J. A. Guilhon Albuquerque. 22. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2012.

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VELOSO, R. C.; SERRA, M. C. M. Reflexos da responsabilidade civil e penal nos casos de violência obstétrica. Revista de Gênero, Sexualidade e Direito, Minas Gerais, n. 1, p. 18-37, 2016. Disponível em: https://www.indexlaw.org/index.php/revistagsd/article/view/1048. Acesso em: 30 mar. 2023.

 


[1] Prática proibida pela OMS que confere pressão feita na parte superior do útero, comprimindo a barriga das pacientes com o objetivo de acelerar a saída do bebê.

[2] De acordo com a Fundação Perseu Abramo, 25% das mulheres já vivenciaram algum tipo de violência obstétrica.

[3] O contexto abordado neste ensaio, refere-se ao corpo da mulher cis, muito embora se reconheça a possibilidade de corpos masculinos também expressarem características biológicas como menstruação e gravidez e por conseguinte serem passíveis de violência obstétrica. Para ampliar a discussão sob essa ótica, sugere-se a leitura de BARRERA, Daniela Calvó; MORETTI-PIRES, Rodrigo Otávio. “Da violência obstétrica ao empoderamento de pessoas gestantes no trabalho das doulas”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 29, n. 1, e62136, 2021.

[4] corte do períneo.

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