Opinião

Mudanças climáticas e constituição de cidades sustentáveis

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3 de abril de 2023, 7h11

Diferente dos demais textos que já escrevi nesta ConJur, desta vez minha análise sobre cidades sustentáveis será totalmente concreta e contextualizada. Isso provocado por sucessivos alagamentos que a região vem sofrendo (litoral de Santa Catarina, entre as cidades de Balneário Camboriú, Itapema e Porto Belo), a partir de chuvas convencionais, porém mais intensas que o "normal", em face de graves problemas com mobilidade e habitação, e também diante de uma decisão proferida pelo Poder Judiciário de Catarina que suspendeu, na comarca de Chapecó, alvará de construção em face da ausência de realização de procedimento de oitiva e participação de moradores e vizinhos em Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV).

Essas cidades do litoral de Santa Catarina vêm passando há alguns anos por um forte incremento populacional e elevada quantidade de construções, tendo ultimamente também iniciado intenso processo de parcelamento da terra em toda a região. Ou seja, estas cidades adentraram definitivamente em um forte processo de urbanização, passando de pequenas cidades para centros médios e totalmente conurbados.

O principal motor da economia local se tornou a produção imobiliária, que vem se desenvolvendo baseada exclusivamente na livre demanda. Há uma forte procura por tais imóveis (são pessoas do Brasil inteiro se deslocando para cá, seja para investir, seja para morar) e por consequência há uma produção destes em escala, o que também vem colaborando para a valorização da terra e dos imóveis construídos.

Mesmo que o parcelamento do solo e as construções venham ocorrendo dentro dos parâmetros legais, muitos procedimentos são suprimidos ou simplificados, tais como estudos de impacto de vizinhança, licenciamentos ambientais, diagnósticos socioespaciais, adequações frente a planejamentos feitos para o local (quando há) e qualquer outro elemento que se volte ao bem estar da população. E mesmo quando realizados os procedimentos legais por completo, via de regra estes não procuram realizar avaliações dos impactos dos empreendimentos na dimensão e organização da cidade, estando quando muito preocupados com o próprio empreendimento e o seu entorno, em uma análise que na imensa maioria dos casos não conjuga à propriedade uma adequada função social.

A partir da análise da realidade, local e nacional, e diante das mudanças climáticas, o que vem se demonstrando são padrões insuficientes de regramento, organização e/ou fiscalização para quem espera que uma cidade venha a caminhar para alcançar padrões de sustentabilidade, considerando ao menos aqueles previstos no artigo 2º, inciso I, do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001). Na verdade, o que se constata nesta região é que uma organização social que é produzida a partir de uma força motriz vinculada pela demanda de mercadorias (imóveis) ou com uma preocupação econômica maior do que a dos demais segmentos humanos, está tendendo cada vez mais a produzir problemas ao invés de soluções.

Uma análise objetiva da realidade leva a conclusão, diante desta situação, que não basta avaliar as condições de ocupação do espaço e de desenvolvimento humano em uma perspectiva linear, ou seja, com o mesmo sentido e os mesmos artifícios de 10, 20 ou 30 anos atrás. A perspectiva sustentável de crescimento demonstra que em um ambiente artificial, quanto mais se ocupa o espaço, invadindo o espaço que antes era de uma natureza não humana, e quanto mais pessoas vivem e circulam naquele lugar, mais serviços e infraestrutura são demandados. Mas, como informado anteriormente, essas demandas nao ocorrem em sentido linear.

Explica-se. Imaginem, por exemplo, em um espaço de 10 hectares, onde são loteados 3 hectares. O impacto desta ocupação contará com 7 hectares de capacidade de carga ainda não ocupados para uma possível diluição dos transtornos que essa ocupação poderá acarretar e por consequência haverá um quantitativo de exigências específicas, analisado diante da própria realidade, em um possível estudo de impacto de vizinhança ou dimensionamento de quantidade de áreas públicas e verdes, ou ainda para uma intervenção publica em drenagem ou em mobilidade. No momento que os outros 7 hectares forem ser loteados, haverá uma nova avaliação, devendo se levar em conta já a ocupação dos 3 hectares anteriores e o que sobrará de áreas não ocupadas no entorno, ou seja, haverão novas condicionantes para a aprovação de novos empreendimentos.

Essa análise escalonada não segue a perspectiva liberal-formalista das configurações legais e interpretativas, geralmente realizadas no direito. Nestes casos, a igualdade, por exemplo, na interpretação de requisitos de ocupação, de densidade populacional, padrões construtivos, etc, não pode ser uma regra linear, precisando ser relativa.

Na relação temporal isso também ocorre. A perspectiva de diferenciação na realização de empreendimentos de dez, cinco ou mesmo um ano atrás, não pode ser a mesma de hoje. A realidade muda a todo instante produzindo novas conformações para o ambiente construído. As mudanças climáticas nem sempre estão relacionadas a todos os lugares, mas precisam ser consideradas como tal em todas as cidades. Atualmente, todas as atuações humanas precisam ser monitoradas diante do fenômeno do aquecimento global e das mudanças climáticas. Não é mais viável desconsiderar que os padrões de chuva, de vento, de insolação, de calor ou de frio, de pobreza, de emprego, de saúde, de informação ou de educação, estão diferentes de anos atrás e são referências necessárias em qualquer análise para se aferir sustentabilidade, como tratam de especificar em âmbito global os Objetivos para do Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas.

Para que estas novas realidades possam exigir novas adequações de novos empreendimentos é fundamental, por exemplo, fortes processos de planejamento com ampla participação popular, permitindo que toda a população apresentem suas principais dificuldades, suas soluções e permitindo-lhes comandar os rumos da cidade (Harvey, 2012).

A partir disto, é fundamental viabilizar nos planos diretores dos municípios, principais instrumentos de planejamento urbano para adequar às cidades as suas funções sociais e o bem estar da população, a funcionalidade dos instrumentos do Estatuto da Cidade, com intuito de produzir adaptações e adequações para o encaixe de novas sobrecargas diante da vida da cidade. A Nova Agenda Urbana das Nações Unidas (2017), afirma, por exemplo, no parágrafo 152 a necessidade capacitar as pessoas para o uso de instrumentos legais que viabilizem a captura de mais-valia para o adequado desenvolvimento da cidade e o alcance de padrões de sustentabilidade, que, no direito pátrio, devem garantir moradia digna para todos, infraestrutura, acesso à cidade, lazer, trabalho digno, educação, saúde etc.

E isso não está sendo levado em conta na realidade das cidades em franca expansão no litoral de Santa Catarina. Os impactos produzidos, seja por fatores econômicos (como a supervalorização das áreas, encarecimento de aluguéis e consequente gentrificação), sociais (como ausência de mobilidade, falta de moradia digna e falta de saneamento básico) e ambientais (como alagamentos, desmoronamentos e proliferação de vetores de transmissão de doenças), não estão sendo devidamente considerados para que haja a necessidade de se superar uma compreensão meramente linear dos padrões legais, o que torna incompatível o desenvolvimento de cidades sustentáveis, que demandam conhecimentos complexos e totalizantes (Capra e Mattei, 2018).

Essa é uma análise objetiva para demonstrar que mesmo havendo o cumprimento das regras existentes (diga-se de passagem, nem sempre feitas com a efetiva participação da população), a atuação privada e a constituição de novos empreendimentos nesta região, que exigem ampliação da capacidade de carga local e consequentemente de inúmeros serviços, a redução do meio ambiente natural e a não solução de problemas históricos, não pode ser projetada ou feita diante da ausência de uma atuação pautada na totalidade, que avalie a cidade como um todo inserido em um Planeta que passa por fortes mudanças climáticas. Essa interpretação linear liberalformalista não se adequa a nenhum padrão de sustentabilidade (Guerreiro Filho, 2022), da mesma forma como não permitirá a construção de ambientes e modos de vida mais saudáveis e dignos para todos.

 


Referências bibliográficas

BRASIL, Lei nº10.257/2001 (Estatuto da Cidade). Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm. Acessado em 23.3.2023.

CAPRA, Fritjof e MATTEI, Ugo. A revolução ecojurídica: o direito sistêmico em sintonia com a natureza e a comunidade. São Paulo: Editora Cultrix, 2018.

GUERREIRO FILHO, Evaldo José. A política urbana disciplinada na Constituição brasileira à luz do Objetivo de Desenvolvimentos Sustentável nº 11 (cidades e comunidades sustentáveis) da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas. Dissertação de mestrado apresentado ao Programa de Pós-graduação em direito da UFSC, 2022. Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/240853. Acessado em 23.3.2023.

HARVEY, David. O direito à cidade: lutas sociais. São Paulo, n.29, 2012. Disponível em https://revistas.pucsp.br/index.php/ls/article/view/18497/13692. Acesso em 16.10.2021.

HIGÍDIO, José. Direito ao sol: justiça suspende construção de edifício cujo estudo de impacto não ouviu vizinhos. Consultor Jurídico. Disponível em https://www.conjur.com.br/2023-mar-15/juiza-suspende-construcao-edificio-ignorava-vizinhos. Acessado em 23.3.2023.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Nova Agenda Urbana. A/RES/71/256. Habitat III, 2017. Disponível em https://habitat3.org/wp-content/uploads/NUA-Portuguese-Brazil.pdf. Acessado em 23.3.2023.

Autores

  • é advogado, mestre em Direito pela UFSC, professor da Faculdade de Direito da Uniavan e da Escola Superior de Advocacia (ESA) de Santa Catarina, ex-procurador de Itapema (SC) e ex-prefeito de Porto Belo (SC).

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