'Interesse público também é garantido por negociação', diz procuradora-geral de SP
2 de abril de 2023, 8h48
Reconduzida ao cargo de procuradora-geral de São Paulo, Inês Maria dos Santos Coimbra de Almeida Prado tem a difícil tarefa de gerir um acervo de quase 2,5 milhões de processos. Um número maiúsculo, que confirma o peso e a importância do estado mais rico da União — e o grau absurdo de litigiosidade no qual ele está envolvido.
"A gente é muito talhado em olhar sempre para a indisponibilidade do interesse público, e não que esse não seja um princípio fundamental, mas não pode ser um dogma que nos impeça de pensar que muitas vezes o interesse público se alcança por meio de acordo, por meio de transação", defende.
Coimbra também escolheu conciliar tecnologia e pensamento estratégico. "A PGE é uma máquina muito grande, então precisamos operar por aparelhos, e não no manual, não no feeling", afirmou a procuradora-geral em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico.
Inês Coimbra comanda um grande plano de reestruturação da PGE paulista, que incluiu digitalizar a instituição e aprimorar a utilização da expertise de 798 procuradores e procuradoras e 601 servidores.
Segundo ela, esse planejamento dará um norte à gestão da PGE, que poderá ser seguido a longo prazo, e de maneira mais racional. "Como somos uma carreira de estado perene, é muito importante que a gente tenha essa visão de continuidade mesmo, e é impossível para mim ou para qualquer um que sente nesta cadeira ter uma visão do todo sem um trabalho estruturado."
O mesmo pensamento é aplicado por Inês Coimbra na atuação da instituição para arrecadar a dívida ativa estadual, uma das atribuições mais importantes da PGE. Ela defende que sejam feitas cobranças estratégicas, a partir de um trabalho de inteligência, com intenso cruzamento de dados.
Inês é a quinta mulher a assumir o cargo máximo da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo desde a sua fundação, em 1947.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista:
ConJur — Quais são os seus maiores desafios à frente da PGE?
Inês Coimbra — O maior desafio é o da reestruturação da carreira, no sentido do apoio aos procuradores que integram a PGE. Temos os nossos servidores que prestam apoio administrativo, mas ainda de modo insuficiente. Não pela qualidade dos servidores, mas por uma questão numérica. Isso repercute no trabalho dos procuradores, na medida em que eles acabam sendo obrigados a desempenhar algumas tarefas que poderiam ser feitas por um servidor de nível intermediário. Isso faz com que nós não consigamos atingir toda nossa potência como instituição. Esse é o primeiro desafio.
O segundo desafio é o da transformação digital no âmbito da PGE. Precisamos avançar bastante nesse tema. É um investimento grande não só em sistemas, mas também em gente que possa contribuir com isso, incrementar nossa atuação. A PGE é uma advocacia pública e ela tem uma capilaridade muito grande no estado. Então nós estamos em todas as secretarias, em todas as autarquias, nós fazemos um assessoramento jurídico direto e a representação judicial do estado. Podemos melhorar mais a forma como compilamos e tratamos os dados dessa atuação para que eles possam se reverter em inputs mais interessantes para o gestor público, inclusive para tomada de decisão.
O uso da jurimetria pode ajudar a elaborar propostas de alteração administrativa à luz do que está acontecendo no Judiciário e contribuir para uma diminuição de litigiosidade.
ConJur — A senhora tem um projeto para sanar esse déficit de pessoal e de tecnologia?
Inês Coimbra — No ano passado, nós fizemos uma parceria com a Comunitas e com o Instituto Publix, que entenderam que era importante financiar um planejamento estratégico para a PGE. Até então, nós nunca tivemos isso. É a primeira vez que a gente faz esse planejamento. E isso tem fases. No ano passado, nós concluímos a fase de diagnóstico e agora entramos na fase do planejamento propriamente dito, da elaboração e identificação das metas.
A ideia é que, com o planejamento estruturado, a gente consiga ter um norte institucional e que as decisões de gestão não fiquem tão circunscritas à visão só do gabinete do momento. Como somos uma carreira de estado perene, é muito importante que a gente tenha essa visão de continuidade mesmo, e é impossível para mim ou para qualquer um que sente nesta cadeira ter uma visão do todo sem um trabalho estruturado. A PGE é uma máquina muito grande, então precisamos operar por aparelhos, e não no manual, não no feeling.
ConJur — A senhora tem 18 anos de carreira e uma atuação destacada no chamado braço social da PGE. Quais são as iniciativas da sua gestão nessa área?
Inês Coimbra — Criamos no ano passado uma coordenadoria de defesa de direitos humanos, que agora vai ganhar musculatura. No ano passado, a gente tinha um cenário um pouco mais curto. Agora, com a minha recondução, teremos um pouco mais de tempo para implementação, porque são medidas que exigem uma maturação para irem se consolidando. A missão é identificar onde seria possível atuar e contribuir no avanço dos direitos humanos e apresentar insumos para tomada de decisão do gestor público. Por exemplo, agora nós estamos fazendo uma negociação com a Defensoria Pública sobre o problema do banho quente nos presídios.
Outra iniciativa é que a PGE de São Paulo fez uma proposta para o Colégio Nacional de Procuradores Gerais, que foi acatada, para a criação de um fórum de equidade de raça e gênero, mas que já está ficando maior do que isso, e virando um fórum de diversidade, para que a gente possa identificar nas carreiras de advocacia pública — todas elas — qual é o diagnóstico de quem somos, de que cor somos, qual o nosso recorte de gênero e que medidas podemos implementar de uma forma estruturada no país inteiro para ampliar a inclusão. É difícil pensar em Justiça sem diversidade em um país tão diverso.
ConJur — Quanto mais diversas, mais legitimidade terão as nossas instituições de Justiça?
Inês Coimbra — Veja, o sistema de Justiça existe essencialmente para a garantia dos direitos das pessoas, para a implementação de direitos e para a mediação de conflitos. Como você pode pensar nisso se toda essa atribuição está nas mãos de apenas um estrato social? A visão acaba ficando circunscrita e acaba sendo feita a partir de uma única lente. E aqui eu nem estou falando em reparação histórica, não estou nem trazendo essa discussão, mas falando de ganhos mesmo. Se você pensar, empresas mais modernas ou corporações mais modernas já entenderam que não é possível vender um produto se houver apenas as mesmas pessoas pensando naquilo. Então é preciso entender quem é o nosso público — e o nosso público é todo mundo.
É o que vemos com o sistema de cotas. Os ganhos que elas trouxeram para as universidades transcenderam muito aquilo que se buscou inicialmente, que era garantir acesso e eventualmente garantir ascensão social. A própria academia mudou. Outras linhas de pesquisa, outros olhares, outros autores, outros polos de conhecimento. É tão óbvio que é muito difícil explicar ou defender o contrário. Quanto mais diverso de gênero, raça, orientação sexual, idade, enfim, quanto mais diverso, mais complementar a instituição acaba ficando e menos pontos cegos teremos.
ConJur — Recentemente, tivemos uma tragédia no Litoral Norte de São Paulo, e a atuação da PGE foi muito rápida para viabilizar juridicamente a remoção de pessoas de áreas de risco. Como a instituição está estruturada para lidar com emergências como essa?
Inês Coimbra — Nós temos uma área inteira de contencioso que está bastante acostumada a essas urgências. Nesse caso, fomos acionados pelo governo, explicando a gravidade do caso e que a remoção das pessoas representava muitas dificuldades para a atuação do governo. Esse caso foi muito dramático porque as próprias equipes de resgate lutavam contra o tempo para resgatar as pessoas que não queriam sair de suas casas, o que era muito compreensível. A questão em campo começou a ficar dramática. Então atuamos de maneira que, entre sermos acionados e termos uma resposta do Judiciário, foi uma questão de horas. Temos um núcleo que é especializado em Mobiliário e Ambiental, e queremos ampliar esse trabalho para contribuir com os projetos de governo que estão sendo pensados e construídos para combater esse tipo de tragédia preventivamente.
ConJur — Qual o tamanho do acervo da PGE atualmente?
Inês Coimbra — A PGE tem três grandes áreas. Uma cuida da consultoria, é aquela que vai fazer um assessoramento jurídico a todas as secretarias e a todas as autarquias, um assessoramento jurídico prévio e que vai ajudar nessa construção da política pública por meio de pareceres, é aquilo que a gente consegue medir de todas as horas de assessoria. Em média, a PGE elabora 1.172 pareceres por mês.
Outra área é a do contencioso tributário fiscal, responsável por todas as ações de execução fiscal tanto na ida quanto na volta. Toda matéria tributária está com esse setor, que é responsável por boa parte da arrecadação e recuperação de ativos do estado. Nessa área, temos 1,129 milhão de processos.
E uma terceira área é o contencioso geral, cujo acervo é de 1,4 milhão de processos ativos. Atuamos também em outras áreas em que a gente não consegue ainda fazer medição. Estamos falando de 798 procuradores na ativa com esse volume de quase 2,5 milhões de processos e milhares de pareceres jurídicos na área da consultoria.
ConJur — Existe uma estimativa sobre o valor total dessas causas?
Inês Coimbra — Não tenho essa informação com precisão, e o motivo é um outro desafio nosso. As ações eram cadastradas originalmente com o valor da causa, mas o valor da causa é atribuído pelo autor, e essa não é uma informação verdadeira. O valor ali pode ser, na verdade, uma coisa bem diferente. Então esse tema passa por esse trabalho de jurimetria também — e já fizemos algumas mudanças para isso, e para tentar criar parâmetros para a atribuição de valores às causas, para que possamos ter isso de um modo um pouco mais preciso.
ConJur — Passa também pela implementação de mecanismos de inteligência levantar dados sobre processos sem interesse público, que podem ser descartados?
Inês Coimbra — Sim, muito. Esse é um trabalho fundamental. Isso é até uma coisa que estamos tentando fazer com os poucos instrumentos que temos. Recentemente, por exemplo, nós estávamos às voltas com uma ação da Defensoria Pública contra o estado discutindo a questão dos concursos. Na verdade, a questão da avaliação médica de servidoras aprovadas em concursos públicos estaduais. Existia uma normativa que obrigava as mulheres a fazerem alguns exames ginecológicos como admissionais, e para os homens não havia exames correlatos, e o estado já havia sido condenado em uma ação similar, discutindo um concurso específico do Tribunal de Justiça, e a gente já tinha perdido. Aí a Defensoria entrou pedindo o fim dessa exigência para todos os concursos do estado.
Ao invés de agirmos de uma maneira mecânica e contestar, voltamos para a administração e perguntamos por que essa exigência existe, se é isso mesmo, se era inafastável, e, conversando com as áreas técnicas, entendemos que sim, era possível afastar essa exigência e talvez buscar os resultados que se pretendia de uma outra forma. E aí a exigência foi alterada por nossa provocação. Fim da litigiosidade. As advocacias públicas têm uma responsabilidade muito grande porque a gente movimenta demais a máquina.
ConJur — Reduzir a judicialização, para diminuir o volume de processos do acervo da PGE, é um dos objetivos da sua gestão?
Inês Coimbra — O foco é criar ambientes negociais de conciliação que diminuam essa demanda. Por exemplo, temos uma demanda muito grande no Detran, então é preciso identificar o que é possível alterar para colocar um pouco de estratégia nesse contencioso de massa.
A proposta interna para os procuradores é que a gente possa se perguntar por que estamos fazendo isso da forma que estamos fazendo. Entendemos que somos parte de um sistema maior e precisamos fazer mais do que simplesmente defender o estado acriticamente, mas, sim, contribuir para impedir o excesso de judicialização.
A PGE adotou uma prática que é a inversão da lógica recursal. Em tribunais superiores, os procuradores, ao invés de recorrer simplesmente, precisam pedir autorização para recorrer. Precisam explicar a razão do recurso e a sua necessidade. São medidas para que as pessoas desliguem o piloto automático e comecem a fazer uma análise mais crítica. Mas, para isso, você precisa de estrutura e de um ambiente que dê segurança funcional para o procurador fazer isso.
ConJur — A maior parte do acervo de processos da PGE é de execução fiscal, ou seja, o Estado passando para o Judiciário a cobrança de suas dívidas. Esse é o cenário ideal, na sua opinião?
Inês Coimbra — Não, e por várias razões. E isso é algo que a gente vem há algum tempo trabalhando para mudar. O que acontece é que a cobrança tributária, a cobrança da dívida ativa, ela é um sintoma dentro de um sistema que funciona mal. Porque mesmo a recuperação dos ativos, fazendo da forma que se faz hoje, ela é ineficaz. Então eu também preciso traçar estratégias para lidar com esse cenário. Estamos em processo de contratação de um BI (business intelligence, um profissional que levanta dados, analisa-os e gera diagnósticos), que vai consolidar dados para fazer cruzamento de informações, porque uma das coisas mais difíceis é achar ativos das empresas.
É preciso identificar e fazer cobranças estratégicas, que não têm a ver necessariamente com o valor. Nem sempre o crédito de maior valor é o mais recuperável. Tem a ver com o status da empresa, tem a ver com fazer uma investigação. Criamos um grupo há alguns anos que identifica devedores contumazes. Então, é um grupo econômico que abre uma empresa, ela fica devedora, ele fecha essa empresa e abre outra empresa, continua operando aqui, e assim por diante. Se formos usar o modelo padrão, não vamos recuperar um centavo. Precisamos levantar muitas informações para fazer esses cruzamentos, identificar esses grupos e colocar estratégia em nossa atuação.
Outro avanço é a transação tributária (viabilizada pela Lei Estadual 17.293, de 2020, que autorizou a Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo a usar a ferramenta para resolução de conflitos), que ajudou a promover um saneamento enorme do nosso acervo para identificar aquilo que tem potencial de ser recuperado e aquilo que não tem.
ConJur — Como a senhora encara o fato de o estado de São Paulo ser o sexto maior litigante do país no polo passivo, ou seja, o sexto mais processado, à frente da AGU e de empresas como a Telefônica, que tem mais clientes do que a população paulista? Existe o objetivo de sair dessa lista?
Inês Coimbra — Sim, mas, mais do que isso, a meta é fazer com que os direitos sejam assegurados e que as causas de litigiosidade diminuam. É fazer uma avaliação das decisões de gestão também olhando para o efeito, para o potencial de litigiosidade que aquelas decisões têm tomado. Mas nós fomos muito impactados pela criação dos juizados. Isso foi uma coisa que impactou enormemente os números. E creio que uma forma de solução desse problema é ampliar a cultura de transação. Porque o que acontece com empresas como a Telefônica é que elas têm muito mais liberdade de transacionar. A gente é muito talhado em olhar sempre para a indisponibilidade do interesse público, e não que esse não seja um princípio fundamental, mas não pode ser um dogma que nos impeça de pensar que muitas vezes o interesse público se alcança por meio de acordo, por meio de transação.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!