Diário de Classe

A jurisdição constitucional em momentos de crise e a Crítica Hermenêutica do Direito

Autor

  • Pietro Cardia Lorenzoni

    é advogado professor de Direito Público do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP-DF) doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) diretor jurídico da Associação Nacional de Jogos e Loterias e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

1 de abril de 2023, 8h00

A coluna de hoje versa sobre a jurisdição constitucional em momentos de crise. Trata-se de tema que ganhou relevância na história recente brasileira, especialmente em razão da crise pandêmica causada pela Covid-19 e pela crise constitucional, fruto do tensionamento na relação entre o Poder Executivo e o Poder Judiciário, que se agravou drasticamente nos anos de 2019 a 2022 e da notável polarização política brasileira. Não por acaso, expressões como crise constitucional e degeneração constitucional ganharam espaço na academia e na mídia.

O ápice dos recorrentes episódios de tensionamento e degeneração foi a invasão das sedes dos três Poderes constituídos da República no dia 8 de janeiro de 2023, no qual manifestantes que defendiam um golpe de Estado invadiram e depredaram violentamente repartições públicas. Não com poucos fundamentos, o episódio foi nomeado de crise, ato golpista e assalto à democracia pelos principais veículos de comunicação do país e do mundo.

Diante de ataques ao institucionalismo e de movimentos que demonstram intolerância, surge a pergunta: qual o papel do Direito na preservação da democracia frente a crises?

Tendo por norte que é justamente em momentos críticos que as instituições são testadas, a presente coluna pretende sustentar o argumento das cortes constitucionais fortes como forma de defesa do projeto constitucional brasileiro. O conceito, ainda, caracteriza-se como aspecto relevante de uma teoria da decisão judicial brasileira.

Diante de questões fundamentais para a democracia pátria, pretende-se desenvolver, em breves linhas, a defesa do Supremo Tribunal Federal e da abertura hermenêutica à crise e, ainda, chamar atenção para um elemento que pode passar desapercebido nesse debate, qual seja: o fechamento interpretativo da jurisdição constitucional de crise. Assim, a partir da Crítica Hermenêutica do Direito, criada pelo professor Lenio Streck, investigam-se tanto a abertura hermenêutica da jurisdição constitucional de crise como o seu necessário fechamento interpretativo.

Inicia-se com o argumento, na linha desenvolvida por Streck e Motta [1] assim como Issacharoff [2],em prol das cortes constitucionais como mecanismo de proteção da Constituição e da própria democracia. "A presença de cortes constitucionais fortes funciona como o principal antídoto para o autoritarismo, sobretudo no contexto de sociedades caracterizadas por profundas divisões raciais, religiosas ou identitárias."

O papel das cortes constitucionais como mecanismo de defesa da Constituição e, contextualmente, da própria democracia já foi defendido em oportunidades anteriores, especialmente nos dois trabalhos acadêmicos citados acima e, no contexto do autor, aqui [3] (a versão comercial será lançada em breve pelo Grupo Gen, com o nome de Jurisdição Constitucional de Crise). Reafirmando o óbvio, concorda-se com o argumento desenvolvido por Issacharoff, que sustenta a função das cortes constitucionais fortes como importante antídoto para o autoritarismo, sobretudo em países de democracia periférica como o Brasil.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal e a jurisdição constitucional são necessárias garantias institucionais em prol da manutenção das regras do jogo democrático, da institucionalidade, das revoluções pacíficas e da canalização dos desacordos morais para suas respectivas arenas legítimas, sendo elas a política e o direito. O papel da corte constitucional é, também, o de manter em cheque o poder político, conformando o seu exercício às promessas e aos princípios constitucionais. Todos esses papéis naturais a uma corte constitucional forte.

Para acentuar a dificuldade da missão constitucional, a realidade brasileira é, conforme já narrada, de degeneração constitucional, de polarização política e, como ápice da tragédia, de ações concretas contra o Estado Democrático de Direito. Para tanto, a jurisdição constitucional precisa dar respostas para cumprir a tarefa dada pela Constituição Cidadã. É desse contexto que o fenômeno da jurisdição constitucional de crise precisa ser analisado.

A contextualização feita é necessária para que a jurisdição constitucional brasileira, especialmente a exercida pelo Supremo Tribunal Federal, cumpra o seu legítimo papel, inclusive em períodos extraordinários. A qualificação "de crise" na conceituação do fenômeno advém de uma necessária ampliação do espaço de decisão da jurisdição constitucional do Supremo Tribunal Federal em tempos extraordinários, conforme já defendido em pesquisa doutoral. Trata-se de uma expansão dos legítimos espaços de decisão do Supremo Tribunal como condição de possibilidade para exercer sua função constitucional.

Em períodos extraordinários marcados por uma ameaça constitucional, será necessária uma ampliação dos espaços de decisão constitucionais assim como uma abertura hermenêutica à crise. Defende-se, portanto, que a jurisdição constitucional de crise tem origem na ampliação do espaço de decisão do Supremo Tribunal Federal. Na prática, isso significa que o Poder Judiciário não atuará, apenas, para confrontar as ações políticas com os limites constitucionais, mas decidirá, também, sobre alguns dos próprios limites constitucionais.

Ademais, o fundamento do argumento relaciona-se, também, com uma abertura hermenêutica à crise, visto que as contingências próprias de um contexto de crise constitucional e retrocesso democrático naturalmente tensionarão e testarão os próprios limites do projeto de democracia constitucional. Com a necessária abertura hermenêutica à crise, pretende-se, como já defendido pelo ministro Gilmar Mendes (2020), que as normas constitucionais não sejam encaradas como um obstáculo, mas como um caminho necessário e seguro para a solução da crise. Para isso, é fundamental prezar pela compatibilidade de aparentes contradições e abertura à busca por alternativas a uma leitura fria e seca da Constituição Federal de 1988. Algo já superado pelo próprio positivismo jurídico, em que pese erroneamente reduzido a fenômeno limitado pela letra fria da lei, e superado por uma ideia rasa de legalismo, incapaz de reconhecer a força normativa dos princípios constitucionais — todos esses pontos insistentemente defendidos pela Crítica Hermenêutica do Direito [4].

Na mesma senda, em que pese aplicado para contexto distinto, mas que arriscamos a aqui usar, Zagrebelsky pontuou que as sociedades plurais não podem determinar à Constituição a tarefa de estabelecer direta e detalhadamente um projeto pré-determinado de vida comum, mas, sim, a tarefa de realizar as condições de possibilidade de uma vida comum [5]. Essa é a natureza das constituições democráticas na época do pluralismo — como deve ser a brasileira.

Essa abertura hermenêutica, contudo, não se confundirá com a discricionariedade judicial, visto que ela não pode ser uma abertura criada para legitimar, de forma velada, uma arbitrariedade, não mais cometida pelo administrador, mas pelo Judiciário, conforme leciona Streck. A abertura hermenêutica à crise, aqui apontada, como mecanismo de proteção do Estado Democrático de Direito implica um efetivo controle no processo interpretativo da Constituição. Dois pontos essenciais surgem dessa compreensão.

Primeiro, a abertura hermenêutica só se sustentará numa interpretação amparada por juízos autênticos. Segundo, isso significa que a jurisdição constitucional de crise depende de uma abertura hermenêutica à crise assim como um fechamento interpretativo próprio da força normativa da constituição, que funcionará como uma blindagem hermenêutica contra autoritarismos judiciais. Esse fechamento advém da interpretação do conteúdo normativo da Constituição, que é constrangido por princípios constitucionais retirados de "uma convivência intersubjetiva que emana dos vínculos existentes na moralidade política da comunidade", que possibilitarão o controle epistemológico da decisão judicial mesmo em momentos de crise constitucional. Como o professor Lenio Streck [6] explica no âmbito da Crítica Hermenêutica do Direito:

"Não proporcionam, portanto, escolhas arbitrárias de sentidos; ao contrário, a partir dos teoremas fundamentais da hermenêutica — o círculo hermenêutico, que vai do todo à parte e da parte ao todo, do geral para o particular e do particular para o geral, e a diferença ontológica, que obstaculiza a dualização entre faticidade e validade — é a applicatio que proporciona um fechamento da interpretação, isto é, serve como blindagem contra a livre atribuição de sentidos."

Em síntese, o argumento desenvolvido, com base na Crítica Hermenêutica do Direito, explicita as limitações e a possibilidade de controle da interpretação judicial mesmo na jurisdição constitucional de crise, enquanto mecanismo duplo de defesa do projeto democrático constitucional. Duplo, pois mecanismo de proteção contra autoritarismos dos poderes políticos representativos, o que se mostra essencial em processos de retrocesso democrático, mas também preocupado e preparado para eliminar discricionariedades judiciais no seu exercício, conformando e limitando, portanto, a própria autoridade que exerce o mecanismo de proteção democrática. Por isso, mesmo na jurisdição constitucional de crise, defende-se respostas corretas. Inclusive, mantém-se firme posição de refutar relativismos, livres interpretações e discricionarismos. Na senda do já afirmado, toda a interpretação correta deve resguardar-se da arbitrariedade dos chutes e do caráter limitado de hábitos mentais inadvertidos. Novamente amparado no professor Lenio Streck [7], lembra-se que:

"compreender quer dizer 'elaborar projetos corretos, adequados às coisas'. Trata‑se de afirmar que a resposta correta aqui trabalhada traduz uma resposta verdadeira — no sentido hermenêutico, em que, fenomenologicamente, descrevemos as coisas como acontecem, sendo que esse sentido depende do horizonte no qual ele pode dar-se, graças à abertura ou o encobrimento próprio da existência — que exsurge desse acontecimento hermenêutico. Os conceitos jurídicos (enunciados linguísticos que pretendem descrever o mundo, epistemologicamente) não são o lugar dessa resposta correta, mas a resposta correta será o lugar dessa 'explicitação', que, hermeneuticamente, não se contenta com essa fundamentação de caráter universal, porque nela — nessa resposta — há um elemento a priori, 'uma espécie de universo antepredicativo ou pré‑conceitual que aí é abordado e pretende aí ser expresso' (essa é a tarefa da interpretação, que explicita esse compreendido). Em outras palavras, a resposta correta é a explicitação das condições de possibilidade a partir das quais é possível desenvolvermos a ideia do que significa fundamentar, do que significa justificar. A resposta correta já sempre opera implícita ou explicitamente com uma pré-compreensão que pode ser mostrada como sendo a condição de possibilidade da correção."

Com efeito, defende-se que esse fechamento hermenêutico legitima e viabiliza a jurisdição constitucional de crise como o melhor mecanismo de defesa da democracia para o seu mais nefasto momento. O valor último por detrás do argumento é um compromisso firme com a Constituição de 1988 como a melhor solução para a democracia diante da crise, ponto superior defendido constantemente pela Crítica Hermenêutica do Direito.

A questão, portanto, ultrapassa rótulos gastos de "ativismo judicial", que carecem de rigor conceitual ou uma definição anterior compartilhada pela comunidade jurídica brasileira. O ponto versa sobre entender que a jurisdição constitucional é fundante do projeto democrático brasileiro mesmo em períodos extraordinários. É compreender que sua abertura hermenêutica à crise significa uma reafirmação da própria Constituição Federal e sua força normativa, não o contrário. Há critérios jurídicos pelos quais se pode identificar e construir, do ponto de vista interpretativo, a melhor leitura da Constituição sob a luz de sua própria historicidade e seus próprios fundamentos, e são esses critérios que legitimam e balizam a atuação do Supremo e das cortes constitucionais na proteção e defesa da democracia constitucional. Mesmo que duvidem os céticos, há tradição no constitucionalismo brasileiro que guia (e fecha) a interpretação constitucional mesmo em períodos de crise, como muitas vezes reafirmado pelo senso incomum.

 


[1] STRECK, Lenio Luiz; MOTTA, Francisco José Borges. Democracias frágeis e cortes constitucionais: o que é a coisa certa a fazer? Pensar revista de ciências jurídicas, v. 25, ed. 4, 2020.

[2] ISSACHAROFF, Samuel. Fragile Democracies. (Kindle Edition). Cambridge: Cambridge University Press, 2015.

[3] LORENZONI, Pietro Cardia. Jurisdição Constitucional de crise: análise e proposta hermenêuticas para a jurisdição constitucional extraordinária brasileira. São Leopoldo, 2022. Tese (Doutorado em Direito) — Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Programa de Pós-Graduação em Direito, 2022. Orientador: prof. dr. Lenio Luiz Streck.

[4] Por todos, cito: STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: cinquenta temas fundamentais de teoria do direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento, 2020.

[5] ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil. Trad. Marina Gascón. 4ª ed. Madrid: Editorial Trotta, 2002.

[6] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 361

[7] Ibidem, p. 364.

Autores

  • é advogado, professor de Direito Público do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP-DF), doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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