Opinião

O conceito de direito absolutamente indisponível contido no Tema 1.046

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30 de setembro de 2022, 6h33

O Supremo Tribunal Federal, em 2/6/2022, julgou o Tema 1.046 da Repercussão Geral, fixando a seguinte tese:

Geraldo Magela/Agência Senado
O ministro Alexandre Luiz Ramos, do TST
Geraldo Magela/Agência Senado

"São constitucionais os acordos e as convenções coletivos que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuam limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis."

As decisões do STF, seja em controle concentrado, seja no difuso, pela sistemática de repercussão geral, têm efeito vinculante e eficácia "erga omnes", cabendo a todos os órgãos do Poder Judiciário aplicar a tese fixada. A tese fixada pode gerar certa imprecisão quanto à validade da negociação coletiva, considerando a ressalva de se respeitar os direitos absolutamente indisponíveis.

Quais são, então, os direitos absolutamente indisponíveis? No julgamento do Tema 152, o STF assentou premissas jurídicas no sentido de que no direito coletivo do trabalho se verifica situação de simetria de poder entre as partes, sendo que a autonomia coletiva da vontade não se encontra sujeita aos mesmos limites que a autonomia individual. Por isso, a Constituição de 1988, em seu artigo 7º, XXVI, prestigiou a autonomia coletiva da vontade e a autocomposição dos conflitos trabalhistas, acompanhando a tendência mundial ao crescente reconhecimento dos mecanismos de negociação coletiva, retratada na Convenção nº 98/1949 e na Convenção nº 154/1981 da OIT. Neste julgamento, percebe-se o embrião do conceito quando, no voto do relator, se reconheceu o caráter vago dos direitos que estariam protegidos contra a negociação coletiva, pois integrantes do patamar civilizatório mínimo, como a anotação da CTPS, o pagamento do salário mínimo, o repouso semanal remunerado, as normas de saúde e segurança do trabalho, dispositivos antidiscriminatórios, a liberdade de trabalho, entre outros.

No voto proferido pelo relator do Tema 1.046, ministro Gilmar Mendes, fixou-se que estão fora do reconhecimento de constitucionalidade das normas coletivas as cláusulas atentatórias ao patamar civilizatório mínimo, assim consideradas as normas constitucionais; nas normas de tratados e convenções internacionais incorporadas ao Direito brasileiro e nas normas infraconstitucionais que asseguram garantias mínimas de cidadania aos trabalhadores. A estrutura do conceito foi inspirada na doutrina de Maurício Godinho Delgado.

Procurando dar maior objetividade ao conceito, devem ser entendidos como direitos absolutamente indisponíveis, à luz da sistemática já exposta, aqueles previstos (1) nas normas constitucionais fechadas e/ou proibitivas, (2) nas normas internacionais incorporadas ao direito brasileiro, desde que autoexecutáveis e (3) nas normas infraconstitucionais que expressamente afastam a negociação coletiva. Explico cada dimensão.

Direitos previstos nas normas constitucionais fechadas e/ou proibitivas
Devem ser entendidos direitos absolutamente indisponíveis aqueles previstos em normas constitucionais que expressamente não autorizam, de forma implícita ou explícita, a sua flexibilização pela negociação coletiva, como o artigo 7º, VII, que prevê o direito à garantia de salário, nunca inferior ao mínimo, para os que percebem remuneração variável. São também inválidas as cláusulas da negociação coletiva que desrespeitem as normas constitucionais proibitivas, como os inciso XXX, XXXI, XXXII e XXXIII do artigo 7º.

Não tenho dúvida de que as normas constitucionais abertas, ou seja, aquelas que expressamente autorizam a flexibilização do direito pela negociação coletiva, não podem ser invocadas como fundamento para invalidar a negociação coletiva, a exemplo que dispõem os incisos VI, XIII e XIV do artigo 7º.

Também não podem fundamentar a invalidação da negociação coletiva as normas programáticas, que remetem o disciplinamento da proteção para legislação infraconstitucional, desde que não vedadas por outro dispositivo legal, como ocorre com o salário-família previsto no inciso XII do artigo 7º, considerando o inciso VIII do artigo 611-B da CLT, que veda sua disposição por negociação coletiva. Contudo, inexistindo restrição expressa, total ou parcial, o assunto da norma programática pode ser objeto de negociação coletiva, como ocorre parcialmente com o inciso XXIII do artigo 7º, ao tratar dos adicionais de periculosidade, insalubridade ou penosidade, na forma da lei. Assim, é válida a norma coletiva que define o grau do adicional de insalubridade (CLT, artigo 611-A, XII), mas é inválida a cláusula coletiva que afasta o adicional em si (artigo 611-B, XVIII).

Também os princípios constitucionais abertos, como o princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio do valor social do trabalho, o princípio do não retrocesso social, entre outros, não podem ser invocados, isoladamente, para anular disposições coletivas decorrentes da negociação coletiva. Da mesma forma, não se pode classificar todo o rol de direitos trabalhistas como direitos fundamentais e/ou direitos humanos e, assim, limitar a validade constitucional da negociação coletiva a partir da ideia de progressividade dos direitos sociais.

Por outro lado, é preciso reafirmar o primado da Constituição, assim considerado como definido pela jurisprudência constitucional, manifestada pelas teses fixadas pelo STF em controle concentrado e difuso, com efeito vinculante e eficácia "erga omnes". Logo, quando o STF fixar tese num determinado sentido, a autonomia da negociação coletiva ficará afetada, de forma positiva ou negativa. Por exemplo, o Tema 935 da repercussão geral categoricamente dispõe que "É inconstitucional a instituição, por acordo, convenção coletiva ou sentença normativa, de contribuições que se imponham compulsoriamente a empregados da categoria não sindicalizados", de forma que a negociação coletiva não poderá instituir contribuição compulsória aos não sindicalizados.

O Tema 900 estabelece que "É defeso o pagamento de remuneração em valor inferior ao salário mínimo ao servidor público, ainda que labore em jornada reduzida de trabalho", cuja ratio decidendi faz coro ao inciso IV do artigo 611-B, vedando que a negociação coletiva possa afastar o pagamento do salário-mínimo.

O Tema 497 dispõe que "A incidência da estabilidade prevista no art. 10, inc. II, do ADCT, somente exige a anterioridade da gravidez à dispensa sem justa causa", de forma que aqui também incide restrição à autonomia negocial coletiva, que não pode afastar o fator biológico como condição geradora da estabilidade da gestante, muito embora possa deixar claro outros aspectos da incidência do direito.

O Tema 932 reconhece a compatibilidade do artigo 927, p. único, do Código Civil com o artigo 7º, XXVIII, da Constituição, sendo certo que a negociação coletiva não pode afastar a incidência total da responsabilidade objetiva do empregador, mas pode exercer importante papel esclarecedor na fixação das atividades de risco especial, das áreas de risco, das funções de risco etc., levando mais objetividade às partes envolvidas.

Nesta primeira dimensão de direitos absolutamente indisponíveis, concluo que somente as normas constitucionais fechadas e/ou proibitivas podem ser consideradas como incluídas no patamar mínimo civilizatório e, assim, proscritas da negociação coletiva. Assim também são consideradas as normas constitucionais como entendidas pela jurisprudência constitucional do STF, nos julgamentos em controle concentrado e difuso.

Direitos previstos em tratados internacionais incorporados ao Direito brasileiro
A possibilidade de se adotar as normas contidas em tratados internacionais incorporados pelo Direito brasileiro para invalidação de norma coletiva pressupõe que sejam suscetíveis de invocação direta como direito subjetivo pelo trabalhador.

É preciso esclarecer que as convenções da OIT, quando ratificadas, raramente geram direito subjetivo imediato aos trabalhadores, pois a ratificação obriga o Estado-Membro a adotar medidas para sua implementação, pela edição de legislação, pelo diálogo social, por incentivo à negociação coletiva e outras formas de normatização de acordo com as práticas de cada país. Tal conceito é expresso na Constituição da OIT que, no artigo 19 (sobre convenções e recomendações), inciso 5 (sobre obrigações dos Estados-Membros em respeito às convenções), alínea "d", dispõe que o Estado-Membro "tomará as medidas necessárias para efetivar as disposições da dita convenção". Se a convenção não for ratificada, a alínea "e" do inciso 5 do artigo 19 da Constituição dispõe que "nenhuma outra obrigação recairá sobre o estado-membro".

Ademais, a invocação de normas internacionais do trabalho como direitos absolutamente indisponíveis, com o escopo de invalidar a negociação coletiva, deve observar a Convenção 98, uma das oito convenções fundamentais da OIT, especificamente o seu artigo 4, que obriga o fomento e a promoção do pleno desenvolvimento e utilização dos meios de negociação voluntária entre empregadores e organizações de trabalhadores, com o objetivo de regular os termos e condições de emprego. Tal princípio vem sendo reiteradamente reafirmado pelo Comitê de Liberdade Sindical da OIT.

Observo que, mesmo em relação à Convenção fundamental 111 da OIT, sobre Discriminação em Matéria de Emprego e Ocupação, o Comitê de Peritos sobre aplicação de convenções e recomendações da OIT já opinou que não contém dispositivos autoexecutáveis [1]. Isso porque as convenções da OIT têm conteúdo geral e programático.

Assim, as convenções ratificadas da OIT não podem ser invocadas diretamente como direitos absolutamente indisponíveis para invalidação da negociação coletiva, seja porque estabelecem obrigações programáticas e promocionais para que o Estado-Membro adote medidas de implementação — não contemplando, em geral, direito subjetivo diretamente invocável (autoexecutáveis) —, seja porque, mesmo que assim não fosse, não poderia afrontar uma das convenções fundamentais que garante a mais plena liberdade de negociação coletiva. Seria mesmo um paradoxo desrespeitar a Convenção Fundamental 98 a pretexto de dar efetividade direta a outra convenção da OIT.

Direitos previstos nas normas infraconstitucionais que expressamente vedam a negociação coletiva
Também são direitos absolutamente indisponíveis os protegidos pela legislação infraconstitucional que expressamente limitem ou proíbam a negociação coletiva. É o caso do artigo 611-B da CLT, que proíbe a negociação coletiva sobre os assuntos que enumera.

Outra hipótese em que a legislação infraconstitucional faz restrições à autonomia da negociação coletiva pode ser encontrada no § 3º do artigo 614 da CLT.

A adoção da jurisprudência sumulada do TST como baliza para definição dos direitos absolutamente indisponíveis pode levar a uma escalada de esvaziamento da tese geral de validade da negociação coletiva, pela ampliação jurisprudencial do conceito. Por exemplo, a Súmula 85, VI, que prescreve não ser válido acordo de compensação de jornada em atividade insalubre estipulado em norma coletiva, sem a necessária inspeção prévia e permissão da autoridade competente (CLT, artigo 60), foi superada pelo art. 611-A, XIII, que expressamente declara a validade de cláusula coletiva que trate da "prorrogação de jornada em ambientes insalubres, sem licença prévia das autoridades competentes do Ministério do Trabalho".

Também a Súmula 437, II, que declara inválida a negociação coletiva pela supressão ou redução do intervalo intrajornada, por constituir medida de saúde e segurança do trabalho, foi superada pelo mesmo artigo 611-A, que igualmente declara válida a norma coletiva que disponha sobre o tema, devendo-se observar a regra legal de que a duração do trabalho e intervalos não são consideradas como normas de saúde, higiene e segurança do trabalho para os fins do disposto neste artigo.

Na mesma linha segue a Súmula 449 que nega validade à negociação coletiva quando elastecer o limite de cinco minutos que antecedem e sucedem a marcação de ponto, pois o § 2º do artigo 4º da CLT passou a dar novo conceito ao tempo de trabalho à disposição do empregador, com expressa referência ao limite do § 1º do art. 58. O artigo 611-A autoriza negociação sobre a modalidade de registro de jornada de trabalho (inciso X).

Ademais, sobre duração do trabalho, jornada de trabalho, descanso, férias, salários e outras condições de trabalho, os §§ 806 e 811 da Recopilação de Decisões do Comitê de Liberdade Sindical da OIT, dispõem que uma legislação que exclua os referidos temas do campo da negociação coletiva, salvo condição excepcional, parece atentar contra o direito das organizações dos trabalhadores de negociar livremente com os empregadores as condições de trabalho garantido pelo Artigo 4º da Convenção nº 98.

Por outro lado, a Súmula 364, II, continua sendo fundamento para invalidação de negociação coletiva que tenha reduzido o percentual do adicional de periculosidade proporcionalmente ao tempo de exposição, uma vez que o inciso XVIII do artigo 611-B proíbe sua redução.

Ainda que não se esteja discutindo a constitucionalidade dos artigos 611-A e 611-B da CLT, o certo é que são normas jurídicas válidas.

A conclusão a que chego é da possibilidade da negociação coletiva flexibilizar, reduzir, alterar ou retirar direitos trabalhistas, como regra geral, da qual são exceções os direitos absolutamente indisponíveis, assim considerados aqueles constantes nas normas constitucionais fechadas e/ou proibitivas, nas normas internacionais do trabalho, desde que autoexecutáveis e nas normas infraconstitucionais que expressamente vedam ou limitam a negociação coletiva, como o artigo 611-B da CLT. A excepcionalidade das normas restritivas repousa no princípio da intervenção mínima na autonomia da vontade coletiva e na adoção do termo "exclusivamente” no caput do art. acima referido. Se a Constituição, desde 1988, já proclamava o “reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho" (artigo 7º, XXVI), de forma a elevar a negociação coletiva como a melhor e mais democrática forma de pacificação dos conflitos coletivos de trabalho e de arranjos setoriais de atividades econômicas e profissionais, foi com a fixação de tese no Tema 1.046 da repercussão geral que tal dispositivo passa a ganhar maior protagonismo.


[1] Equality in Employment and Occupation, Special Survey of the Committee of Experts on the Application of Conventions and Recommendations, Conferência Internacional do Trabalho, 83ª Sessão, Genebra, 1996, Relatório III (4B), p. 212, nota final.

Autores

  • é desembargador do TRT-SC, mestre e Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e professor convidado Permanente da Escola Superior da Advocacia de Santa Catarina.

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