Seguros Contemporâneos

Notas sobre o contrato de seguro baseado no uso e no comportamento do segurado

Autor

  • Camila Ferrão dos Santos

    é mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) professora substituta de Direito Civil da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e advogada.

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29 de setembro de 2022, 8h00

Na lógica securitária, o risco ocupa posição de verdadeiro protagonismo dentre os diversos elementos do contrato de seguro. O evento ao qual o risco se reporta é caracterizado como um fato eventual e alheio à vontade do segurado, que jamais poderá decorrer de ato intencional deste. Partindo-se desse pressuposto, tem-se que a adequada celebração do contrato de seguro depende de cuidadoso e preciso processo de mensuração do risco — o que, na prática, é realizado por meio de cálculos de probabilidades, estatísticas, atuária etc. Pautados no pilar da mutualidade, tais mecanismos viabilizarão a compreensão econômica das incertezas individuais, convolando-as em risco no contexto coletivo e nele dissolvendo-as [1]. A análise de tais dados levará, então, à conclusão sobre se há ou não interesse por parte da seguradora em celebrar o contrato e segurar aquele interesse específico; por qual valor (prêmio); e em que medida (limitação da cobertura).

Atualmente, a aferição do risco apoia-se, principalmente, nas informações prestadas unilateralmente pelo segurado na declaração inicial do risco, preenchida no momento da celebração do contrato. Nesse contexto, o dever de boa-fé desponta como uma das "regras de ouro" para que o contrato de seguro se mantenha de pé. Naturalmente, tal exigência não se limita ao momento da formação do contrato e do preenchimento da referida declaração, mantendo-se durante todas as demais etapas da relação contratual, em espécie de fonte contínua de deveres de conduta que devem pautar toda a relação securitária, aí incluído, em especial, o momento em que seja verificado eventual agravamento do risco.

Não obstante, por mais que a boa-fé auxilie no processo de aferição do agravamento do risco, fato é que tal postulado tem suas limitações, e, em muitas hipóteses, tal aferição acabará dependendo exclusivamente da colaboração e honestidade do próprio segurado que deu ensejo ou verificou o agravamento (e que seria, pois, financeiramente prejudicado pelo reconhecimento de tal agravamento). Ademais, a demonstração de que determinado segurado agiu em desacordo com a boa-fé e deu causa a um agravamento injustificado do risco é processo complicado por si só, não apenas pela dificuldade probatória, mas também em razão da própria dificuldade em se delimitar o que, efetivamente, se enquadra como agravamento do risco, passando, ainda, pela interminável discussão envolvendo dolo, culpa e intencionalidade no agravamento do risco.

É nesse contexto que o desenvolvimento de sistemas que, de forma objetiva, viabilizem a aferição constante do risco no curso do contrato de seguro — fazendo com que a comunicação de eventual agravamento não mais dependa majoritariamente da "boa vontade" do segurado, tendo em vista que cria mecanismo isento, imparcial e eficaz de controle — revela-se extremamente pertinente para a discussão posta aqui.

No Brasil, o modelo tradicionalmente usado pelas seguradoras realiza uma avaliação do risco de forma pontual e estanque, no momento da contratação, com base na já mencionada declaração preliminar de risco prestada pelo segurado e outros fatores secundários (todos aferidos durante as negociações iniciais). Nessa sistemática, a aferição de agravamentos injustificados do risco dependerá, em muitos casos, de um dever de informação a ser cumprido pelo próprio segurado — o que, na prática, revela-se pouco eficaz e insuficiente para acompanhar o dinamismo inerente às relações cotidianas atuais.

Alternativamente a esse modelo tradicional, um novo sistema de contratação de seguros se apresenta: o do seguro baseado no uso e no comportamento do segurado (denominado, globalmente, de "UBI" — usage based insurance). Neste, uma avaliação constante do risco (isto é, ao longo de todo o curso contratual) é realizada de forma isenta e objetiva, evitando interpretações subjetivas e eventuais omissões no dever de comunicação. Ao invés de se proceder à avaliação do risco com base em dados estáticos de um único ponto temporal do contrato (momento da celebração), passa-se, a partir do fornecimento de dados pertinentes em tempo real, a proceder a uma avaliação de risco contínua e personalizada, baseada nos hábitos e comportamentos de cada segurado – tudo com o auxílio das novas tecnologias de telemática, big data, inteligência artificial etc.

Partindo-se do exemplo do seguro de automóvel, procede-se a um monitoramento constante da direção e do comportamento do indivíduo na condução do veículo (mediante dispositivos integrados ao próprio automóvel e ao celular do segurado), durante o qual são rastreados e coletados dados relacionados à velocidade; distâncias percorridas; freadas e acelerações bruscas; rotas escolhidas; local e hora do dia em que se costuma dirigir; locais em que o veículo fica estacionado e pernoita (se em garagem ou via pública); prudência em curvas; implantação de airbags; dentre outros dados objetivos que se revelem relevantes para aferição do risco a que o interesse legítimo está exposto [2].

Já amplamente difundido na Europa e nos Estados Unidos, as ofertas pautadas nesse sistema, em primeiro momento, passaram a ser oferecidas mediante modelo unitário simples, conhecido como "pay-as-you-drive" (PAYD), isto é, "pague à medida que você dirige". Nesse modelo, há monitoramento dos quilômetros rodados pelo veículo segurado e, quanto maiores as distâncias percorridas pelo segurado, maior será o valor do prêmio. O sistema segue premissa básica no sentido de que um segurado que dirige o veículo por mais quilômetros, expõe o veículo a mais horas de risco na estrada e, consequentemente, o risco de acidentes é maior quando comparado ao de um segurado que dirige por distâncias menores. Assim, no modelo de seguro "pay-as-you-drive", se o segurado não estiver dirigindo muito, estará menos exposto ao risco e, por isso, economizará dinheiro no seguro [3].

Após desenvolvimentos no sistema de seguros automotivos, passou a ser comercializado o modelo "pay-how-you-drive" (PHYD), ou seja, "pague de acordo com a maneira que você dirige". Nesse sistema, o prêmio varia não mais a depender exclusivamente das distâncias percorridas pelo segurado. Procede-se, na verdade, a uma coleta de dados muito mais sofisticados e complexos (e aqui, portanto, a preocupação com a proteção de dados pessoais deve ser ainda mais acentuada), relacionados à conduta do segurado em relação ao automóvel, que viabilizam a análise do próprio comportamento do motorista enquanto conduz e guarda o veículo segurado. Assim, na modalidade PHYD, a depender de o quão cauteloso é o indivíduo na condução de seu automóvel, haverá uma redução ou majoração do prêmio a ser pago.

Com o tempo, uma terceira e aperfeiçoada versão foi desenvolvida, hoje conhecida como "manage-how-you-drive" (MHYD: "gerencie a maneira que você dirige"). Nesta, procede-se à coleta e tratamento de dados da mesma forma que ocorre no modelo de seguro PHYD, mas, para além disso, há envolvimento proativo da seguradora, na forma de alertas que são fornecidos aos motoristas enquanto dirigem, com o objetivo de orientá-los e evitar a ocorrência de danos, sinistros ou simplesmente de agravamentos de risco. O modelo se propõe a auxiliar o segurado a compreender em que aspectos seu comportamento na direção e no manuseio do bem segurado precisa ser aprimorada, de forma a que possa ajustar seu comportamento e não ser surpreendido com variações nas taxas, tratando-se, pois, do modelo que melhor garante o cumprimento do dever de informação por parte da seguradora.

É inegável que a Internet das Coisas, a inteligência artificial, os wearables, os carros conectados à internet e outras tecnologias disruptivas vêm modificando e continuarão modificando, de forma cada vez mais acelerada a partir da atuação das insurtechs, todo o modelo de negócio de seguros. No que diz respeito ao sistema ora sob enfoque, a tecnologia permite que as seguradoras monitorem grande número de variáveis, possibilitando que o risco esteja constantemente "atualizado", o que, por sua vez, garante que o cálculo das probabilidades seja feito de forma exponencialmente mais precisa, através dos dados confiáveis sendo constantemente coletados e tratados. É o tratamento sistematizado desses dados que poderá ser usado, durante o relacionamento contratual, para facilitar a solução de problemas envolvendo o agravamento injustificado do risco.

É evidente, contudo, que, para a adequada implementação desse modelo, exige-se uma comunicação clara entre seguradora e segurado, especialmente no que se refere aos benefícios, preocupações e diferenças do novo modelo quando comparados ao modelo tradicional. Nesse contexto, para além da imprescindível adequação aos parâmetros da Lei Geral de Proteção de Dados, mostra-se necessária a reflexão sobre outros pontos cruciais envolvendo o seguro baseado no uso, tais quais (1) a criação de limites para a coleta contínua de dados pela seguradora; (2) a forma pela qual as informações coletadas poderão ser tratadas e compartilhadas; (3) as formas nas quais os dados serão utilizados para se proceder à avaliação constante do risco; (4) como se dará a variação na precificação do prêmio; (5) como será garantido amplo acesso, pelo segurado, aos parâmetros utilizados para aferição do risco; analisando-se, ainda, (6) a possibilidade de o aparelho usado para a coleta de dados ferir o direito à privacidade dos usuários, de forma a criar mecanismos de proteção.

No ordenamento brasileiro, o modelo de seguro baseado no uso certamente teria considerável impacto, principalmente no que diz respeito ao problema do agravamento do risco que, hoje, ainda figura entre as maiores dificuldades enfrentadas no âmbito das relações securitárias. Tal dificuldade, inerente à própria lógica de funcionamento do modelo tradicional, revela que o sistema dos seguros, tal como está regulado hoje, carece de mecanismos alternativos que viabilizem o controle da variação do risco de formas mais eficientes. Assim, um método que viabilizasse o controle de forma isenta e objetiva traria significativas vantagens à sistemática dos contratos de seguro, beneficiando ambas as partes (seguradora e segurado) e otimizando a administração e controle do fundo mutualístico.

 


[1] TZIRULNIK, Ernesto; CAVALCANTI, Flávio; PIMENTEL, Ayrton. O Contrato de Seguro. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 32.

[3] Sobre esse ponto, é digno de nota que o seguro baseado no uso e/ou no comportamento ganhou especial relevo com a pandemia da Covid-19 eis que, durante e após as medidas mais drásticas de lockdown e isolamento social, a necessidade de dirigir foi drasticamente reduzida para grande parte da população, gerando importante reflexão sobre a forma de se segurar os automóveis e, mais importante, a forma de se pagar por esse seguro. Disponível em: https://gr1d.io/insurance/trends/post/como-a-pandemia-da-covid-19-esta-mudando-os-seguros-f81b3722c0. Acesso em 14/9/2022.

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  • é mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), professora substituta de Direito Civil da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e advogada.

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