Controvérsias Jurídicas

Contratos de locação e a sistemática do Código de Defesa do Consumidor

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

29 de setembro de 2022, 12h12

Tema recorrentemente presente nos debates acadêmicos, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor às relações locatícias ganha cada vez mais relevância, tendo em vista que a redução do poder aquisitivo da população, decorrente da paralisação das atividades econômicas em função do combate ao Covid-19, implicou no aumento do índice de inadimplência entre os locatários. Nesse aspecto, não obstante a tendência doutrinaria de alargamento do conceito de relação de consumo, nossos Tribunais Superiores pacificaram o entendimento quando a sua não aplicação.

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Sabemos que o Código de Defesa do Consumidor constitui um microssistema de proteção jurídica multidisciplinar, uma vez que dele emanam normas coordenadas que regulam todos os aspectos de proteção e defesa dos consumidores. Seu artigo 2º conceitua consumidor como toda pessoa física ou jurídica, que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. O parágrafo único estende o entendimento ao coletivo de pessoas, ainda que indetermináveis, que tenham participado da relação de consumo. Ressalte-se que quanto ao conceito de destinatário final, hodiernamente, a doutrina e jurisprudência adotam a "teoria do finalismo aprofundado".

É possível que as pessoas jurídicas de direito público figurem como consumidoras, desde que demonstrada a sua vulnerabilidade. Ainda é equiparado a consumidor as vítimas de danos ocasionados pelo fornecimento defeituoso de produto ou serviço (artigo 17 — bystanders) e as pessoas, determináveis ou não, expostas às práticas comerciais ou contratuais abusivas (artigo 29).

Quanto a definição de fornecedor, preceitua o artigo 3º ser qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, brasileira ou estrangeira, como também os entes despersonalizados que desenvolvam atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos e serviços.

Diante dessas premissas, têm prevalecido na jurisprudência e em parte majoritária da doutrina que a locação de imóveis não se enquadra como contrato de consumo; sendo regida por legislação própria (L. 8.245/81). De igual modo, o locador não pode ser caracterizado como fornecedor de produto ou prestador de serviços porque a essência da atividade locatícia não é de cunho profissional.

Nesse sentido, decidiu o STJ, conforme decisões que se seguem:

"Locação. Ação civil pública proposta em face de apenas uma administradora de imóvel. Cláusula contratual abusiva. Ilegitimidade ativa do Ministério Público. Estadual. Direito individual privado. Código de Defesa do Consumidor. Inaplicabilidade. 1. Nos termos do art. 29, III da CF e do art. 25, IV, alínea a, da L. 8.625/93, possui o Ministério Público como função institucional, a defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos. 2. No caso dos autos, a falta de configuração de interesse coletivo afasta a legitimidade ad causam do Ministério público para ajuizar ação civil pública objetivando a declaração de nulidade de cláusulas abusivas constantes em contratos de locação realizados com apenas uma administradora do ramo imobiliário. 3. É pacífica a jurisprudência, nesta Corte, no sentido de que o Código de Defesa do Consumidor não é aplicável aos contratos locatícios, que são reguladas pela legislação própria. Precedentes. 4. Recurso especial desprovido".[1]

O mesmo entendimento encontra guarida na doutrina. Flávio Tartuce e Daniel Amorim Assumpção Neves são peremptórios: "O Código de Defesa do Consumidor não é aplicável aos contratos locatícios regidos pela Lei. 8.245/91"[2]. Contudo, há respeitáveis opiniões em sentido contrário: "Mas, mesmo quando a locação é feita sem a participação da imobiliária, o proprietário é fornecedor e as regras do CDC visam apenas o reequilíbrio do contrato, a equidade, a justiça contratual, a qual não será, sem última análise, prejudicial à fornecedora".[3]

A interpretação de Humberto Theodoro Júnior mostra o alargamento da percepção das relações de consumo, submetendo o Código de Defesa do Consumidor às relações locatícias, desde que presentes algumas circunstâncias especiais. Primeiramente, há que se dizer que a vertente doutrinária que admite a incidência da legislação consumerista a condiciona ao exercício profissional da atividade de locador; ou seja, aquele indivíduo que é proprietário de vários imóveis e os disponibiliza à locação com profissionalismo (estrutura, planejamento, continuidade), fazendo dessa atividade seu meio de subsistência.

Outro aspecto que deve ser levado em consideração diz respeito às relações estabelecidas entre locador e locatário intermediadas por imobiliárias ou administradoras de imóveis. Tal hipótese ensejará duas relações de consumo concomitantes, uma entre locador e imobiliária e a outra entre o locatário e a imobiliária. 

"Não se quer aqui defender a incidência da Lei. n. 8.079/90 às relações locatícias, mas sim às relações firmadas entre o locador e a administradora de imóveis ou entre esta e o locatário, como única forma viável de proteger aqueles que são os vulneráveis da relação." [4]

Bruno Miragem justifica a aplicação do Código de Defesa do Consumidor às imobiliárias e administradoras de imóveis, dizendo: "As relações de locação sendo intermediadas por um profissional-imobiliária ou administradora de imóveis tem-se neste polo da relação contratual a expertise, o conhecimento e a direção da relação contratual que se exige para a aplicação do CDC".[5]

Tal justificativa é ratificada pelo Superior Tribunal de Justiça:

"(…) 1. O contrato de administração imobiliária possui natureza jurídica complexa, em que convivem características de diversas modalidades contratuais típicas — corretagem, agenciamento, administração, mandato —, não se confundindo com o contrato de locação, nem necessariamente dele dependendo. 2. No cenário caracterizado pela presença da administradora na atividade de locação imobiliária se sobressaem pelo menos duas relações jurídicas distintas: a de prestação de serviços, estabelecida entre o proprietário de um ou mais imóveis e essa administradora, e a locação propriamente dita, em que a imobiliária atua como intermediária de um contrato de locação. 3. Na primeira, o dono do imóvel ocupa a posição de destinatário final econômico daquela serventia, vale dizer, aquele que contrata os serviços de uma administradora de imóvel remunera expertise da contratada, o know-kow oferecido em benefício próprio, não se tratando propriamente de atividade que agrega valor econômico ao bem. 4. É relação autônima e pode se operar com as mais diversas nuances e num espaço de tempo totalmente aleatório, sem que sequer se tenha como objetivo a locação daquela edificação. 5. A atividade da imobiliária, que é normalmente desenvolvida com o escopo de propiciar um outro negócio jurídico, uma nova contratação, envolvendo uma terceira pessoa física ou jurídica, pode também se resumir ao cumprimento de uma agenda de pagamentos (taxas, impostos e emolumentos) ou apenas à conservação do bem, à sua manutenção e até mesmo, em casos extremos, ao simples exercício da posse, presente uma eventual impossibilidade do próprio dono, tudo a evidenciar a sua destinação final econômica em relação ao contratante (…)".[6]

Por fim, concluímos que independentemente do motivo da locação do bem (moradia ou por temporada) o Código de Defesa do Consumidor deverá ser aplicado aos contratos firmados entre particulares e imobiliária, bilateralmente, tanto para locador quanto para locatário. Caso as obrigações adquiridas advenham da confluência da vontade direta dos particulares, sem intermediação profissional, a relação será regida pela legislação civil.


[1] STJ – REsp605.295/MG – 5ª Turma – Rel. Min. Laurita Vaz – j. 20.10.2009 – DJe 02/08/2010

[2] TARTUCE, Flávio e NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito do Consumidor, 7ª edição, Rio de Janeiro, Ed. Método, 2018, p. 139.

[3] JÚNIOR, Humberto Theodoro. Direitos do Consumidor, 9ª edição, Rio de Janeiro, Ed. Forense, 2017, p.401.

[4] ALMEIDA, Fabrício Bolzan de. Curso de Direito do Consumidor Esquematizado, 8ª edição, São Paulo, Ed. Saraiva, 2020, p. 168.

[5] MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor, 2ª edição, São Paulo, Rd. RT, 2010, p. 168.

[6] STJ. REsp 509.304/PR, 3ª Turma. Ministro Relator: Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 23.05.2013.

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