Opinião

Natureza dos programas de integridade das empresas estatais

Autores

  • Bernardo Strobel Guimarães

    é doutor e mestre em Direito do Estado pela USP professor adjunto de Direito Administrativo da PUC-PR professor substituto de Direito Econômico da UFPR e advogado.

  • Caio Augusto Nazário de Souza

    é advogado LL.M. em Direito Empresarial pela FGV-RJ e especialista em mediação e arbitragem pela mesma instituição.

  • Rosimeri Andrade

    é graduada em administração especialista em gestão empresarial mercado financeiro gerenciamento de projetos governança de riscos compliance e auditoria interna no Brasil e no exterior professora universitária consultora financeira e palestrante nas áreas de gestão estratégica e financeira para empresas.

27 de setembro de 2022, 7h08

A Lei nº 13.303/16 alterou profundamente o modo pelo qual se concebe a atuação das empresas estatais no Brasil. Uma inovação que merece destaque diz respeito à exigência de adoção de programas de integridade, prevista no § 1º do artigo 9º da referida legislação. Trata-se de novidade que impacta no funcionamento de tais empresas, já que a adoção de um programa de integridade, para além de sua faceta de prevenção, implica a necessidade de que condutas irregulares sejam efetivamente sancionadas.

Muito já se falou sobre os programas de integridade em si: seus requisitos e cláusulas obrigatórias, de modo que maiores comentários sobre esse assunto não serão feitos [1]. O objetivo aqui é outro: analisar o sentido e o alcance de tais programas. Em particular, a ideia é compreender a natureza do rito sancionatório decorrente da aplicação dos códigos de conduta ou, em outras palavras, a natureza das sanções aplicadas e o que deve ser observado pelas estatais ao sancionar seus empregados.

De início, importante notar que a Lei das Estatais se limita a exigir a adoção de programas de integridade, com a previsão de alguns critérios gerais que devem ser obrigatoriamente observados. Via de consequência, atribui autonomia a cada empresa para implementar e aprimorar seu programa. Cada estatal deve, com atenção aos seus procedimentos internos e demais peculiaridades de sua atuação, criar programas capazes de atender aos standards fixados na lei. Nem sequer as sanções que devem ser aplicadas foram previamente definidas, o que somente reforça o amplo espaço de conformação empresarial a ser exercido pelas estatais.

Com efeito, a despeito de alguns parâmetros gerais previstos no artigp 9º da lei, as estatais possuem autonomia para, à luz da lei que as institui, de seus estatutos sociais, procedimentos internos e melhores práticas, definir como concretizarão seus programas de integridade. É importante ter isso claro para se rejeitar desde logo interpretações que imponham às estatais a satisfação de requisitos diferentes daqueles previstos na lei, sob pena de se desprezar a autonomia a elas conferida pelo legislador.

Em linhas gerais, questões como as sanções que deverão ser aplicadas, as condutas esperadas, o procedimento a ser adotado para a aplicação das penalidades etc., tudo isso deve ser definido posteriormente em normas internas da empresa, de modo que o caráter das regras de integridade é empresarial, é privado. Logo, as sanções aplicadas não derivam de atos de autoridade estatal ou império, mas de atos praticados com base na capacidade de as estatais, enquanto entes de direito privado, definirem seu próprio funcionamento.

De se observar, nesse sentido, que é a própria Constituição da República que determina que as estatais atuam de acordo com as regras do direito privado (artigo 173). Somente nos pontos em que houver clara derrogação do direito privado é que se pode impor às estatais a metodologia típica do direito público [2]. Dentre essas derrogações expressas, destaca-se a exigência de contratação de empregados mediante concurso público. Isso não significa, por outro lado, que os empregados das estatais estão sujeitos ao mesmo regime dos servidores públicos. Por exemplo: os empregados das estatais não são estáveis, conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal no julgamento do Agravo de Instrumento nº 465.780.

Nesse sentido, os empregados das empresas estatais são regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), mas com algumas peculiaridades, haja vista que tais empresas ainda fazem parte da administração pública e, portanto, não estão totalmente excluídas da aplicação dos princípios constitucionais administrativos (artigo 37). No tocante ao desligamento de empregados de estatais, a doutrina converge para a linha de que sua legalidade e validade encontra limite na imposição da motivação desses atos [3]. Isto é, a demissão dos empregados de estatais não é livre, sendo necessária a apresentação de um motivo idôneo por parte da empresa.

Isso porque a autonomia das estatais não equivale totalmente à autonomia das empresas privadas. As estatais têm o ônus de fundamentar procedimentalmente suas decisões, de forma a impedir arbítrios. Nesse sentido, já decidiu o STF que embora não façam jus à estabilidade, em atenção aos princípios da impessoalidade e da isonomia "[…] que regem a admissão por concurso público, a dispensa do empregado de empresas públicas e sociedades de economia mista que prestam serviços públicos deve ser motivada, assegurando-se, assim, que tais princípios, observados no momento daquela admissão, sejam também respeitados por ocasião da dispensa" – RExt nº 589.998/PI.

Assim, da mesma forma que não se exige a instauração de processo administrativo para a demissão de empregados de estatais, já que eles não são estáveis, a demissão também não é livre, possuindo a estatal o dever de motivar suas decisões de desligamento de funcionários admitidos mediante concurso público. Contudo, e isso deve ficar claro, a exigência de motivação das decisões de desligamento não desnatura a natureza privada do vínculo de emprego. Pensar de modo diverso seria imputar às estatais requisitos incompatíveis com o texto constitucional, que é explícito ao destacar o caráter privado da relação de emprego no âmbito das estatais.

Postas essas ideias em ordem, podemos enfrentar o tema central do presente texto: qual a natureza das normas do programa de integridade e qual o procedimento que deve ser seguido pelas estatais para aplicá-las? Isto é, qual a extensão do direito de defesa do colaborador diante da aplicação de penalidades decorrentes da efetivação de um programa de integridade? Duas visões antagônicas existem sobre o tema. A primeira enxerga na aplicação dessas sanções a manifestação de um ato de autoridade, que se sujeitaria ao atendimento integral da cláusula do devido processo legal. A segunda entende que tais atos possuem natureza privada, escapando assim à aplicação da cláusula do devido processo legal, cabendo à empresa somente motivar sua decisão, de modo a garantir que ela não seja arbitrária [4].

Em nosso entendimento, a primeira posição não só é equivocada como vai de encontro com as próprias exigências da Lei das Estatais, comprometendo as premissas que conformam a existência de programas de integridade nessas empresas. Jamais podemos perder de vista que a natureza dos programas de integridade é privada. Os controles decorrentes da implementação de programas de integridade constituem expressões da faceta empresarial das estatais, de modo que este é o ponto central a ser levado em consideração na sua aplicação.

As regras de integridade são regras internas. O legislador se limitou a exigir a adoção dos programas, não se imiscuindo de forma detalhada no conteúdo a ser observado. Além disto, as normas relativas ao dever de integridade não possuem natureza estatutária, mas contratual. Elas decorrem do vínculo específico que une os colaboradores à empresa (contrato de trabalho ou nomeação), somada à expressa aceitação da vinculação de cada um deles às regras de integridade. O termo de aceitação do programa, usualmente previsto, é ato que se reveste de conteúdo jurídico, não se tratando de mera formalidade despida de consequências [5].

Essa necessidade de adesão voluntária às regras do programa de integridade tem um importante papel na compreensão das questões aqui examinadas pois implica, em primeiro lugar, que a fonte das obrigações é inequivocamente privada, afinal, se se tratasse de poderes de autoridade a adesão seria desnecessária, decorrendo diretamente da lei. A existência de termo de consentimento denota, exatamente, o que se defendeu acerca da natureza privada das obrigações decorrentes dos programas de integridade.

Portanto, não se pode equiparar o procedimento de aplicação de medidas de integridade com uma espécie de processo disciplinar privado. Cuidam-se de coisas distintas, e tratar ambas de modo igual implica ignorar duas prescrições constitucionais: o artigo 41, § 1º, II que estabelece para o servidor estável a garantia do processo administrativo disciplinar e o artigo 173, § 1º, II, que prevê para as estatais "a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários". Nessa medida, a situação das estatais no que toca à aplicação de sanções decorrentes dos programas de integridade é análoga às empresas privadas. Tanto é assim que a Lei Anticorrupção não promove nenhuma distinção quanto a esse fim, no que é acompanhada pelo Decreto nº 11.129/22.

O que se exige para fins de aplicação das medidas disciplinares é que haja um procedimento racional para prevenir e reprimir atos que possam caracterizar fraude ou corrupção, o que certamente não impõe a observância de uma espécie de processo disciplinar privado pela empresa, seja ela privada ou estatal. O poder diretivo do empregador não equivale à autoridade exercida pelo Estado, ainda que decorrente de vínculo de sujeição especial.

Portanto, assim como não faz sentido exigir das empresas privadas a instituição de procedimento disciplinar com as garantias do contraditório e da ampla defesa para dar execução aos seus programas de integridade, também é equivocado exigir isto das estatais, sendo necessário somente a estipulação de regras procedimentais capazes de impedir a prática de arbítrios, tal como a exigência de motivação das decisões.

Portento, o "direito de defesa" a que os empregados de estatais têm direito é o previsto nos atos internos. Impor requisitos alheios aos previstos nas regras internas constitui desconsideração da natureza privada do programa de integridade, assim como menoscaba a autonomia empresarial que as estatais possuem para definir seus protocolos internos. Além disso, desprezar a natureza privadas das regras de integridade é atentar contra a sua efetividade já que, em última análise, a ampliação do sentido do direito de defesa para além disposto nos próprios atos que instituem o programa retarda a adoção das medidas cabíveis, indo na contramão do que a Lei nº 13.303/16 exige.

 


[1] Para os interessados, recomendamos GUIMARÃES, Bernardo Strobel [et. al]. Comentários à Lei das Estatais (Lei nº 13.303/2016). Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 96-101.

[2] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. O Direito Privado na Administração Pública. São Paulo: Atlas, 1989, p. 110.

[3] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. O Direito Privado na Administração Pública. São Paulo: Atlas, 1989, p. 97.

[4] GUIMARÃES, Bernardo Strobel; SOUZA, Caio Augusto Nazário de. Aplicação de medidas disciplinares decorrentes de programas de integridade das estatais: natureza e requisitos. Revista de Contratos Públicos (RCP), ano 11, nº 20, set. 2021/fev. 2022. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p. 22.

[5] GUIMARÃES, Bernardo Strobel; SOUZA, Caio Augusto Nazário de. Aplicação de medidas disciplinares decorrentes de programas de integridade das estatais: natureza e requisitos. Revista de Contratos Públicos (RCP), ano 11, nº 20, set. 2021/fev. 2022. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p. 24.

Autores

  • é doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP), professor adjunto de Direito Administrativo da PUC-PR, professor substituto de Direito Econômico da UFPR e advogado.

  • é advogado, membro da Comissão de Infraestrutura e Desenvolvimento Sustentável da OAB-PR e especialista em mediação e arbitragem pela FGV-RJ.

  • é graduada em administração, especialista em gestão empresarial, mercado financeiro, gerenciamento de projetos, governança de riscos, compliance e auditoria interna no Brasil e no exterior, professora universitária, consultora financeira e palestrante nas áreas de gestão estratégica e financeira para empresas.

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