Opinião

Clubes de futebol e os sites de apostas online: o Estado não está mais blefando

Autores

  • Thuan Gritz

    é sócio do Sade & Gritz Advogados especialista em Direito Criminal pela Associação Brasileira de Direito Constitucional (ABDCONST) pós-graduado em Direito Tributário pela ABDCONST) e pós-graduando em Direito Eleitoral pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).

  • Pedro Gurek

    é sócio do Sade & Gritz Advogados ex-assessor do MPPR especialista em Direito Penal Econômico e pós-graduando em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC).

26 de setembro de 2022, 20h37

Nos últimos dias, o Ministério da Justiça e Segurança Pública, por meio da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), notificou [1] os clubes que disputam as Séries A e B do Campeonato Brasileiro, 13 federações e a Rede Globo de televisão, dando aos notificados dez dias para enviarem cópias dos contratos de publicidade e/ou patrocínio com as empresas que oferecem serviço de apostas esportivas, o que constou do primeiro dos 16 itens elencados ao longo do documento.

A essência da notificação apresenta como "motivo principal" a ausência de regulamentação e o desenvolvimento da atividade sem nenhum controle. O item 2, por exemplo, já delineia em seu texto que a preocupação se deve pelo crescimento do ramo no país, ainda que, conforme consta, não haja autorização para a operação:

"Item 2: Motivação se deve ao elevado número de contratos de patrocínio entre entidades do futebol noticiadas e empresas do setor de apostas esportivas que, em muitas vezes, exercem atividades sem autorização no país por meio de websites."

A aparente preocupação do órgão, permissa venia, apresenta uma verdadeira ginástica semântica para requisitar documentos sem nenhum motivo específico, enumerando meras conjecturas para justificar o falso blefe (i.e. o que realmente busca com o pedido). Em outras palavras, faz um pedido genérico a mais de 50 instituições sem fazer nenhuma distinção entre elas.

Ocorre que a motivação destacada no item 2 vai de encontro com as diretrizes prévias do próprio Estado, pois, como já apresentamos de forma detalhada em artigo anterior [2], os empresários atuavam sob a perspectiva que trazia um pouco de segurança, registrada no Processo/Protocolo n.º 08200.02.0170/2017-12, no âmbito da Polícia Federal.

A definição por parte da Delegacia de Estudos, Legislação e Pareceres da PF sugeriu entendimento "no sentido da inaplicabilidade da lei brasileira a jogos de azar implementados por páginas situadas no exterior", exatamente o oposto do que agora se sugere — sem nenhuma explicação sobre a contradição do Estado brasileiro.

E o pior. O parecer acolhido pelas coordenadorias gerais e pela corregedoria geral em 28/11/2017 tinha como finalidade justamente "evitar a abertura de procedimentos de polícia judiciária desnecessários".

Obviamente um país pode modificar seu entendimento com o passar dos anos, fator que, para tanto, exige coerência sistêmica e de perspectivas. Neste ponto, o Brasil passa longe.

Isso porque, entre o citado parecer da Polícia Federal e a presente notificação, publicou-se a Lei 13.756/18, tratando as apostas de quota fixa a partir do seu artigo 29. Além disso, em tópico oportuno fixou prazo para regulamentação do setor, o que deveria — conforme a lei — ocorrer até o fim de 2022.

Curioso, então, que o próprio "assunto" apresentado no título do documento da Senacon denomine as apostas como irregulares, assim como a "preocupação" com a ausência de fiscalização de um setor, cuja regulamentação: a) não acontece por conta de interesses políticos conflituosos e b) ainda está dentro do prazo fixado pelo próprio legislador.

O objetivo vai além da preocupação com o consumidor e só na vê quem não quer!

A origem da notificação revela o seu real interesse.

Prova disso é que, especificamente na parte final do item sete (7) da notificação, destaca-se que a iniciativa para tal desiderato partiu de um perspicaz ofício enviado pelo Ministério Público Federal à Senacon, deixando claro o intuito investigatório do documento.

"07. Em que pese a nova modalidade de apostas (quota fixa) ter sido aprovada pela Lei n° 13.756/2018, ainda não se encontra com sua eficácia vigente, uma vez que fora autorizado prazo para regulamentação (autonomia da lei). Assim, a atividade vem sendo explorada sem a devida autorização e sem qualquer mecanismos de controle, fiscalização ou prestação de contas, uma vez que ainda não há regulamentação exigida pela lei, inclusive sem regras que mitiguem prejuízo aos apostadores/consumidores, o que pode, em tese, estar ferindo direitos básicos do consumidor. Possibilidade essa que motivou envio de ofício do Ministério Públicos Federal à Senacon para que fosse verificada a questão da publicidade realizada pelas casas de aposta."

Paralelamente a tudo isso, noticiou-se que a Procuradoria-Geral da República (PGR) pretende apurar uma suposta exploração irregular de apostas esportivas no país [3], visto que já havia sido acionada, junto com a Polícia Federal, pelo Ministério da Economia [4].

Assim, com base naquilo que se ventilou até o momento, é possível concluir que tudo teve início nos ofícios encaminhados pela Secretaria de Avaliação, Planejamento, Energia e Loteria (Secap), que integra a pasta do Ministério da Economia, provocando, então, a PGR oficiar a Senacon, pertencente à pasta do Ministério da Justiça e Segurança Pública, que finalmente notificou as entidades destacadas no início.

O que há de comum em todas as manifestações é a abordagem de que o setor funciona sem qualquer autorização ou fiscalização, embora a Senacon justifique a medida com base em seu mister, que é a proteção do consumidor.

Com efeito, as atribuições da Senacon estão delimitadas no artigo 106 do Código de Defesa do Consumidor e no artigo 3° do Decreto n° 2.181/97, concentrando-se, em resumo, no planejamento, elaboração, coordenação e execução da política nacional de proteção e defesa do consumidor. Este contexto é importante porque criou um cenário de aparente viés de proteção consumerista.

Isso fica claro ao menos nos itens 6, 8, 9, 10, 11 e 12, onde há um esforço para alargar o conceito jurídico de fornecedor, a fim de atingir os patrocinados pelos sites de apostas, sob um questionável pretexto acerca do vício daqueles que jogam (ludopatia) ou mesmo abordar uma suposta preocupação com a saúde mental do apostador.

Um raciocínio incompatível, já que é o Estado notificando particulares sob fundamentos de preocupações que já constam na minuta de regulamentação das apostas de quota fixa (artigos 7 a 16 — que tratam de vários temas relacionados à fiscalização, publicidade consciente e jogo responsável), mas o próprio Estado, por motivos diversos, é inoperante na aprovação da regulamentação. Uma incoerência que salta aos olhos.

O ponto chave, no entanto, está lançado no meio da notificação. Especificamente no item cinco (5), descreve-se o objetivo da PGR em solicitar apoio à Senacon, notadamente porque, de antemão, a Procuradoria não teria atribuições legítimas para acessar dados/informações de sites de apostas sediados fora do país sem autorização judicial ou sem demandar de cooperações externas, as quais só se efetivariam, por óbvio, a partir de indícios razoáveis da existência de ilícitos criminais.

O mesmo item cita expressamente crimes financeiros (?) e ao que parece descreve, sem parâmetros, uma teórica prática de pirâmides financeiras pelos sites, forçando a participação do órgão consumerista sem qualquer indicativo de que algum dos pelo menos 53 notificados tenha participação em crimes desta natureza. É como se quisesse pescar um "peixe" específico e lançasse uma rede enorme para fisgar o que vier.

Aqui, é importante que seja transcrito o conteúdo do tópico em questão, até porque as premissas das quais o órgão parte terminam com a conclusão ilógica de um suposto prejuízo econômico para a "sociedade":

"Item 5. Com a publicidade ostensiva com essas empresas vêm atuando no país, a quantidade de participantes desse mercado, que já está exponencial e se elevará mais e, consequentemente, aumentará a probabilidade de ocorrerem crimes financeiros e ofertas falsas de alto lucro em curto período de tempo, gerando um enorme prejuízo econômico para a sociedade."

Frise-se: apenas os patrocinados foram notificados, evidenciando a intenção de atingir os sites de apostas sediados no exterior por via transversa. Note-se que o documento apenas menciona a probabilidade da ocorrência de crimes, isto é, a fim de obter informações contratuais dos patrocinadores, que à vista do órgão acusatório podem ser essenciais para futuras investigações de delitos econômicos ou endossar procedimentos em trâmite.

Tal afirmação está escancarada no item 3, que transcreve o Decreto-Lei nº 3.688/1941 (Contravenções Penais). Na verdade, para além de uma preocupação consumerista, o que se quer é localizar possíveis crimes ou contravenções em um mercado multibilionário. O consumidor não é e nunca foi objeto de preocupação alguma:

"Item 3. As plataformas que atuam como patrocinadores oferecem não apenas o serviço de quota-fixa, mas também jogos de azar, de cassinos, bingos e caça-níquel virtual (não autorizados no país — Decreto-Lei nº 3.688/1941)"

Logo, para que não restem dúvidas, a destacada preocupação com os consumidores nada mais é do que um subterfúgio para investigar o setor que movimenta bilhões no mundo e vem crescendo no país, razão pela qual passa a ser alvo claro de alguns órgãos do Estado.

Conforme a própria notificação alerta o setor ainda não é bem compreendido no Brasil (item 12), permanecendo no limbo jurídico por ineficiência do próprio Estado que não regulamenta a atividade.

Mas afinal, o que isso tem a ver com os contratos de publicidade firmados com clubes, federações e televisão?

Não é comum notificar os patrocinados por empresas de cigarro, bebidas ou até mesmo exchanges de criptomoedas (este último, setor que também está pendente de regulamentação).

Do mesmo modo, jamais se apurou a dinâmica de sites pornográficos sediados no exterior, os quais apresentam o mesmo potencial de dependência, em que pese não estejam estampados em camisas de clubes.

Por que o futebol? Por que este ramo?

É fato que toda atividade que gera prazer no ser humano pode, em alguma medida, causar vício. Tal preocupação já foi prevista no artigo 33, da Lei 13.756/18 [5] (assim como no capítulo de publicidade da minuta de decrerto) e, em tese, estaria relacionada diretamente com a atividade do patrocinador com o consumidor, jamais do patrocinado.

Mesmo assim, num grande esforço exegético, a partir da Lei Pelé e o Estatuto do Torcedor, equipararam-se os patrocinados a fornecedores, objetivando responsabilizá-los pelos consumidores que se utilizarem de plataformas esportivas para apostas. É a forma mais fácil de chegar aos contratos, ora. E para alguns órgãos de investigação os contratos serão — tudo indica — a porta de entrada para operações grandiosas.

Na prática, seria o mesmo que vincular clubes e federações a acidentes de trânsito motivados pelo uso de álcool, caso eventualmente fossem patrocinados por empresas do setor de bebidas.

Justamente por isso, em se tratando de publicidade enganosa ou abusiva, a responsabilidade recai sobre quem patrocina a informação (ex vi do artigo 38, do CDC). Aqui, até mesmo corrente minoritária que defende a responsabilidade solidária dos veículos de comunicação reconhece que isto só ocorre por dolo ou culpa. Assim, como é possível reconhecer qualquer uma destas modalidades diante da ausência de regulamentação?

Por isso mesmo, nota-se que preocupação com a correta publicidade atrelada às apostas online é questão a ser solucionada somente através da devida regulamentação do setor já mencionada anteriormente.

De duas, uma: ou o prazo previsto na Lei 13.756/18 será extrapolado (o que, diante do atual cenário político, já era previsto), ou a real preocupação dos Ministérios da Economia e Justiça é exclusivamente a proteção sistema financeiro nacional e todas as implicações eminentemente criminais que já alertamos aqui (reforçando as cautelas sugeridas em artigo anterior — Setor de apostas online no Brasil: a sorte está lançada).

Esta última referência extrapola, a nosso sentir, a competência da Senacon e, ao mesmo tempo, esconde a verdadeira motivação da notificação, já que é bem discutível a responsabilidade dos veículos de publicidade em eventuais ações criminosas dos sites de apostas em detrimento dos consumidores.

Lamentavelmente, e ao tudo indica, o setor permanecerá sem regulamentação, enquanto operadores, investidores e parceiros comerciais — inclusive influencers — poderão (e estão virando) alvos de grandes operações, fruto da própria inércia estatal no tocante às apostas de quota fixa.

É melhor não arriscar.

 


[5] Art. 33. As ações de comunicação, publicidade e marketing da loteria de apostas de quota fixa deverão ser pautadas pelas melhores práticas de responsabilidade social corporativa direcionadas à exploração de loterias, conforme regulamento.

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