Opinião

Ausência de proteção jurídica às famílias simultâneas e a exclusão de direitos

Autores

  • José Miguel Garcia Medina

    é advogado sócio fundador do escritório Medina Guimarães Advogados doutor e mestre em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

  • Mariana Barsaglia Pimentel

    é advogada sócia diretora da área de Direito de Família e Planejamento Patrimonial e Sucessório do escritório Medina Guimarães Advogados doutoranda e mestra em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

24 de setembro de 2022, 17h05

Dentre as áreas do Direito mais sensíveis às mudanças sociais encontra-se o Direito de Família (ou o Direito das Famílias), que deve (ou deveria) acompanhar as transformações que ocorrem no âmbito da realidade vivida para quem as normas são (ou deveriam ser) dirigidas.

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O tema das famílias simultâneas, nesse contexto, tem sido objeto de estudo e de análise pela doutrina e pela jurisprudência, que buscam apreender — juridicamente — fatos que se desenrolam e são vivenciados no âmbito do cotidiano das famílias brasileiras.

Em dissertação de mestrado pioneira sobre o tema (Famílias simultâneas: da unidade codificada à pluralidade constitucional), desenvolvida na Universidade Federal do Paraná no ano de 2003, Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk definiu as famílias simultâneas (ou paralelas) enquanto arranjos familiares que se configuram quando um componente comum mantém vínculo de conjugalidade em múltiplos núcleos familiares.

Do reconhecimento jurídico deste tipo de família decorreriam diversos desdobramentos e consequências, como, por exemplo, o direito à herança e/ou à meação das partes envolvidas em cada um dos núcleos familiares.

Entretanto, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça — tribunais superiores responsáveis pela uniformização da interpretação das normas federais de caráter constitucional e infraconstitucional — têm se posicionado no sentido de que as famílias simultâneas não encontram amparo no ordenamento jurídico brasileiro.

Em dezembro de 2020, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário nº 1.045.273/SE, fixou a seguinte tese de repercussão geral: "A preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalvada a exceção do artigo 1.723, § 1º, do Código Civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro".

Mais recentemente, o Superior Tribunal de Justiça, em notícia publicada em 15 de setembro de 2022, divulgou um julgado, proferido por unanimidade pela 3º Turma (STJ, REsp nº 1.916.031/MG, relatora ministra Nancy Andrighi, 3.ª T., j. 3/5/2022), em que se decidiu que: "é incabível o reconhecimento de união estável simultânea ao casamento, assim como a partilha de bens em três partes iguais (triação), mesmo que o início da união seja anterior ao matrimônio" (disponível aqui).

Nos termos noticiados pelo portal do STJ, o reconhecimento da união estável paralela foi pleiteado por uma mulher que conviveu em união estável com um homem antes que ele se casasse com outra mulher e manteve o mesmo relacionamento por 25 anos (concomitantemente ao casamento e de forma pública).

Ao analisar a celeuma, o STJ posicionou-se no sentido de que a consagração do princípio da monogamia pelo ordenamento jurídico brasileiro impede o reconhecimento do relacionamento paralelo ao casamento como união estável, enquadrando a relação como concubinato. Com isso, para fins de partilha, foi imposto à autora da demanda o ônus de comprovar o esforço comum na aquisição de bens durante o relacionamento (como se houvesse uma sociedade de fato entre as partes), ao passo que tal prova seria dispensada se se reconhecesse a união estável.

A decisão, ao nosso ver, está em descompasso com o viés plural e dinâmico que deveria ter o Direito de Família (ou das Famílias), deixando de apreender a realidade vivida pelas pessoas concretamente consideradas. A ausência de reconhecimento das famílias simultâneas implica na exclusão de direitos — o que não se coaduna com a autonomia relacional assegurada pelo ordenamento jurídico brasileiro (em especial diante da tábua axiológica constitucional).

Além disso, o julgado proferido pelo STJ expressa uma hierarquia entre a família matrimonial e a família decorrente da união estável, atribuindo-se mais valor à primeira. Se for aceita a premissa de que é inviável o reconhecimento de uniões paralelas, não deveria ter prevalecido, no caso concreto analisado pelo Tribunal, os direitos decorrentes da primeira união?

Não é papel do Poder Judiciário indicar quais famílias são (ou não) passíveis de reconhecimento jurídico, devendo ser assegurada a proteção inclusiva de todos os tipos de família de forma igualitária.

Autores

  • é mestre e doutor em Direito pela Ponticífia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), sócio-fundador do Medina Guimarães Advogados, professor titular no curso de direito da Universidade Paranaense (Unipar) e professor associado no curso de Direito da Universidade Estadual de Maringá (UEM).

  • é sócia-diretora de Direito da Família e Planejamento Patrimonial e Sucessório no escritório Medina Guimarães Advogados, doutoranda em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

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