Opinião

Rol da ANS e os contratos de planos de saúde

Autor

23 de setembro de 2022, 18h32

Desde junho deste ano de 2022, no âmbito das discussões jurídicas e na mídia deu-se destaque à discussão há muito travada entre consumidores/ usuários e empresas de planos e seguros de saúde em torno da temática do rol da ANS tanto em processos administrativos quanto judiciais.

Seria o rol taxativo ou exemplificativo? O que isso quer dizer?
Pela Constituição de 1988, foi estabelecido o direito à saúde de forma universal no Brasil, garantido por políticas sociais e econômicas e prestado por um sistema único hierarquizado e integrado por União, estados membros e municípios (artigo 196 e 197 da CF) e também permitiu que assistência à saúde fosse também prestada pela iniciativa privada, mediante contratos privados.

Nestas mais de três décadas de Constituição vigente, a legislação ordinária foi sendo estruturada, tanto para regulamentar o SUS quanto a saúde suplementar.

Até então, nem o SUS e nem o mercado de saúde privado estava regulado efetivamente. Nasce assim — no âmbito do direito público à saúde—  a Lei Orgânica da Saúde (nº 8.080, de 1990), que estabelece uma política de direito sanitário por meio da organização do SUS.

Já nas relações privadas, o Código de Defesa do Consumidor passa a viger em 1990 e a Lei 9.656/97, que regula a assistência privada pelos planos de saúde, entra em vigor em 1998. Já a lei que cria a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), nº 9.961, foi sancionada em 2000.

O escopo desse arcabouço normativo era justamente regular as relações jurídicas até então desprotegidas, cujos beneficiários dos serviços de saúde enfrentavam inúmeras incertezas.

As principais discussões nestas últimas décadas cingiam-se, em torno de vários temas recorrentes e especial: a) formas de reajuste das mensalidades; b) reajustes abusivos; c) descumprimento contratual; d) negativas de autorização de guias médicas relacionadas para internação e exames; e) cláusulas de exclusão de doenças crônicas infectocontagiosas e preexistentes.[1]

Em consequência, a Lei 9.961/2000 cria a ANS como ente responsável por regular — de maneira complementar e específica — o mercado de assistência privada à saúde. O que viria, a priori, a complementar a regulação estatuída pela Lei 9.656/1998, que, nos moldes como foi concebida, não se desincumbiu, por si só, de regular satisfatoriamente o setor.

Além do que foi instituída — por meio da Lei 8.031/1990 — a política estatal de privatização, haja vista o Poder Público não exercer eficaz e adequadamente determinadas atividades.

É por demais evidente que um setor de tamanha importância não pode ter os conflitos solucionados apenas pelas regras de mercado. A prestação privada de serviços de saúde é absolutamente distinta dos outros serviços em especial, pelos aspectos científicos.

Mais especificamente, no caso da Saúde Suplementar, o Poder Público não deixa de exercer a atividade. Apenas dá ensejo à iniciativa privada para que esta atue paralelamente. Entretanto, essa atuação paralela necessita de regulação plena.

Com efeito, tem-se que a regulação — embora mereça destaque por sua intrincada sistemática — ainda tem inúmeros pontos omissos e falhos, que dão azo a demandas judiciais. Se esses pontos forem colmatados e reparados, a quantidade de demandas relacionadas ao mercado de saúde suplementar certamente sofreria drástica redução.

Quando o caso apresentado encontra eco no ordenamento jurídico e na normatização realizada pela ANS que cresce exponencialmente, surge o problema da lei em si. A lei dos planos de saúde não levou em conta na sua regulamentação aspectos técnicos essenciais para eficiência e sustentabilidade do sistema, que vem se reorganizando de forma a se blindar tanto das ações fiscalizatórias e normativas da ANS quanto dos comandos oriundos de decisões judiciais.

Na gênese de sua construção, faltou no debate da lei de regulamentação de saúde suplementar, discutir qual modelo seria possível implementar levando-se em conta os aspectos técnicos fundamentais para a construção de operações com sustentabilidade econômica e com qualidade de atendimento aos usuários.

A comprovação da interferência de entes externos com interesses variados, sobretudo o Poder Executivo, é vista no histórico de tramitação do projeto de Lei 4.425/94 e nas sucessivas medidas provisórias que foram editadas para regulamentar as disposições contidas na lei [2].

Diante disso, é patente a conclusão que faltou técnica quando da elaboração e tramitação do projeto que culminou na Lei dos Planos de Saúde e que muitos dos problemas que são postos diariamente diante dos juízes e tribunais decorrem desse sincretismo de interesses que norteou o processo legislativo.

Com efeito, segundo o artigo 2 da Lei 9.656/98, os planos privados de assistência à Saúde destinam-se ao fornecimento ou prestação de serviços — ou cobertura de custos assistenciais — a preço anterior ou posteriormente avençado, "[…] por prazo indeterminado, com a finalidade de garantir, sem limite financeiro, a assistência à saúde, pela faculdade de acesso e atendimento por profissionais ou serviços de saúde, livremente escolhidos, integrantes ou não de rede credenciada, contratada ou referenciada […]", com a finalidade de assistência médico-hospitalar e odontológica, cujo pagamento integral ou parcial das expensas da operadora contratada dá-se "[…] mediante reembolso ou pagamento direto ao prestador, por conta e ordem do consumidor".[3]

Mencionada lei impõe requisitos aos contratos de assistência privada à Saúde e seguro-saúde; cria mecanismos de regulação relacionados às autorizações prévias, coparticipação, direcionamento, porta de entrada e franquia; fixa os requisitos para acesso de dependentes aos planos familiares; estipula prazos legais de carência contratual, bem como requisitos ligados à portabilidade e vigência contratual; delineia regras relacionadas às doenças e lesões preexistentes; põe fim às discussões acerca do conceito dos institutos urgência e emergência, justo que os conceituou expressamente; e, por derradeiro, determina critérios rígidos no concernente aos reajustes contratuais.

Os contratos de plano de saúde detêm características que os distanciam dos demais contratos, sobretudo em razão do objeto da prestação, que é o Direito Fundamental à Saúde. Ademais, estes instrumentos privados detém em sua gênese, função social relevante. Devem primar por equilíbrio econômico-financeiro, evitando que uma parte angarie ilicitamente benefícios em prejuízo de outrem. "[…] Assim, para evitar que a circulação de riquezas redunde em empobrecimento para uma das partes envoltas, o direito garante a isonomia econômica por meio de normas cogentes".[4]

No ponto específico ANS, o artigo 1.º da lei regente consigna que essa agência é criada no regime de autarquia especial, "[…] vinculada ao Ministério da Saúde, com sede e foro na cidade do Rio de Janeiro, prazo de duração indeterminado e atuação em todo o território nacional, como órgão de regulação, normatização, controle e fiscalização das atividades que garantam a assistência suplementar à saúde". Por conseguinte, "[…] ANS é caracterizada por autonomia administrativa, financeira, patrimonial e de gestão de recursos humanos, autonomia nas suas decisões técnicas e mandato fixo de seus dirigentes".

Para tanto, a lei atribui à ANS, entre outros deveres: propor políticas e diretrizes gerais ao Conselho Nacional de Saúde Suplementar (Consu); estabelecer as características gerais dos instrumentos contratuais utilizados na atividade das operadoras; e dentre outras relevantes funções, elaborar o rol de procedimentos e eventos em saúde, que constituirão referência básica para os fins do disposto na Lei 9.656.

Desse modo, tenha-se sempre presente que a maioria das atribuições da ANS resume-se a dar efetividade às disposições da Lei 9.656, evidenciando-se, assim, o caráter complementar-regulatório dessa agência no mercado de assistência privada à saúde.

Daí a atuação da ANS no sentido de harmonizar os interesses diversos presentes no segmento, ou seja, os desígnios do Estado (interesse público), das operadoras (interesse privado) e, por fim, dos consumidores (interesse coletivo em sentido amplo). Para tanto, deve agir de maneira neutra, apolítica e imparcial, a fim de não privilegiar algum desses interesses em detrimento de outro(s). Paralelamente, deve atuar em parceria com órgãos de proteção ao consumidor, inclusive despendendo esforços no intuito de implantar Política Nacional das Relações de Consumo, eis que só assim se angariará a efetivação dos direitos do consumidor, sobretudo do Direito à Saúde.[5]

Desse descortinamento de normas jurídicas, encontra-se pois a base normativa para a edição de Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde pela ANS.

Assim, vem o rol contendo uma lista de procedimentos, tecnologias e eventos em saúde que determina a incorporação aos contratos dos planos todos aqueles que devem ser autorizados pelos contratos privados de saúde. É por assim dizer, um complemento dos contratos por uma lista editada pela ANS e que passam a integrá-los.

O ponto fundamental da discussão judicial em larga medida, foi: se a operadora não autoriza um procedimento porque não está no rol de coberturas está violando os direitos do consumidor/usuário ou apenas cumprindo o contrato? Durante as últimas duas décadas, dezenas de milhares das ações judiciais foram julgadas em prol da obrigatoriedade de cobertura em tratamentos que, embora não constantes do rol, eram indicados para o tratamento da doença, partindo-se da premissa segundo a qual a cobertura é para a doença e não para o tratamento específico.

Pois bem, em junho último, a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu ser taxativo, em regra, o rol de procedimentos e eventos estabelecido pela ANS, não estando as operadoras de saúde obrigadas a cobrirem tratamentos não previstos na lista. O rol é, portanto, numerus clausus na medida em que o processo de atualização da lista tem fundamentos técnicos e é renovado a cada seis meses. Significa dizer então que a tecnologia, tratamento, medicamento ou exame que não tenha sido aprovado pela ANS não teria amparo nos contratos.

A corte superior de justiça no mencionado julgamento aprovou as seguintes teses:

1. O rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar é, em regra, taxativo. (Atualmente há listados 3.368 tratamentos).
2. A operadora de plano ou seguro de saúde não é obrigada a arcar com tratamento não constante do rol da ANS se existe, para a cura do paciente, outro procedimento eficaz, efetivo e seguro já incorporado ao rol. Logo, a contrário sensu, se ao caso concreto apresentado não tiver nenhum outro tratamento ou substituto, poderá ser postulado/concedido pelo juiz.
3. É possível a contratação de cobertura ampliada ou a negociação de aditivo contratual para a cobertura de procedimento extra rol;
4. Não havendo substituto terapêutico ou esgotados os procedimentos do rol da ANS, pode haver, a título excepcional, a cobertura do tratamento indicado pelo médico ou odontólogo assistente, desde que:
4.1. não tenha sido indeferido expressamente, pela ANS, a incorporação do procedimento ao rol da saúde suplementar;
4.2. haja comprovação da eficácia do tratamento à luz da medicina baseada em evidências;
4.3. haja recomendações de órgãos técnicos de renome nacionais (como Conitec e Natjus) e estrangeiros; e
4.4 seja realizado, quando possível, o diálogo interinstitucional do magistrado com entes ou pessoas com expertise técnica na área da saúde, incluída a Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar. (EREsp 1.886.929 e EREsp 1.889.704) .

Na sessão de julgamento, o ministro Cueva apontou que essa posição não deve ser considerada absoluta. Ele destacou que a atividade administrativa regulatória é sujeita ao controle do Judiciário, a quem compete combater eventuais abusos, arbitrariedades e ilegalidades no setor.

Assim, o rol é taxativo mas diante dos critérios norteados, pode ser ampliado se presentes os requisitos estipulados no julgamento.

Certamente o pano de fundo desse julgamento tem por objeto oferecer, a partir da compreensão do alcance do rol, uma segurança jurídica na relação contratual com uma baliza às decisões judiciais, através de entendimentos técnicos. Por consequência deve o magistrado, ao decidir se defere o pedido do beneficiário contra a operadora de plano de saúde, levar em conta esses critérios. Merece destaque a credibilidade reconhecida do Conitec (vinculado ao Ministério da Saúde e do Natjus (vinculado ao CNJ). As notas técnicas dos órgãos passam a ser razão de decidir e não apenas a indicação do médico assistente de modo geral.

De todo modo, num equilíbrio ideal entre os poderes, esses critérios precisam ser considerados num novo marco regulatório dos planos de saúde. A lei, como já se afirmou é defasada e dotada de várias atecnias, e muito controvertida ainda anos após a sua vigência.

Tanto isso é certo, que o plenário do Senado (após aprovação na Câmara de Deputados) aprovou projeto de lei que obriga planos de saúde a cobrir tratamentos não previstos pela ANS. A principal justificativa da aprovação rápida do texto se deve a intenção do legislador, externalizada pelo relator, de dar uma resposta legislativa à interpretação judicial, em face da decisão do STJ de reconhecer a taxatividade do rol.

Sancionada em 21/9/2022 a Lei nº 14.454 vem assim, para alterar a Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998, que dispõe sobre os planos privados de assistência à saúde, para estabelecer hipóteses de cobertura de exames ou tratamentos de saúde que não estão incluídos no rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar. Ou seja, vale o rol e também o que for prescrito pelo médico para tratamento eficaz da doença, desde que comprovada a sua eficácia.

Novamente, a discussão não foi amadurecida, e define apenas mais uma etapa do debate sobre as questões de o rol ser ou não parâmetro de autorização dos procedimentos médicos e odontológicos.

A questão é muito mais complexa, pois os atores integrantes dessa intrincada relação composta por operadoras de plano de saúde, prestadores de serviços de saúde, profissionais da saúde pública e privada e o indivíduo a quem a Constituição brasileira destina o direito individual à saúde — nem sempre têm interesses convergentes.

Não é dado aos juristas e legisladores, ignorar que a saúde no Brasil comporta um mercado altamente lucrativo e que pode incluir toda sorte de interesses. Também não se pode olvidar que os contratos privados precisam oferecer segurança jurídica aos seus contratantes e contratados. Ao revés, o que no Brasil de hoje se revela é o movimento pendular permanente e deletério que, por força da desconfiança recíproca entre os lados opostos de uma intrincada relação jurídica. A lei não consegue conferir entendimento claro, a partir de dados apriorísticos que levem a uma racionalidade do sistema público e privado.

Partindo-se da premissa que é impossível dissociar a saúde do desenvolvimento econômico, com a necessária conjugação de fatores tais como o envelhecimento da população, as demandas por saúde que se estabelecem no período pós pandemia, a queda de cobertura vacinal e a premente otimização dos recursos na relação público/privada, uma proposta de legislação precisa ter, ao menos em um de seus vértices, a necessária implementação de uma política nacional de saúde que conjugue os dois subsistemas — SUS e saúde suplementar — de forma integrada, coerente e otimizada tanto em recursos quanto em gestão.

É urgente que a sociedade brasileira exija dos novos legisladores e governantes uma norma que atenda o dilema atual de nosso sistema normativo: "o abismo entre a lei e realidade [6]".

_________

Notas:
[1] GREGORI, Maria Stella. Planos de Saúde: A ótica da proteção do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais. p. 32.

[2]"Em 04 de junho de 1998, o governo colocou em vigor a Medida Provisória 1.665, publicada em 5 de junho, que continha as mudanças elaboradas pelo Executivo e que teoricamente contemplariam os interesses dos múltiplos setores de mercado de saúde suplementar. Essa medida provisória foi sucedida por 44 outras, sendo a última a MP 2.177-44, de 24 de agosto de 2001. A Emenda Constitucional nº 32, de 11 de setembro de 2001, alterou a sistemática da edição de medidas provisórias no Brasil e, em razão disso, até que o Congresso retome o assunto essa medida provisória será considerada válida como a lei que regula o setor de saúde suplementar no país. […] A MP em vigor causa insatisfação em todos os segmentos: consumidores, operadoras de saúde, entidades médicas, prestadores de serviço. A sensação que une os diferentes setores é de que todos perderam, embora uns sempre apontem outros como ganhadores”. In: CARLINI, Angélica. Judicialização da Saúde: pública e privada. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014. p. 67.

[3] BRASIL. Código de Defesa do Consumidor, de 11 de setembro de 1990. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078.htm.

[4] FIGUEIREDO, Leonardo Vizeu. Curso de Direito de Saúde Suplementar: Manual Jurídico de Planos e Seguros de Saúde. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 155.

[5] FIGUEIREDO, Leonardo Vizeu. Curso de Direito de Saúde Suplementar: Manual Jurídico de Planos e Seguros de Saúde. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 160-161.

[6] RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como decidem as cortes? Para uma crítica do Direito (brasileiro). Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013. p. 14.

Autores

  • é conselheira Nacional do Ministério Público, advogada, conselheira Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (Santa Catarina) e professora Doutora da Universidade Federal da Blumenau (Furb).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!