Opinião

Revisão da Lei 9.784/99: processo administrativo, tradição e imaginação

Autor

  • Demian Guedes

    é advogado doutor em Direito Público pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) visiting scholar no Max Planck Institute for Public Law e autor dos livros Autoritarismo e Estado no Brasil (2016) e Processo Administrativo e Democracia (2007).

23 de setembro de 2022, 14h02

Por iniciativa do Senado, está em andamento a revisão da Lei 9.784/1999, que, ao longo das últimas duas décadas, regulou o processo administrativo federal no país. Uma comissão de juristas avalia o tema, que em sequência será tratado pelo Congresso. A iniciativa merece atenção, pois a inegável aridez do tema não deve esconder sua relevância: são nesses processos que autoridades interditam fábricas, concedem licenças, punem empresas, combatem a corrupção e, até mesmo, aplicam multas de trânsito. Em suma, é por meio dessa legislação que o Estado interdita, autoriza, castiga e perdoa.

A revisão dessa legislação é bem-vinda e será tão proveitosa quanto ciente estivermos da realidade ao redor, que passa por reconhecer o autoritarismo como elemento fundacional das relações Estado-cidadão no país. Uma tradição forjada em universidades pré-iluministas, parteiras de um poder estatal escravocrata e imperial, voltado à colonização de sociedades e economias. Aperfeiçoada por "homens de Estado", por dever de ofício mais comprometidos com a autoridade do que com a liberdade. Tudo em um ambiente muitas vezes militarizado e, sempre brutalmente desigual, onde relações de mando e obediência esvaziavam a cidadania.

Apesar da participação social na constituinte, a Carta de 1988 tem fracassado na democratização efetiva do Estado brasileiro. Testemunhamos ainda processos decisórios estatais marcados por traços anticonstitucionais como sigilos seculares e presunções de veracidade que acarretam ônus probatórios diabólicos aos particulares. Processos que consagram votos de minerva. Estruturas estatais que acumulam atividades de acusação e decisão sobre a mesma autoridade, como ferramenta de autolegitimação. E que fazem do tempo um poder, manipulando procedimentos eternos, que castigam por existir.

Nessas prerrogativas injustificáveis, ecoam a infância difícil do nosso direito administrativo, onde a paridade de armas entre cidadão e Estado não passa de miragem. Reconhecer esse passado-presente restituirá nossa capacidade de pensar outro processo administrativo, que seja fruto de uma imaginação realista, mas corajosa, descomprometida com a repetição. Só assim evitaremos a armadilha de um direito administrativo da eternidade: será assim porque sempre foi. Para isso, precisamos trazer para o debate temas como transparência mandatória; ônus da prova estatal; acesso às autoridades julgadoras; segregação de atividades de acusação e julgamento; e duração razoável dos processos, com o tratamento de suas consequências.

É fundamental dar tratamento legislativo a esses temas, sem omissões ou delegações sujeitas à discricionariedade. O texto emanado do Congresso tem papel decisivo na democratização do Estado, ainda que mudanças culturais dependam de mais do que leis. Afinal, não se pode revogar a doutrina ou a tradição. Quando avançam, as instituições caminham em ritmo lento, milimétrico. A democracia é um trabalho diário e coletivo. Se a nova legislação colaborar para a abertura dos processos decisórios estatais, já será bom o bastante. E nem faria sentido esperarmos mais do isso: a história ensina que, por aqui, a democracia só dá saltos para trás.

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