Opinião

Novos contornos da omissão no dever de prestar contas na nova Lei de Improbidade

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21 de setembro de 2022, 17h17

O inciso VI do artigo 11 da Lei de Improbidade Administrativa (LIA), com a redação dada pela Lei nº 14.230, de 2021, passou a dispor que constitui ato de improbidade administrativa deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo, desde que disponha das condições para isso, com vistas a ocultar irregularidades. 

A despeito da continuidade normativo típica, o texto inaugurado pela Lei nº 14.230/2021, diferente da redação anterior, veio contemplado com um elemento normativo ("desde que disponha das condições para isso") e um elemento subjetivo específico ("com vistas a ocultar irregularidades").

Essas mudanças operadas na LIA passaram a demandar um novo olhar do texto normativo, à luz de uma interpretação progressiva, numa investigação que deve partir do bem jurídico tutelado pelo tipo específico, com o objetivo de definir o sentido e alcance da disposição contida no novo texto, atrelado a uma linguagem competente, sob pena de alto grau de risco de desvirtuamento de sentidos [1].

Como se sabe, o bem jurídico tutelado pelo inciso VI do artigo 11 da LIA é a regular gestão dos recursos públicos, forma específica de tutela do patrimônio público, encontrando fundamento constitucional no parágrafo único do art. 70 da CRFB/88, do qual se extrai a norma jurídica do indisponível dever de prestar contas de quem utiliza, arrecada, guarda, gerencia ou administra dinheiros, bens e valores públicos.

O artigo 70 é fundamento constitucional de sistema de responsabilização autônomo e geral de agentes públicos no direito brasileiro, por ilicitudes qualificadas como irregularidades formais e/ou materiais, concernentes a contas prestadas perante os Tribunais de Contas. Com nítido caráter republicano, o direito do cidadão de pedir contas aos governantes e agentes públicos remonta ao artigo 15 na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789). A contraface dele, em nossa ordenação constitucional atual, é o dever de prestar contas, tal como insculpido no artigo 70 da CRFB/1988.

Omissão no cumprimento do dever é certo tratar-se de controle formal, estatal, com espaço, ainda, para discussão se poderia abranger os deveres de transparência ativa ou solicitações com base na Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011), visto não se excetuarem do dever de prestar contas à sociedade das decisões no manejo de recursos públicos.

Aqui, cuidemos da rota de alcance desse dever de prestar contas quando da análise do caso sujeito à apuração [2] no âmbito do controle formal.

Não se excetua do dever de prestar contas o encaminhamento da documentação necessária ao exercício das competências conferidas aos Tribunais de Contas, ordinariamente, conforme normatizado, ou em suas auditorias, inspeções e demais procedimentos de fiscalização, de modo que o descumprimento às requisições de documentos caracteriza infração sujeita à irregularidade de contas, à guisa do artigo 16, III "a" da Lei Orgânica do TCU  "omissão no dever de prestar contas", tendo em vista a obrigação formal de envio de processo, documentos e informações, imposta aos que manejam recursos públicos. A omissão é enquadrada como ilícito no sistema de responsabilização institucionalizado perante os TCs.

Alicerçado no bem jurídico tutelado e no texto normativo originariamente descrito no inciso VI do artigo 11 da LIA, o STJ extraía norma jurídica no sentido de limitar o sentido e alcance do tipo às prestações de contas, até porque o texto que serviu de base para a formação do entendimento jurisprudencial trazia como tipo objetivo "deixar de prestar contas quando esteja obrigado a fazê-lo" [3].

Com o advento das novas tecnologias, contudo, impõe-se uma interpretação progressiva do parágrafo único do artigo 70 da CRFB/88 [4], dado que, atualmente, o ato de prestar contas não se restringe à "demonstração e apresentação de papéis ou documentos fiscais e recibos formalmente preenchidos com os elementos informativos necessários à sua validade e reconhecimento", na tradicional definição trazida por Aluizio Bezerra Filho [5].

Retomando o atual texto do inciso VI do artigo 11 da LIA, relevante anotar, quanto ao elemento normativo  "desde que disponha de condições para isso", que a sua presença se presta a afastar o enquadramento da conduta omissiva no sistema de responsabilização por atos de improbidade administrativa, quando não houver justa causa para a omissão, tendo buscado o legislador conferir aderência ao vetor de interpretação de que trata o artigo 22 da LINDB: obstáculos e dificuldades reais do gestor.

Com a mudança operada pela Lei nº 14.230, de 2021, para além do elemento subjetivo especial do injusto previsto no artigo 1º, §2º e 11, §1º e 2º da LIA, o inciso VI do artigo 11 passou a demandar o especial fim de agir de ocultar irregularidades, tipo de intenção, não sendo, necessário, contudo, que as irregularidades venham a ser constatadas por meio de processos próprios.

Essa inovação legislativa ampliou o campo de incidência normativa do tipo, passando a agasalhar condutas omissivas materializadas no descumprimento de diligências expedidas pelos Tribunais de Contas, em processos de representação, auditorias, atos de admissão de pessoal, a título de exemplos, por via das quais tenha o Tribunal de Contas requisitado documentos essenciais à instrução de processos, ou a sonegação de processo, documento ou informação, no curso de auditorias realizadas pelo Tribunal, infrações sujeitas à sanção no sistema de responsabilização no âmbito do Controle Externo (cf. artigo 58, IV e VI da Lei nº 8.443, de 1992, no âmbito do TCU), e, com a Lei nº 14.230, também podem erigir-se em atos de improbidade administrativa.

Ocorre que, no filtro como improbidade, não se trata de mero atraso no encaminhamento de dados e informações de remessa obrigatória aos Tribunais de Contas, dada a exigência de demonstração de lesividade relevante ao bem jurídico tutelado, qual seja, o dever de prestar contas contemplado no parágrafo único do artigo 70 da CRFB/88, conforme literalidade do §4º do artigo 11 da LIA.

A subsunção fático-normativa ao inciso VI do artigo 11 da LIA demanda a previsão constitucional, legal ou infralegal quanto à obrigação formal de envio de documentos ou informações, até porque a elementar "quando esteja obrigado a fazê-lo" pressupõe essa prévia disposição normativa, na dicção do §3º do artigo 11 da LIA. 

Isso posto, com a mudança no parâmetro normativo, vislumbra-se, por via de consequência, necessária mudança da jurisprudência dos Tribunais Superiores quanto ao sentido e alcance do núcleo do tipo "deixar de prestar contas", que não se restringe mais às prestações de contas (ordinárias ou extraordinárias), de que tratam os incisos I e II do artigo 71 da CRFB/88, dada as múltiplas competências constitucionais atreladas ao Controle Externo exercido pelos Tribunais de Contas, voltadas à defesa da probidade na gestão da res publica (licitações, contratos, atos de pessoal, etc).

A ampliação material da conduta ilícita descrita no tipo é outra demonstração dos equívocos cometidos na reforma da Lei de Improbidade Administrativa, com a pretensão de taxatividade dos incisos do artigo 11, o que colide com forma de tipificação que aumenta o rol de condutas ilícitas passíveis de subsunção na LIA.  Revela, decididamente, que entre a vontade do legislador e a declaração jurídica positiva há uma distância considerável na formulação e apreensão do significado, o que deve ser considerado no processo de aplicação dos novos dispositivos da lei de reforma.


[1] "Partindo da premissa de que sistema do direito é um corpo de linguagem, a relação jurídica surge apenas com a formação de um enunciado linguístico produzido no código próprio do sistema". (CARVALHO, Aurora Tomazini de. Curso de teoria geral do direito: o constructivismo lógico-semântico. 6. ed. rev. e atual.  São Paulo: Noeses, 2019, p. 642)

[2] Acórdão 2845/2019 TCU  Primeira Câmara (Tomada de Contas Especial, Relator Ministro-Substituto Marcos Bemquerer) Responsabilidade. Projeto de pesquisa. Omissão no dever de prestar contas. Nexo de causalidade. CNPq. Nos projetos financiados com recursos do CNPq, o coordenador do projeto deve comprovar o bom e correto emprego das verbas públicas que gere, oferecendo elementos capazes de evidenciar o cumprimento do plano previamente estabelecido e o vínculo existente entre as despesas efetuadas e o objeto pactuado, respondendo, inclusive, pela prestação de contas dos recursos repassados a título de custeio e de bolsas vinculadas à execução do projeto, ainda que depositados diretamente nas contas correntes pessoais de bolsistas.

Acórdão TCU 1.217/2019 Plenário (Tomada de Contas Especial, revisor ministro Walton Alencar Rodrigues) Responsabilidade. Prestação de contas. Mora. Intempestividade. Justificativa. Omissão no dever de prestar contas. A apresentação extemporânea da prestação de contas, sem atenuantes que justifiquem o atraso, porém com elementos que comprovem a boa e regular aplicação dos recursos, permite a exclusão do débito, mas não elide a omissão inicial, cabendo o julgamento pela irregularidade das contas com aplicação de multa.

[3] STJ  AgInt no REsp 1474377/MS, relator ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, julgado em 08/02/2018, DJe 22/02/2028.

[4] "A margem de discricionariedade jurisprudencial, sua função criadora normativa  até com validade erga omnes  depende do ramo do direito e do sistema do direito positivo, que é uma totalidade individualizada, presa a um espaço histórico, como a árvore finca suas raízes no espaço físico. E depende também da morfologia política da época". (VILANOVA, Lourival. O Poder de Julgar e a Norma. In Escritos Jurídicos e Filosóficos. São Paulo: Axis Mundi: IBET. 2003. P. 365)

[5] BEZERRA FILHO, Aluizio. Processo de improbidade administrativa: anotado e comentado. 4. ed. rev., atual. e ampl. Salvador: Editora JusPodivm. 2022. p. 360.

Autores

  • é auditor de controle externo, advogado, professor e diretor jurídico da Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil.

  • é doutor e mestre em Direito do Estado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), professor de Direito Administrativo da PUC/SP e procurador Regional da República na Terceira Região.

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