Tribuna da Defensoria

Saúde mental ontem e hoje: reforma psiquiátrica, luta antirracista e feminismos

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20 de setembro de 2022, 8h00

A saúde mental no Brasil sofreu reforma significativa a partir da década de 70, influenciada pela experiência italiana e impulsionada pela visita de Franco Basaglia ao país. Basaglia, psiquiatra precursor do movimento antimanicomial no mundo, visitou o Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais, e o classificou como um campo de concentração. Na época, devido ao corajoso trabalho fotojornalístico de Luiz Alfredo, foi exposta a situação desumana e degradante na qual os internos do Hospital Colônia viviam [1].

Representação fiel dos parâmetros da saúde mental vigentes no país, o Colônia segregou crianças, mulheres e homens taxados como "loucos" pela sociedade. Sem qualquer assistência médica, os corpos docilizados pela intensa medicação ficavam à espera da morte. A função dessa instituição total, conceito formulado por Erving Goffman, era de ser um depósito de pessoas rejeitadas, até pelas próprias famílias em certos casos. Não havia projeto terapêutico, tampouco atendimento multidisciplinar. No caso específico do Hospital Colônia, que chegou a ser o maior manicômio do Brasil, o "trem de doido" cruzava o país recolhendo indesejados e levando para Barbacena.

Variados grupos eram rotulados como descartáveis, entre eles: mulheres grávidas dos patrões, outras descartadas por seus maridos, além de pessoas introvertidas ou tímidas, que eram arrancadas de suas famílias para "tratamento". Mulheres negras e pobres, em maioria, eram "diagnosticadas" como "loucas" e depositadas no Hospital Colônia, sendo medicalizadas e domadas por não se adequarem aos padrões da sociedade vigente. Hoje, estima-se que 70% das pessoas que foram segregadas em Barbacena não tinham qualquer diagnóstico de transtorno mental. O hospital utilizava métodos desumanos até 1980, e 60 mil pessoas morreram em suas dependências, o que ficou marcado na história do país como o Holocausto brasileiro [2].

Os ventos democráticos de 1988 sopram também a efetiva mudança na concepção de saúde mental no país. Com o advento da Constituição cidadã, a saúde foi trazida, de fato, como um direito de todos. No entanto, somente em 2001, como resultado da luta antimanicomial, foi editada a Lei nº 10.216/2001, a Lei da Reforma Psiquiátrica. Tal norma, posteriormente reforçada com a internalização, com status de emenda constitucional, da Convenção Internacional de Direitos das Pessoas com Deficiência, promoveu uma releitura da temática da saúde mental.

O ordenamento anterior vigente, a partir de uma visão hospitalocêntrica, rotulava as pessoas com transtornos mentais como loucas, anormais, o que ensejava um tratamento incapacitante. Ocorria uma verdadeira "mortificação do eu", segundo Goffman, em que as subjetividades eram desconsideradas. Todo o sistema manicomial servia ao controle desses corpos. Ao romper com esse paradigma, a luta antimanicomial buscou um resgate à humanização, em que se valoriza a autonomia e as subjetividades dos indivíduos.

Com isso, alterou-se a forma como são enxergadas as pessoas que se encontram em sofrimento mental, mas também a forma pela qual a sociedade deve responder a essas demandas, com a superação das barreiras impostas pelo próprio meio social. A luta antimanicomial reforça que as pessoas em sofrimento mental são protagonistas dos próprios processos de mudança, verdadeiros sujeitos de direitos, abandonando-se a lógica de seres enquanto meros objetos do tratamento.

Como diretriz explícita, a Lei da Reforma Psiquiátrica trouxe a internação como medida excepcional, utilizada apenas quando os meios extra-hospitalares forem insuficientes. Surgem programas específicos, centros de apoio e atendimento prioritário ambulatorial na tentativa de fechar leitos de internação ainda existentes. Medidas alternativas foram criadas com a finalidade de efetivar a desinternalização, combater a exclusão do sofrimento mental, bem como garantir atendimento de qualidade em uma lógica de reabilitação e reinserção social.

Nesse sentido, nos ditames da luta antimanicomial, o atendimento às pessoas em sofrimento mental deve ser realizado junto à comunidade. No entanto, apesar da vedação de internação em instituições com características asilares, ainda é comum a segregação em tais lugares. Isso, porque a ideia da internação compulsória ou involuntária se mantém sólida como sendo, no imaginário da sociedade e na atuação do Judiciário, a regra. A Rede de Atenção Psicossocial (Raps), instituída pela Portaria nº 3.088 do Ministério da Saúde, é deixada de lado, sendo uma exceção. Ainda assim, embora haja relutância, é certo que um novo modelo se desenvolveu acarretando um viés contemporâneo à luta antimanicomial.

Destarte, toda mudança de paradigma demanda outro em sua substituição. A Lei 10.216/01, ainda que revolucionária em alguns aspectos, continua reproduzindo uma lógica de opressão de gênero, raça e classe. Por isso, há a necessidade de um olhar crítico e interseccional sobre a luta antimanicomial, os reflexos da reforma psiquiátrica e as permanências do paradigma hospitalocêntrico.

Em primeiro lugar, é importante observar que, diferentemente da discussão italiana, os debates referentes à reforma psiquiátrica brasileira não abordaram a questão de gênero. Um grande sinal disso é que importantes trabalhos italianos sobre a temática nem ao menos foram traduzidos para o português. Nessa perspectiva, é possível afirmar que, no processo de construção da Reforma e na Luta antimanicomial, a relação das mulheres com a saúde mental foi subalternizada e invisibilizada [3].

Por isso, há a necessidade de um olhar interseccional, a partir dos elementos gênero, raça e classe. Articulações entre estudos feministas, antirracistas e construções teóricas da reforma psiquiátrica são relativamente recentes no país e importantíssimos para identificar marcadores de opressão nos temas relacionados à saúde mental. Sob uma epistemologia decolonial, Thula Pires afirma que "falar em pretuguês é assumir uma postura de confronto ao racismo epistêmico e de crítica frente às múltiplas formas de manifestação de colonialidade do saber" [4]. Essa lente nos possibilita identificar fenômenos diretamente relacionados às mulheres negras, tais como a convocação do trabalho feminino de cuidado, além de similitudes com a mão de obra na construção dos manicômios psiquiátricos e na atenção aos pacientes hospitalizados, conforme Passos e Pereira [5].

Em segundo lugar, o olhar interseccional também é necessário, sobretudo quando o campo prático aponta quem são as pessoas institucionalizadas. A partir da vivência enquanto defensora pública e acadêmica, a pesquisadora Patrícia Carlos Magno, apresenta dados que apontam quem são os sujeitos manicomializados no estado [6]. Em pesquisa elaborada conforme dados do acervo da 20ª DP do Núcleo do Sistema Penitenciário da Defensoria Pública do Rio de Janeiro (Nuspen), consultado em 15/4/2019, conclui-se que 83% das mulheres internadas são negras (pretas e pardas), 53% não concluíram o ensino fundamental e 53% das mulheres encontram-se cumprindo medida de segurança.

Compulsando esses dados, é possível afirmar que a institucionalização é uma experiência subjetiva vivenciada majoritariamente por mulheres negras, sendo um retrato da desigualdade de gênero e raça, a qual produz uma lógica de controle e opressão sobre corpos femininos, pretos e pobres. Opera-se de modo magistral o racismo que é institucional e estrutural, conforme afirma Silvio Almeida [7]. Por isso, não é possível fazer uma análise das pessoas institucionalizadas sem abordar a interseccionalidade dos conceitos de raça, gênero e classe social, pois só assim se demonstra o quanto mulheres negras e pobres são cooptadas pelo sistema de justiça, fazendo dos manicômios judiciais verdadeiros depósitos das mulheres loucas, as bruxas de hoje.

Importante brevemente resgatar a ideia da bruxa e a perseguição sofrida na Inquisição. O Malleus Malleficarum, o Martelo das Feiticeiras, conhecido como a bíblia dos inquisidores, foi escrito para explicar os poderes dos demônios e das bruxas, tendo orientado séculos de perseguição às mulheres. O livro insistia que as mulheres eram mais propensas ao pacto diabólico, o que contribuiu para tornar a bruxaria um delito predominantemente feminino. De acordo com Silvia Federici, várias pesquisadoras mostraram como "a caça às bruxas serviu para privar as mulheres de suas práticas médicas, forçou-as a se submeterem ao controle patriarcal da família nuclear e destruiu um conceito holístico de natureza que, até a Renascença, impunha limites à exploração do corpo feminino" [8].

Como permanência do discurso inquisitorial de caça às bruxas, temos a desumanização de indivíduos indesejados pela criação de um discurso de alteridade — do outro, o herege, a bruxa, os subversivos. Hoje, tal visão se reproduz a partir do rótulo da louca, que são as mesmas mulheres indesejáveis do passado, as mais vulneráveis a terem seus corpos docilizados. Isso tudo nos leva a concluir o quanto a luta antimanicomial, deve ser, sobretudo, uma luta antirracista e feminista.

Atualmente, mulheres, pobres e negras ainda são alvo de internações e medicalizações [9]. Um fator contemporâneo de grande preocupação é o financiamento público e a formalização de serviços asilares como parte da Raps [10]. A internação involuntária de mulheres negras em Comunidades Terapêuticas (CTs), em pleno século XXI, remonta ao histórico de descarte e segregação dos anos anteriores à luta antimanicomial. Tais instituições de internação possuem viés religioso, comumente fundamentalista, e vão de encontro ao estabelecido na Lei da Reforma Psiquiátrica. Isso, porque o objetivo é a "cura" compulsória, o que, com a transposição do modelo médico para o da inclusão social das pessoas com deficiência e sofrimento mental, não é mais possível. Assim, é importante frisar que as CTs não se coadunam com a lógica de atenção psicossocial, pois aduzem ao paradigma médico e segregatório, anterior à Lei de Inclusão Brasileira e à Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiência de Nova York.

Além disso, vale fazer um breve parêntesis para apontar uma grande conquista da Defensoria Pública quanto ao tema das CTs. Em ação civil pública ajuíza pela da DPU, DPEPE, DPESP, DPEPR, DPERJ e DPEMT, a Resolução 3, do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad), que permitia o acolhimento de crianças e adolescentes em CTs, foi declarada ilegal [11]. Reconheceu-se uma violação sistemática de direitos, bem como a baixa capacidade operacional do governo federal em fiscalizar as CTs financiadas, havendo fragilidades nas estratégias de planejamento das inspeções in loco. Tal decisão configura um avanço em matéria infanto-juvenil, bem como pode ser um ponto de partida para revisão de todo sistema de patrocínio às CTs [12].

Em que pese a paulatina evolução do tema, a lógica da doença mental enquanto fator incapacitante ainda legitima a internação, a medicalização e docilização de corpos negros, ou seja, o controle tal como na Inquisição. Mesmo após a reforma psiquiátrica e a desospitalização, as mulheres ainda sofrem com o estigma da loucura, sendo rotuladas em prisões ou nas CTs, que, tal como os manicômios, são instituições totais, demonstrando assim que o machismo, racismo e classicismo perduram. Desse modo, não obstante a instituição de leis e normas voltadas para uma nova perspectiva da saúde mental no Brasil, ainda há sérios problemas a serem solucionados.

Isso, porque algumas instituições, principalmente, no âmbito do Judiciário, ainda resistem à aplicação das normas de caráter diverso à instucionalização. Nesse caso, a promoção de uma educação social e em direitos mostrar-se-ia eficaz contra posicionamentos retrógrados e prejudiciais ao usuário da rede psicossocial. Daí, observa-se a importância de a Defensoria Pública, enquanto espaço de resistência, romper com a práxis e a lógica posta, assumindo uma postura decolonial ao desconstruir a ideia de que a pessoa com sofrimento mental assim o será permanentemente, como se incapaz fosse.

É preciso, como diz Patrícia Carlos Magno, exercer a arte da escutatória, para que defensoras, defensores e corpo de atuação da Defensoria sejam megafones para representar as reais demandas das usuárias do serviço público, visando buscar os direitos que mais promoverão a autonomia dessas mulheres internadas. E, repita-se: a verdadeira luta antimanicomial deve ser antirracista e feminista. É preciso retirar as amarras das mulheres negras manicomializadas de uma vez por todas. É preciso calar o saber jurídico para ouvir e lutar pela efetivação da autonomia e dos direitos das mulheres institucionalizadas.

 


Referências

[1] Para ver as fotos, acesse: https://testemunhaocular.ims.com.br/2022/05/21/luis-alfredo/

[2] ARBEX, D. Holocausto Brasileiro 1ª ed. São Paulo: Geração Editorial, 2013.

[3] PASSOS, Rachel Gouveia; PEREIRA, Melissa de Oliveira. LUTA ANTIMANICOMIAL, FEMINISMOS E INTERSECCIONALIDADES: notas para o debate. In: Luta Antimanicomial e Feminismos: discussões de gênero, raça e classe, Rio de Janeiro: Editora Autografia (selo Francisca Julia), 2017.

[4] PIRES, T. R. DE O. Criminologia Crítica e pacto narcísico: por uma crítica criminológica apreensível em pretuguês. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 135, n. 25, p. 541– 562, 2017.

[5] PASSOS, Rachel Gouveia; PEREIRA, Melissa de Oliveira. LUTA ANTIMANICOMIAL, FEMINISMOS E INTERSECCIONALIDADES: notas para o debate. In: Luta Antimanicomial e Feminismos: discussões de gênero, raça e classe, Rio de Janeiro: Editora Autografia (selo Francisca Julia), 2017.

[6] MAGNO, Patrícia Carlos. Loucas e Presas: um estudo sobre o não-espaço das mulheres manicomializadas no estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, p. 1-31, 2020.

[7] ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural, São Paulo (SP): Feminismos Plurais, 2019;

[8] FEDERICI, S. Mulheres e caça às bruxas, p. 48. 1ª edição. Boitempo, 2019. Ebook.

[9] MAGNO, P. "Sujeitas-Haldol": um estudo sobre o uso da camisa de força química como docilização de corpos no cárcere. In: Luta Antimanicomial e Feminismos: inquietações e resistências. Rio de Janeiro: Editora Autografia (selo Francisca Julia), 2019.

[10] PASSOS, Rachel Gouveia; PEREIRA, Melissa de Oliveira. Desafios Contemporâneos na Luta Antimanicomial: comunidades terapêuticas, gênero e sexualidade. In: Luta Antimanicomial e Feminismos: discussões de gênero, raça e classe, Rio de Janeiro: Editora Autografia (selo Francisca Julia), 2017.

[11] https://www.conjur.com.br/2022-set-10/justica-proibe-acolhimento-jovens-comunidades-terapeuticas

[12] Vale apontar que o art. 23-A, §9º, da Lei de Drogas, veda, como forma de tratamento ao usuário, a realização de qualquer modalidade de internação em CTs também para adultos.

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