Opinião

O Ministério Público ganha, mas as vítimas não levam

Autores

  • Hermes Zaneti Jr.

    é professor de Direito Processual Civil e Teoria do Processo na Universidade Federal do Espírito Santo líder do Grupo de Pesquisa Fundamentos do Processo Civil Contemporâneo grupo fundador da ProcNet — Rede Internacional de Pesquisa Justiça Civil e Processo Contemporâneo.

  • Maria Carolina Silveira Beraldo

    é promotora de Justiça no estado de Minas Gerais mestre e doutora em Processo Civil (USP) coordenadora do Caocivel/MP-MG e professora universitária da UEMG.

  • Davi Reis S. B. Pirajá

    é promotor de Justiça no estado de Minas Gerais ex-assessor do ministro Celso de Mello no STF graduado pela UnB pós-graduado pela FESMPDFT e mestrando pela Universidade de Girona (Espanha).

20 de setembro de 2022, 6h03

O julgamento dos embargos de declaração opostos no REsp 1.758.708/MS, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, está pautado para esta quarta-feira (21/9). Na oportunidade, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça poderá revisar e estabelecer balizas à decisão proferida no julgamento do recurso especial, que concluiu pela ausência de legitimidade do Ministério Público para promover a liquidação ou a execução coletiva de sentença que versa sobre direitos individuais homogêneos em prol de vítimas (ou sucessores) do ato lesivo.

O MP tem legitimação para tutelar direitos individuais homogêneos disponíveis sempre que apresentem relevância social. Essa é a orientação consolidada do Supremo Tribunal Federal. O STF decidiu, em reiteradas oportunidades, pela defesa das pessoas mais vulneráveis da sociedade. O fato de os direitos serem disponíveis não afasta o interesse público na tutela. A relevância social fica clara em casos relacionados a DPVat, loteamentos irregulares, Sistema Financeiro de Habitação e mensalidades escolares, entre outros (RE 631.111/GO).

A restrição da legitimidade do Ministério Público tal qual definida na decisão que será examinada pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça causa preocupação e vai no sentido contrário do que vinha decidindo o Supremo Tribunal Federal. Isso ocorre em razão de seus efeitos práticos e em virtude dos aspectos jurídicos atinentes às funções do processo coletivo e ao desenho constitucional das atribuições do Ministério Público, como instituição garantia de direitos fundamentais.

O espectro de abrangência da decisão atinge diversos direitos fundamentais. Sob o prisma dos efeitos do julgado, registra-se que as violações a direitos individuais homogêneos não se restringem a danos oriundos de contratos de consumo, tal como verificado na causa que deu origem ao recurso especial, havendo casos de altíssima relevância social referentes a indenizações de vítimas que compõem grupo homogêneo de pessoas.

No ponto, são elucidativos os processos envolvendo os desastres socioambientais de Mariana (MG) — desastre do rio Doce — e Brumadinho (MG), em que a atuação do Ministério Público na promoção da liquidação e execução coletiva em prol das vítimas diretas do evento danoso se revelou a única possível, sem o que as decisões condenatórias estiolar-se-iam a ponto de se findarem como se nadas jurídicos fossem.

A supressão da legitimidade do Ministério Público, nos termos em que definida pelo REsp 1.758.708/MS, poderá acarretar a extinção desses processos sem resolução de mérito por ilegitimidade ativa. É o que ocorreu, por exemplo, na comarca de Mariana, em que o juízo da 2ª Vara, aplicando o recente entendimento do STJ, julgou extinta a execução, com base no artigo 485, VI, do CPC, em sentença posteriormente impugnada pelo MP-MG. Após cerca de sete anos do desastre originado do rompimento da barragem do Fundão e quatro anos do trânsito em julgado do título executivo judicial, a maior parte dos atingidos locais ainda permanecem sem a reparação devida e podem assim permanecer, caso mantido o atual entendimento jurisprudencial da corte.

No que diz respeito aos argumentos jurídicos favoráveis à legitimidade do MP para a execução individual plúrima, destaca-se o teor da Nota Técnica nº 10/2022-CNPG (Conselho Nacional de Procuradores-Gerais do Ministério Público dos Estados e da União), a qual esclarece acertadamente que a natureza disponível e divisível dos direitos objeto da liquidação imprópria não é suficiente para afastar a legitimidade da Instituição.

É que os mesmos fatores que autorizam a tutela coletivizada dos direitos individuais na fase de conhecimento também podem se fazer presentes na fase (ou processo autônomo) de liquidação/execução coletiva, notadamente nos casos em que a homogeneidade e a uniformidade persistirem no curso da liquidação ou do cumprimento da sentença.

Com efeito, é possível se identificar aspectos de uniformidade em demandas que tutelam coletivamente direitos individuais, mesmo após a prolação da sentença, pela forma como é conduzida a liquidação e a execução. Mais do que isso, a fase de execução pode ser mandamental, na qual é o próprio executado quem irá, no âmbito de sua competência, providenciar na liquidação o pagamento dos valores devidos. Aliás, essa possibilidade pode ocorrer mesmo por acordo, quando se estabelece uma entidade de infraestrutura específica para esse procedimento.

Citam-se, a título de exemplo, outras medidas processuais que vêm sendo adotadas pelo MP em litígios coletivos complexos e que, por igual, permitem a verificação de aspectos comuns nesse momento procedimental: o estabelecimento de uma matriz de danos para posterior quantificação individual, observados parâmetros preestabelecidos; a prévia liquidação e execução de um montante global, posteriormente dividido o valor entre os lesados individuais; a garantia de uma assistência técnica independente e especializada, para acompanhar as vítimas durante o processo.

No campo do acesso à justiça, é inegável que a liquidação e execução coletiva pelo Parquet servem para assegurar uma tutela jurídica efetiva e implementável de direitos de repercussão social. A possibilidade da substituição processual do grupo por um legitimado coletivo adequado é, principalmente na etapa de satisfação da tutela, mecanismo essencial para a superação dos óbices coletivos de acesso à Justiça, emergentes da sociedade de massa.

A tutela coletiva eficiente e integral, que inclua a satisfação concreta do direito material, revela-se também essencial para evitar a propagação multitudinária de execuções individuais. Nesse sentido, a atuação do Ministério Público na execução da sentença genérica coletiva é de interesse social, pois tem o condão para combater a dispersão das vítimas ou sucessores e, ainda, diminuir a sobrecarga do judiciário. Um efeito econômico que reduz o próprio custo do sistema de justiça para o cidadão.

Cumpre salientar, ainda, que a atuação do MP na condução da liquidação e execução da sentença coletiva genérica é garantia indissociável da cláusula de igualdade, pois — equilibrando as disparidades técnicas, informacionais e econômicas entre os lesados e o causador do dano — evita que a autoridade judicial fixe a menor a indenização para lesados que possuem menos recursos ou, até mesmo, que a satisfação integral dos direitos deixe de alcançar grupos de pessoas em desvantagem.

Por fim, há ainda o argumento da eficiência alocativa. Os valores por detrás da tutela coletiva incluem o efeito de prevenção geral para que comportamentos potencialmente lesivos não se repitam. Ao eliminar a execução coletiva, o risco de que as execuções não sejam proporcionais ao dano é muito maior. Isso acabaria por estimular a repetição de comportamentos ilícitos, com prejuízos que atingem igualmente os demais agentes do mercado, que não se favoreceram do comportamento indevido e passam a operar em um mercado desregulado que favorece o comportamento desleal.

Por todas essas razões, a legitimação do MP para a liquidação e execução coletiva é central, sempre que presente a relevância social, para que a tutela seja efetiva e cumpra sua finalidade constitucional. É muito estranho e seria difícil explicar ao cidadão comum e ao mercado, impactados pela prática ilícita, que, tendo legitimidade para obter a condenação, a fase de efetividade do direito fosse negada ao órgão ministerial.

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