Opinião

Anamnese sobre sustentação oral em agravo em recurso especial

Autor

  • Marcelo Augusto Rodrigues de Lemos

    é advogado criminalista doutorando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e professor.

19 de setembro de 2022, 16h03

A celeuma se inicia da seguinte forma: a Lei n.º 14.365 de junho deste ano, que alterou o Estatuto da OAB, incluiu — como direito do advogado no patrocínio do seu cliente — a realização de sustentação oral em recursos que afrontam decisões monocráticas que julgam o mérito ou não conhecem de recursos, dentre eles o recurso especial.

Spacca
O Superior Tribunal de Justiça, de outro lado, compreende que agravo regimental em agravo em recurso especial não comporta sustentação oral porque este último não está inserido no rol do artigo 7.º, inciso XXI, parágrafo 2-B, inserido pela novel lei ao Estatuto da OAB.

É o que se depreende do leading case emanado no bojo dos ED nos ED no AgInt no AREsp 1829808/SP, de lavra do ministro Luís Felipe Salomão. O relator faz um cotejo entre o artigo 994 do Código de Processo Civil e o novo artigo da Lei n.º 8.906/1994.

É dizer: para o STJ, se o dispositivo processual civil estabelece que são cabíveis recursos como o agravo em recurso especial e, tendo em vista que não há ipsis litteris essa previsão no dispositivo do Estatuto da OAB, logo, não é possível a realização de sustentação oral.

Bem, de pronto gostaríamos que o STJ fosse literalista sempre. Por exemplo, de que modo nesse caso o STJ é textualista radical (letra fria da lei) e, por exemplo, no caso do artigo 371 do CPC (que excluiu o livre convencimento a partir da supressão da palavra "livre"), assim não procede? Esse é o problema do literalismo-exegetismo: é aplicado convenientemente.

Explicaremos.

Esgrimindo argumentos literalistas, a 5ª Turma da Corte da Cidadania, a exemplo do decidido no AgRg no AREsp n. 2.069.616/SP, entende que não há possibilidade de sustentação oral em agravo regimental em agravo em recurso especial, à luz do que dispõe o regimento interno da Corte (artigo 158, inciso IV) e na intelecção que se aventou acima. Isto é, a de que não há previsão legal, porque o predito agravo não está inserido no rol elencado.  Um detalhe relevante: o leading case do ministro Salomão é fruto de uma discussão no âmbito do processo civil. O inciso XXI, por outro lado, diz respeito à assistência, pelo advogado, ao cliente investigado. Uma vez mais, levando a literalidade à risca, o julgado que embasa a decisão da Quinta Turma não possui compatibilidade com a esfera penal. Isso não é relevante?

É nesse ponto, pois, que se iniciam os problemas.

Para situar o leitor, o novo artigo de lei diz o seguinte:

"poderá o advogado realizar a sustentação oral no recurso interposto contra a decisão monocrática de relator que julgar o mérito ou não conhecer dos seguintes recursos ou ações" (…) III – recurso especial".

É preciso, de igual modo, reprisar a cadeia recursal do recurso especial: nos termos do artigo 1.030 e seguintes do Código de Processo Civil, o referido apelo será recebido pelo presidente ou vice-presidente do Tribunal de Origem que terá, dentre outras hipóteses (que não se conectam, por ora, com o objeto deste texto), a faculdade de:

  1. negar seguimento, quando diante de questões superadas pelos ritos da Repercussão Geral e dos Recursos Repetitivos;
  2. inadmitir, i.e., quando não houver plausibilidade jurídica, por exemplo, na hipótese de revisão de matéria fático-probatória (a insuperável Súmula 07) e;
  3. admitir quando estiverem presentes os requisitos para levar à apreciação da Corte Superior.

Voltemos ao texto do novo artigo de lei: este condiciona a sustentação oral em caso de decisão monocrática que não conhece ou julga o mérito de recurso especial. O não conhecer pressupõe uma inviabilidade incontroversa do recurso e o julgar o mérito, evidentemente, é o que ocorre quando há o enfrentamento direto da matéria versada no apelo.

Então, o não conhecer está atrelado ao negar seguimento, que somente permite a interposição de agravo interno no tribunal de origem, ocasião em que, inegavelmente, deverá ser assegurado ao advogado o direito de sustentar oralmente, na medida em que há o não conhecimento de recurso especial.

Porém — e aqui reside o cerne da discussão — se o recurso especial é inadmitido no juízo de origem e, em face da inadmissão, é interposto Agravo que, julgado monocraticamente, enfrenta o mérito da inconformidade, negando-lhe provimento, será cabível a sustentação oral em eventual agravo regimental? Ou, também, nos termos do artigo 253, parágrafo único, inciso II, alínea "a", do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, conhecer do agravo para não conhecer do recurso especial?

É claro, pois, que se cuidam de situações que estão associadas a uma leitura literal do dispositivo do Estatuto da Advocacia e que, por consequência lógica, deve atrair o permissivo legal da sustentação oral pelo causídico. Isso importa dizer que a simples menção de que não cabe porque o legislador não cominou — de modo específico e literal — tal possibilidade, é voltar aos tempos do exegetismo, o superado textualismo. Veja-se: é desejável que se aplique as leis em seus limites semânticos; todavia, uma "textualidade" não pode conspurcar o sentido óbvio da lei. Algo como "proibido cães na plataforma e o juiz permitir ursos; e proibir o cão-guia do cego".

Em recente sessão do STJ, o ministro Sebastião Reis fez um breve desabafo sobre a quantidade exorbitante de sustentações orais no dia. Referiu, inclusive, que essa enormidade de casos que chegam ao STJ diariamente prejudica uma prestação jurisdicional adequada. Fez, pois, um apelo arguindo a necessidade de uma consciência geral de todos os atores envolvidos na perspectiva processual.

Temos solidariedade para com o ministro. De fato, as milhares de denúncias ministeriais ineptas e sem lastro jurídico, assim como a impetração de Habeas Corpus sucessivos sem alteração do fundamento, bem como a interposição de recursos incabíveis, obstam não só uma prestação jurisdicional efetiva, como também dá azo a interpretações ad hoc, como essa que ora debatemos:

O STJ decide que agravo regimental em agravo em recurso especial não comporta sustentação oral, mesmo que o objeto da decisão monocrática tenha enfrentado — direta ou indiretamente (já que tudo está dentro de uma linha causal de admissibilidade do REsp) — os pressupostos da inconformidade.

Veja-se: o "excesso" de recursos é sempre uma resposta darwiniana ao próprio sistema. Há um ecossistema no mundo jurídico: se o MP atua estrategicamente inflando o sistema, se os juízes fundamentam de forma superficial, se os tribunais estabelecem barreiras cada vez mais instransponíveis aos recursos, então os advogados constroem respostas.

Um exemplo interessante é ver os milhares de embargos de declaração rejeitados arbitrariamente com base em livre convencimento (quem nem mais existe no CPC). E se o causídico reclama, leva multa. Isso é democrático? Isso é devido processo legal? Falta só proibirem advogados de recorrer.

A grande nódoa, no entanto, é que em terrae brasilis o prejuízo sempre é suportado pelo réu, como nesse caso. Interessante é que nunca o uso do regimento interno supera uma lei se for para beneficiar o réu.

No caso, uma lei democraticamente concebida é fragilizada por um entendimento jurisprudencial amplo e genérico — e por um regimento interno de um tribunal superior — em nome da promessa de uma prestação jurisdicional mais efetiva e célere.

Despiciendo dizer que a sustentação oral permitiria colocar uma luz em casos que peleiam diante de incontornável jurisprudência defensiva —  como a questão da Súmula 7 e outras que inserem as teses defensivas em uma verdadeira máquina de moer. Sem considerar os grupos de extermínio de recursos, que atuam já no tribunal em que são (in)admitidos ou que nem chegam aos tribunais superiores, pela via da negativa de seguimento.

Em uma perspectiva constitucional, as garantias devem sempre ser lidas contra o Estado e em benefício do réu. Isso já está lá na mitologia grega. A deusa Palas Atena, para equilibrar o "jogo" cidadão versus Estado, vota no julgamento de Orestes e depois usa o empate por ela protagonizado para estabelecer o primeiro in dubio pro reo. Dois mil e quinhentos anos depois, continuamos a fazer in dubio pro Estado.

Numa palavra final, é importante registrar como e por que esta é uma discussão fundamental de teoria do direito. Isso ajuda ainda a explicar o busílis. O (necessário) respeito aos limites semânticos de um texto é fundamental: aplicar a lei não é feio na democracia. Mas o respeito ao texto não se encerra numa literalidade ingênua (na melhor das hipóteses, quando não for à conveniência).

E por que respeitar os limites semânticos é fundamental? Porque, na democracia, quem governa são as normas do sistema jurídico. E é esse o ponto. O motivo pelo qual se exige respeito ao texto é o mesmo que exige que se atente à finalidade das normas — algo que está para muito além de uma "vontade do legislador" (o que é isto — "o legislador"?).

Veja-se: a norma nova surge, no espírito do ordenamento jurídico em seu todo coerente, para garantir ao advogado a sustentação oral em caso de recurso não conhecido. No caso específico em discussão, um agravo regimental em agravo em recurso especial só existe porque não conhecido um REsp.

É simplesmente equivocado, pois, dizer que não há previsão legal. Se assim fosse, "não há previsão legal" para toda sorte de normas fundamentais que inclusive sustentam as regras escritas de um sistema jurídico. O direito não se esgota num formalismo do século 19 e já de há muito se sabe que é impossível um código perfeito que anteveja todas as hipóteses de aplicação.

Quando surge nova lei garantindo ao advogado a sustentação em caso de recurso não conhecido, garantir a sustentação em caso de recurso não conhecido é uma decorrência lógica da nova lei. Sim, uma interpretação literalista dirá que o recurso especial é diferente do agravo regimental em recurso especial que é diferente do agravo regimental em agravo em recurso especial. Mas levemos a literalidade então até às últimas consequências. Sempre. Sem "taxatividade mitigada". Sem "rol não taxativo" quando assim convém. Ou não vamos? Porque "métodos de interpretação" não são como frutos em árvore a serem colhidos a gosto do freguês.

Qual é a função da nova lei? Esse é o grande ponto. Qual é o telos?

"Há um excesso de recursos", dirão. "Precisamos de efetividade e celeridade". Não entraremos em discussões filosóficas sobre o que significa efetividade. Mas diremos que de um "é" não se tira um "deve", se nos permitem uma brevíssima filosofada. Hume já ensinava isso. "Há recursos demais", logo, tiremos do advogado a garantia de sustentar oralmente? Não se sustenta.

Sim, o STJ está sobrecarregado. O advogado — o réu — não pode(m) pagar essa conta. Pensemos em reformas estruturais que realmente solucionem o problema. E que realmente tragam celeridade e efetividade.

Para todo mundo. Respeitando o todo coerente do ordenamento jurídico e a função das normas e dos princípios que sustentam os textos escritos. Respeitando os limites semânticos sempre, sem recair em literalismos que dois séculos de filosofia já deveriam ter enterrado.

Um direito que funciona contra as garantias é um não-direito. E recorrer a um literalismo ad hoc, lamentamos, não soluciona o problema de um Judiciário sobrecarregado. Você pode colocar um tapete em cima do elefante na sala. Ele continua sendo um elefante. E continua dentro da sua sala.

Da nossa, no caso. E não podemos nem dizer nada porque pode esbarrar numa súmula ou num regimento interno.

Para que a doutrina reflita. E sempre invocando Blackburn e Davidson.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!