Opinião

Incidência de IRPJ e CSLL sobre crédito resultante de indébito tributário

Autores

  • André Elali

    é professor associado de Direito Tributário da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) visiting scholar na Queen Mary University of London e no Max-Planck-Institüt für Steuerrecht.

  • Manoel Cipriano

    é advogado graduado e mestrando em Direito pela UFRN.

19 de setembro de 2022, 9h04

Muito se discute a respeito do aspecto temporal (momento de incidência) do IRPJ/CSSL sobre créditos oriundos de indébitos tributários em face de decisões judiciais com trânsito em julgado.

Neste artigo, pretendemos identificar a correta interpretação da incidência dos tributos federais sobre a receita de indébitos tributários, confrontando a Solução Cosit 183, de 2021, com o princípio da capacidade contributiva.

Considerações gerais (IRPJ)
A Constituição estabelece, no artigo 153, III, que compete à União instituir imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza, devendo ser informado o referido tributo pelos critérios da generalidade, da universalidade e da progressividade. Coube ao Código Tributário Nacional (CTN) e à legislação federal definir o conceito de renda, que abarca o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos. Proventos, por sua vez, são os acréscimos patrimoniais não compreendidos na definição anterior. Inter alia, a base da incidência da CSLL é a mesma do IRPJ.

Em suma, haverá renda, no conceito geral de tributação, quando houver aumento de disponibilidade econômica e/ou jurídica. Qualquer ativo, portanto, que passe a pertencer à pessoa gerará, em tese, renda no conceito de aumento patrimonial. E isso porque a renda se manifesta também pelo acúmulo patrimonial.

Importante aspecto, todavia, é analisar o regime ao qual o sujeito passivo estará submetido. E isso porque os regimes detêm regras próprias que não se confundem, assim distinguindo-se a apuração do IRPF do IRPJ nos sistemas do lucro presumido e do lucro real.

Nesse sentido, para as pessoas físicas, o ganho se dá na efetiva realização da renda [1]. Já para as pessoas jurídicas, deve-se examinar o reconhecimento das receitas que serão oneradas pelo IRPJ e pela CSLL, de modo a se manter a coerência dos respectivos regimes fiscais.

Ademais, a tributação do lucro segue a noção de se tratar tal grandeza do resultado positivo da atividade empresarial, de verdadeira "mais-valia obtida por sociedade empresária" [2].

O STF tem entendimento no sentido de que o conceito de receita, acolhido pelo artigo 195, I, "b", da Constituição, não se confunde com o conceito contábil. Ainda que a contabilidade elaborada para fins de informação ao mercado, gestão e planejamento das empresas possa ser tomada pela lei como ponto de partida para a determinação das bases de cálculo de diversos tributos, de modo algum subordinaria a tributação.

A questão que se coloca neste exame resumido é de quando deverá a pessoa jurídica, especialmente a submetida ao regime do lucro real do IRPJ, reconhecer a receita relativamente a indébito tributário. Nesses casos, questiona-se se os créditos obtidos judicialmente passaram a pertencer às pessoas jurídicas, aumentando-se, portanto, os seus patrimônios.

Discute-se, neste aspecto, o momento de reconhecimento da receita. A esse respeito, leciona Ricardo Mariz de Oliveira que:

"Reconhecimento' de receita é termo advindo da ciência con­tábil, que foi adotado pela legislação tributária no mínimo (provavelmente, e de modo consistente) a partir do Decreto-lei n° 1.598, de 26 de dezembro de 1977, no qual a palavra (ou o verbo 'reconhecer') foi empregada no art. 6o, parágrafo 5o, diretamente a respeito de ine­xatidão do período competente para o lucro, e mediatamente a res­peito das receitas que o compõem, também em parágrafos dos arts. 10 e 27, assim como no art. 29, a respeito do lucro de certos contra­tos de longo prazo e de atividades no setor imobiliário, além do art. 31 Parágrafo 2o, relativo a ganhos de capital na venda de bens do ativo permanente. A própria Lei n° 6.404, de 15 de dezembro de 1976, que deu origem ao Decreto-lei n° 1.598 para adaptar a lei do imposto de renda às grandes modificações que aquela introduziu no direito privado, e que no art. 177 aproximou-se da ciência contábil ao determi­nar o levantamento das demonstrações financeiras com observância entre outros requisitos, dos 'princípios de Contabilidade geralmen­te aceitos', não empregou o termo reconhecimento', quer referido a lucro, quer à receita. Entretanto, ao se referir, no art. 187, parágrafo I, letra 'a', que no resultado se incluem 'as receitas e os rendimentos ganhos no pe­ríodo, independentemente da sua realização em moeda', a lei socie­tária teve em mente o mesmo acontecimento (reconhecimento de receitas e rendimentos ganhos), e, ao mesmo tempo, adentrou no ter­mo 'realização', intimamente ligado a reconhecimento, e aí adota­do em um dos seus significados, como veremos adiante" [3].

Continua o mesmo autor, de modo coerente, afirmando que o reconhecimento de receita corresponde ao "ato de reconhecer que a receita existe", porque foi adquirida. Para ele, "em poucas palavras, 'reconhecimento da receita' é o ato de 'reconhecer' que ela existe, ou melhor, 'reconhecer' que ela já passou a existir porque já foi adquirida, por isso mesmo ganha. Este ato se desdobra em duas partes logicamente distintas, e também material e cronologicamente (embora sucessivas e geralmente qua­se que instantâneas no tempo) diferentes, a saber: uma atividade preliminar, de natureza intelectual, consistente em interpretar algum fato da vida empresarial para identi­ficá-lo, primeiramente, como um fato dentro do qual existe um movimento econômico cuja natureza seja de receita, isto é, concluir tratar-se de uma receita, e não de outra coisa distinta dela, ainda que nesta haja um ingresso financeiro portador de outra natureza; e uma atividade física, com conteúdo material (embora possivelmente em meio virtual), de registro do movimento interpretado como sendo uma receita, nos assentamentos contábeis relativos à empresa a que ele se refere" [4].

Assim, no momento de reconhecimento da receita, por ato vinculado à Fazenda Pública, o ativo correspondente ao crédito oriundo de ação judicial passa a pertencer à empresa. Há, de fato, aumento patrimonial ou disponibilidade, conceitos que geram a incidência do imposto sobre a renda das pessoas jurídicas. Adquire-se, nesses casos, novo direito sobre coisa e o consequente aumento patrimonial em relação ao momento anterior à aquisição.

Por isso mesmo, conforme a lição de Ricardo Mariz de Oliveria, "a Contabilidade 'reconhece' o movimento econômi­co entrante a crédito de uma conta de resultado, ou seja, a crédito de uma conta de receita, e daí advêm outras consequências e providên­cias, como a integração desse direito na base de cálculo do imposto de renda (assim como no fato gerador e na base de cálculo das con­tribuições sociais antes referidas), a obrigação de recolhimento os tributos devidos em consequência da aquisição da receita e da renda por ela produzida, a obrigação de preenchimento de declarações receitas e de rendimentos etc" [5].

Solução de Consulta Cosit 183/2021
A solução dispõe que o indébito fiscal e os juros de mora (como é entendida a Selic) sobre ele incidentes até a data do trânsito em julgado devem ser oferecidos à tributação no momento do trânsito em julgado da sentença judicial que já define o valor a ser restituído.

Ademais, não sendo a sentença líquida, a autoridade fiscal dispõe que o imposto deverá incidir no momento da primeira declaração de compensação, que deve ser naturalmente precedida de devida quantificação pelo contribuinte.

É a situação que estamos a analisar.

Na hipótese das empresas que obtêm indébitos tributários, o crédito há de ser objeto do correto procedimento administrativo, na forma das instruções normativas vigentes, viabilizando o uso mediante compensações de tributos federais, com todas as necessárias declarações e registros formais.

Nesse sentido, uma vez reconhecido, pela autoridade tributária, o crédito, oriundo de ação com coisa julgada, este se torna um ativo da pessoa jurídica, gerando o aumento de patrimônio com a necessária disponibilidade econômica e jurídica. Logo, pela aplicação da interpretação do órgão fiscal, a incidência dos tributos federais sobre o reconhecimento da receita (crédito) deve ocorrer no seu ato inicial.

Discussão quanto à capacidade contributiva
Discute-se, sobre o tema, eventual violação da interpretação administrativa quanto à capacidade contributiva. Argumenta-se que o crédito, não obstante reconhecido e homologado, não foi ainda utilizado, devendo ser diferida a incidência do IRPJ/CSSL para o seu uso.

A noção do princípio da capacidade contributiva se origina e se confunde com o próprio surgimento do tributo, já era observado a utilização de tal princípio no antigo Egito, bem como na Grécia, mas foi na Idade Média que a fixação dessa ideia evoluiu com São Tomás de Aquino. Em meados de 1776, Adam Smith definiu a ideia precisamente, sustentando que para concretização da Justiça da imposição fiscal, todos deveriam contribuir para as despesas públicas "na razão de seus haveres".

Com a conscientização pelos povos civilizados da observância de tal princípio eclodiram diversas lutas e revoltas tais como a Boston Tea Party, dentre tantas outras, o que em consequência, e como resposta à Declaração de Direitos e a Declaração dos Homens e dos Cidadãos, concretizaram o princípio da capacidade contributiva.

Porém, nos casos de repetição de indébito de empresas sujeitas à apuração do IRPJ sob o regime do lucro real, entende-se que a pessoa jurídica que detém patrimômio e com atividade econômica em curso manifesta sua capacidade contributiva em diferentes etapas do processo econômico. Logo, a discussão de eventual diferimento da tributação, para reconhecimento de receita mediante o uso sistemático dos créditos, não se apresenta racional.

E isso porque a capacidade contributiva se mensura por diferentes elementos e o mero ato de reconhecimento da receita é a manifestação de capacidade contributiva dentro do regime examinado do IRPJ.

Questão diferente, e com razão alguns tribunais, é a imposição de tributos sobre o mero reconhecimento judicial. E isso porque os créditos tributários devem ser habilitados e homologados pela autoridade tributária. Daí, mediante tal procedimento, há de se reconhecer a receita.

Nesse sentido, destaca-se decisão do TRF da 3ª região no sentido de que o crédito reconhecido por sentença ilíquida "somente estará disponível para utilização em favor do contribuinte após a homologação do seu pedido de habilitação de crédito. (…). Assim, (…), os valores reconhecidos pela decisão judicial não são certos, líquidos e exigíveis, de forma que a disponibilidade jurídica ou econômica da renda, como fato gerador do IRPJ e da CSLL, ocorrerá somente no momento da homologação da compensação pelo Fisco e que, portanto, somente nesse momento será devido o IRPJ e a CSLL" (TRF3 – Ap. Cível 5004691/74.2019-4.03.6114).

Também o TRF da 5ª região já manifestou o entendimento de que "não há como serem exigidos tributos no momento do trânsito em julgado da decisão que reconhece o direito à compensação", quando a sentença for ilíquida, visto que as bases de cálculo são "incertas e ilíquidas" (PROCESSO: 08107154820194058400, APELAÇÃO / REMESSA NECESSÁRIA, DESEMBARGADOR FEDERAL ROGÉRIO DE MENESES FIALHO MOREIRA, 3ª TURMA, JULGAMENTO: 2/7/20).

Logo, nos casos em que as empresas obtiveram a homologação do crédito tributário, aplica-se a regra da Solução Cosit.

Conclusão
Isto posto, o ato de reconhecimento da existência de crédito tributário em face de indébito, com coisa julgada, gera, às pessoas sujeitas à apuração do IRPJ sob a o regime do lucro real, o aumento patrimonial, atraindo a incidência do IRPJ/CSLL na forma da orientação administrativa.


[1] Nesse sentido: "DECADÊNCIA. GANHO DE CAPITAL. FATO GERADOR. – O fato gerador do imposto sobre o ganho de capital ocorre quando do efetivo ganho. Em sendo o pagamento parcelado o fato gerador também será tomado a cada parcela separadamente. DECADÊNCIA. GANHO DE CAPITAL. LANÇAMENTO POR HOMOLOGAÇÃO. DECADÊNCIA. ANTECIPAÇÃO DO PAGAMENTO. – Para os tributos sujeitos a homologação, o prazo decadencial é de cinco anos contados a partir da ocorrência do fato gerador se houve a antecipação do pagamento. A ausência do pagamento antecipado implica na aplicação da regra decadencial prevista no art. 173 do CTN. GANHO DE CAPITAL NA ALIENAÇÃO DE PARTICIPAÇÃO SOCIETÁRIA. Na apuração do ganho de capital serão consideradas as operações que importem alienação, a qualquer título, de bens ou direitos ou cessão ou promessa de cessão de direitos à sua aquisição, tais como as realizadas por compra e venda, permuta, adjudicação, desapropriação, dação em pagamento, doação, procuração em causa própria, promessa de compra e venda, cessão de direitos ou promessa de cessão de direitos e contratos afins." (CARF. Acórdão nº. 2301-006.477, 2ª Seção de Julgamento, 3ª Câmara, 1ª Turma Ordinária, relatora cons(a). João Mauricio Vital, julgado em 12/9/2019); "GANHO DE CAPITAL. ALIENAÇÃO A PRAZO. PAGAMENTO PARCELADO. MOMENTO DO FATO GERADOR. – Nas alienações a prazo, o fato gerador do ganho de capital aperfeiçoa-se no efetivo recebimento de cada parcela do preço ajustado entre as partes, quando então nasce a obrigação tributária de pagamento do imposto sobre a renda, na proporção delas" (CARF. Acórdão nº 2401-006.118, 4ª Câmara, 1ª Turma Ordinária, relatora cons(a). Cleberson Alex Friess, Julgado em 14/3/2019);

"IRPF – GANHO DE CAPITAL – ALIENAÇÃO DE AÇÕES A PRAZO. FATO GERADOR – APURAÇÃO DA DECADÊNCIA. – Nas vendas a prazo o fato gerador do Imposto de Renda se realiza com o efetivo pagamento da parcela acordada pelas partes, devendo este ser o momento para contagem do prazo decadencial. Não constatada a decadência." (CARF. Acórdão nº. 2301-005.930, 4ª Câmara, 2ª Turma Ordinária, relator cons. Juliana Marteli Fais Feriato, julgado em 14/3/2019).

[2] Cf. José Artur Lima Gonçalves. Imposto sobre a Renda – Pressupostos Constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 178. Por outro lado, adverte Ricardo Mariz de Oliveira: "o imposto de renda somente incide quando ocorrer acréscimo patrimonial". Cf. Ricardo Mariz de Olveira. Fundamentos do Imposto de Renda. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 689.

[3] Cf. Ricardo Mariz de Oliveira. Reconhecimento de Receitas – Questões Tributárias Importantes (Uma Nova Noção de Disponibilidade Econômica? In: Controvérsias Jurídico-Contábeis (Aproximações e Distanciamentos). 3 vol. São Paulo: Dialética, 2016, pp. 298-316.

[4] Cf. Ricardo Mariz de Oliveira. Reconhecimento de Receitas – Questões Tributárias Importantes (Uma Nova Noção de Disponibilidade Econômica? In: Controvérsias Jurídico-Contábeis (Aproximações e Distanciamentos). 3 vol. São Paulo: Dialética, 2016, pp. 298-316.

[5] Cf. Ricardo Mariz de Oliveira. Reconhecimento de Receitas – Questões Tributárias Importantes (Uma Nova Noção de Disponibilidade Econômica? In: Controvérsias Jurídico-Contábeis (Aproximações e Distanciamentos). 3 vol. São Paulo: Dialética, 2016, pp. 298-316.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!