Segunda Leitura

O risco de o ativismo judicial ultrapassar os limites da linha divisória

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

18 de setembro de 2022, 8h00

Não é fácil conceituar o ativismo judicial, porque ele se fragmenta em diversas e variadas iniciativas. Basicamente, ele se constitui em uma ação mais abrangente do Poder Judiciário que interfira em decisões dos outros Poderes de Estado. Por suas peculiaridades, ele sempre desperta reações conflitantes, ora de júbilo, ora de revolta, tudo a depender dos interesses de quem se beneficiou ou de quem sofreu o prejuízo.

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O ativismo judicial, observa Ionilton Pereira do Vale, "está ligado ao fenômeno da judicialização da política, concorrendo uma série de fatores, para este fenômeno, tais como: um sistema político democrático; a separação dos poderes; o exercício dos direitos políticos; o uso dos tribunais pelos grupos de interesse; a inefetividade das instituições majoritárias, a transferência dos poderes decisórios de outros poderes ao Poder Judiciário" [1].

Evidentemente, o ativismo pressupõe um Poder Judiciário autônomo e independente, pois, em uma ditadura, nenhum juiz se atreverá a decidir contra o poder dominante. Normalmente, o ativismo judicial baseia-se na interpretação da norma constitucional e, como a nossa Carta Magna de 1988 é extremamente minuciosa, fácil é ver que existe justificativa para se decidir como se desejar.

Ocorre que o chamado ativismo judicial extrapolou as decisões envolvendo política ou a interpretação da Constituição. Foi além, alcançando qualquer ação do magistrado que saia da sua postura clássica de decidir com base nas provas dos autos e só falar embaixo da conclusão. De uma forma ou de outra, por vezes, o magistrado poderá estar ultrapassando a linha divisória entre o que é o seu papel constitucional e uma ação que extrapola as funções para as quais foi nomeado.

Por óbvio, na maioria das vezes esta é uma linha tênue, não demarcada e com limites de difícil identificação. Vejamos as duas espécies de decisões consideradas ativistas. A primeira, envolvendo política e interpretação da Constituição e a segunda, diretamente ligada a processo e julgamento de casos individuais, geralmente tomada por juízes de primeira instância.

Nas ações envolvendo política, principalmente em época de eleições, há um sério o risco de a decisão judicial perder o que tem de mais caro, ou seja, a imparcialidade. Na Bíblia já se encontra menção à necessidade de imparcialidade do juiz [2]. O problema não é novo. François Pierre Guillaume Guizot (França, 1787-1874) bem definiu tal situação, ao afirmar: "Quando a política penetra no recinto dos tribunais, a justiça se retira por alguma porta".

Evidentemente, estou me referindo aos bons juízes e não a alguém que, investido da função, age conscientemente, com propósito diverso de fazer justiça. Este não honra a toga que veste e não merece mais comentários.

Portanto, pensando nos bons juízes, imagino um juiz eleitoral que tenha no seu íntimo a convicção de que este ou aquele candidato é o melhor para o cargo público disputado, ou até para o Brasil. Inconscientemente, pode ele cruzar a linha limite e errar ao pender para um lado, com manifesto prejuízo à parte contrária. No âmbito dos tribunais superiores, leia-se Tribunal Superior Eleitoral e Supremo Tribunal Federal, o risco é maior. Frases de efeito, declarações públicas externando suposta valentia, ações radicais ou falta de clareza nos objetivos de uma decisão, podem macular a imagem do autor e do próprio Judiciário.

Vejamos agora o processo e julgamento de casos individuais. Inúmeras são as situações que a vida nos apresenta.

O juiz francês Antoine Garapon, com certeza um dos maiores analistas do Poder Judiciário no mundo, alertava, em obra de 2001, as dificuldades do juiz em casos envolvendo crianças, integridade corporal de mulheres, lutas contra o racismo, direito dos animais, incesto, casos em que a simples ação do magistrado em tentar fazer com que sejam respeitadas as regras processuais, ou seja, o direito de defesa, pode levar a pôr-se em dúvida sua boa-fé, caráter, sob suspeita de machismo e outras formas de desvio de caráter [3]. Aí é preciso coragem para, se for o caso, afastar-se da comoção social e decidir o que lhe pareça correto. Mas, se decidir conforme a opinião prevalente na mídia, estará cruzando a linha limite, revelando insegurança e despreparo para o cargo.

Na Justiça Criminal o risco é muito grande. Imagine-se um abominável processo de estupro. Sabedor de detalhes repulsivos do caso, muito embora não provado o estupro de forma inequívoca nos autos, pode o magistrado ser levado ao extremo, ordenando a produção de provas abusivas ou julgar além das evidências.

Ainda que compreensíveis, do ponto de vista humano, tais iniciativas, a verdade é que elas, rompendo a linha limite entre o permitido e o proibido, podem levar a consequências extremas. Os esquadrões da morte dos anos 1960 nada mais eram do que o justiçamento em casos que o Poder Judiciário não lograva impedir a ação criminosa de determinados réus. Evidentemente, isto não condiz com a democracia.

No âmbito da justiça ambiental o risco é flagrante. Preocupado com os danos causados ao meio ambiente e com as consequências que disto podem resultar, em especial as do aquecimento global, pode o magistrado ser levado a cruzar a linha limite do razoável. Por óbvio, é preciso dar-se especial atenção às ações de natureza ambiental e procurar, de todas as formas, manter-se o meio ambiente sadio. No entanto, nada justifica que, sob argumentação genérica, afaste-se do caso concreto e decida exclusivamente com base na emoção. Aí estará sendo transposta a linha divisória.

O tema é de grande interesse e pouco enfrentado na doutrina e nos julgamentos dos tribunais. Por outro lado, o dilema não é privilégio do Brasil. A série Justiça Juvenil, o que para nós significa da criança e do adolescente, passada na Coreia do Sul, aborda a conduta ativa da magistrada, que sai da esfera do processo e do seu gabinete para ir à cata de provas [4].

Em suma, os limites por vezes pouco claros entre o certo e o errado devem ser melhor analisados. A independência do juiz vai além das garantias constitucionais, alcança o seu íntimo, a sua forma de ver o mundo e cuidar para que ela não atinja a sua imparcialidade. Tema complexo, mas que merece maior atenção, especialmente das Escolas da Magistratura.

 


[1] VALE, Ionilton Pereira do. Ativismo Judicial: conceito e formas de interpretação. Jusbrasil. Disponível em: https://ioniltonpereira.jusbrasil.com.br/artigos/169255171/o-ativismo-judicial-conceito-e-formas-de-interpretacao. Acesso em 15 set. 2022.

[2] Bíblia Sagrada, "justos juízos, sem se inclinarem para uma das partes" — Deuteronômio, 16, 18-20. Disponível em: https://afontedeinformacao.com/biblioteca/artigo/read/94699-o-que-e-imparcialidade-na-biblia. Acesso em 15 set. 2022.

[3] GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia. 2ª edição. Rio de Janeiro, Revan, 2001, p. 99.

[4] Justiça Juvenil. Netflix.

Autores

  • é ex-secretário Nacional de Justiça no Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUC-PR, desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e ex-presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

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