Charles Beard e a interpretação econômica do Direito
18 de setembro de 2022, 8h00
O pensador político norte-americano Charles Beard nasceu em 1874 e faleceu em 1948. A compreensão que Beard tinha da história do direito era realista no sentido de que nada se aprende do passado. Projetamos no passado nossas preocupações presentes, reinterpretando a história, a partir dos pontos de vista que detemos no momento em que fazemos história. Somos escravos de nossos preconceitos.
O índice do grande livro de Beard – – “A Interpretação Econômica da Constituição os Estados Unidos” – -dá-nos conta da amplidão de interesse de sua pesquisa. Beard fez levantamento dos interesses econômicos que estavam em jogo em 1787, ano da promulgação da constituição norte-americana. Na premissa fundamental de que o poder segue a propriedade, Beard identificou os interesses econômicos dos membros da convenção constitucional norte-americana. Qualificou a constituição norte-americana como documento prioritariamente econômico. Vinculando economia e política, o que é tema marxista, Beard reconstruiu as doutrinas políticas que animavam os membros da convenção constitucional.
Beard ocupou-se do processo de ratificação. Isolou a participação popular e qualificou os limites do voto popular. O livro de Beard afasta toda a historiografia jurídica ingênua, de manuais e apostilas de história de direito, disciplina que muitas vezes cai no domínio de ingênuos que admiram o passado, sem que entendam os porquês do escapismo.
O livro de Beard é uma insurreição contra o formalismo. Beard minou a veneração que havia para com a Suprema Corte, que acintosamente reprimia legislação crescente de preocupação econômica e social. Beard realizou obra de desconstrução, decompondo os termos da constituição dos Estados Unidos, e comprovando que se vivia sob um governo de homens, e não de leis, ao contrário do que defendia historiografia jurídica romântica, cravada no ideário popular.
Para Beard, quando a Suprema Corte decidia sobre questões de interesse direto da população, esta deveria ser compelida a votar, anuindo ou discordando da decisão, que fora produzida por seres humanos, detentores de interesses e preconceitos, representantes de grupos de pressão, de lobbies e de conjuntos específicos, circunstância que se mascara com o ramerrão da neutralidade e da cientificidade.
Beard apontou no texto constitucional norte-americano todas as questões econômicas que agitavam os Estados Unidos, a exemplo de proteção tarifária, comércio internacional, transporte, indústria, comércio, trabalho, agricultura, temas que não podem ficar à mercê dos falsos problemas trazidos pelas leituras analíticas do direito, que se perdem em formalismos, campo discursivo que engendra todos os tipos de solução.
Em introdução que preparou em 1935 para nova edição de seu célebre livro, Beard questionava que interesses poderiam estar por detrás de todo o modelo constitucional norte-americano. Beard questionava a fluidez de conteúdos jurídicos vagos como princípios, de entendimento abstrato, provocadores de todo o tipo de injunções conjunturais. Beard duvidava de premissas fluidas, a exemplo de presunção normatizada dando conta de que o governo procede diretamente do povo.
Beard lembrou que boa parte da produção jurídica é relacionada com a defesa da propriedade e que há tentativa de se isolar o direito constitucional dessa circunstância, entre outros, por causa de construção cultural que fraciona o universo normativo em conteúdos de direito público e privado.
Beard percebeu a relação que a constituição dos Estados Unidos mantinha com projeto econômico de expansão. O delicado problema da escravidão não passou despercebido a Beard, dado que a solução que o texto constitucional norte-americano preservou, lacônica, é causa concorrente para o conflito nacional que se alastrou de modo mais explícito a partir de 1861, e que foi a guerra que matou o maior número de norte-americanos, travada entre o norte e o sul.
Charles Beard pode ser inserido no realismo jurídico, em sentido historiográfico, na medida em demonstrou exaustivamente a impossibilidade de se divorciar a história do direito de seus fatores determinantes, que se localizam na economia e na política. É o que os juristas precisamos compreender.
1 Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.
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