Opinião

Aplicação de normas sobre jornada no teletrabalho pela Lei 14.442/22

Autor

  • Gustavo Filipe Barbosa Garcia

    é livre-docente pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo). Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da USP. Pós-Doutorado em Direito pela Universidade de Sevilla. Especialista em Direito pela Universidade de Sevilla. Membro Pesquisador do IBDSCJ. Membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho titular da cadeira 27. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Professor universitário. Advogado.

17 de setembro de 2022, 13h03

A Lei 14.442, de 2 de setembro de 2022, publicada no Diário Oficial da União de 5/9/2022, alterou diversas previsões da CLT sobre teletrabalho. Trata-se de diploma legal que tem origem na Medida Provisória 1.108/2022.

Em termos conceituais, considera-se teletrabalho ou trabalho remoto a prestação de serviços fora das dependências do empregador, de maneira preponderante ou não, com a utilização de tecnologias de informação e de comunicação, que, por sua natureza, não configure trabalho externo (artigo 75-B da CLT, com redação dada pela Lei 14.442/2022).

Nessa linha, o comparecimento, ainda que de modo habitual, às dependências do empregador para a realização de atividades específicas que exijam a presença do empregado no estabelecimento não descaracteriza o regime de teletrabalho ou trabalho remoto (artigo 75-B, § 1º, da CLT, incluído pela Lei 14.442/2022).

O empregado submetido ao regime de teletrabalho ou trabalho remoto pode prestar serviços por jornada ou por produção ou tarefa (artigo 75-B, § 2º, da CLT, incluído pela Lei 14.442/2022).

Essa previsão é passível de crítica, uma vez que mesmo no teletrabalho ou trabalho remoto, por envolver empregado, a jornada de trabalho não se confunde com as formas de fixação do salário. Trata-se, assim, de institutos distintos, voltados à duração do trabalho e à remuneração. Vale dizer, a jornada de trabalho não é excluída em decorrência de o salário ser fixado por produção ou tarefa (artigo 78, artigo 142, § 2º, artigo 478, § 5º, artigo 483, g, artigo 487, § 3º, e artigo 582, § 1º, b, da CLT) [1]. Na verdade, o salário pode ser fixado por unidade de tempo, por unidade de obra (produção) ou por tarefa, o que se distingue da jornada de trabalho propriamente.

Na hipótese da prestação de serviços em regime de teletrabalho ou trabalho remoto por produção ou tarefa, não se aplica o disposto no Capítulo II do Título II da Consolidação das Leis do Trabalho (artigos 57 a 75), sobre duração do trabalho (artigo 75-B, § 3º, da CLT, incluído pela Lei 14.442/2022).

No mesmo sentido, o artigo 62, inciso III, da CLT, com redação dada pela Lei 14.442/2022, dispõe que não são abrangidos pelo regime de duração do trabalho os empregados em regime de teletrabalho que prestam serviço por produção ou tarefa.

Anteriormente, o artigo 62, inciso III, da CLT, incluído pela Lei 13.467/2017, previa os empregados em regime de teletrabalho, sem fazer essa delimitação quanto à prestação do serviço por produção ou tarefa. Sendo assim, com a Lei 14.442/2022, passam a ser abrangidos pelos preceitos sobre duração do trabalho os empregados em regime de teletrabalho que prestam serviço por jornada (artigo 75-B, § 2º, da CLT).

O artigo 7º da Constituição da República assegura aos trabalhadores urbanos e rurais os direitos à remuneração do trabalho noturno superior à do diurno (inciso IX), à duração do trabalho normal não superior a 8 horas diárias e 44 semanais (inciso XIII) e à remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em 50% à remuneração do trabalho normal (inciso XVI).

Logo, apenas em razão de especificidades da forma de trabalho, que tornem incompatível com a incidência das normas sobre a duração do labor, é que podem ser afastados os direitos decorrentes, como os relativos a intervalos e remuneração de horas extras e de trabalho em horário noturno com os respectivos adicionais. Na verdade, o empregado não terá direito às previsões relativas à duração do trabalho somente em hipóteses excepcionais. O artigo 62, inciso III, da CLT, assim, deve ser interpretado conforme a Constituição [2].

Para que o mencionado dispositivo não afronte as normas constitucionais que asseguram os direitos relativos à duração do trabalho, embora o teletrabalho não se confunda com o trabalho externo, defende-se o entendimento de que a exclusão das disposições sobre duração do trabalho (artigo 62, inciso III, da CLT) somente ocorre quando as atividades exercidas pelo teletrabalhador que presta serviço por produção ou tarefa forem incompatíveis com a fixação de horário de trabalho.

Nesse enfoque, o trabalho a distância, como ocorre no labor em domicílio e no teletrabalho (mesmo que o serviço seja prestado por produção ou tarefa), por si, não é suficiente para excluir os direitos relativos à jornada de trabalho.

Desse modo, aplicando-se de forma extensiva e analógica as exigências do artigo 62, inciso I, da CLT, apenas se o empregado exercer atividade que seja incompatível com a fixação de horário de trabalho, devendo essa condição ser anotada na Carteira de Trabalho e Previdência Social e no registro de empregados, é que não haverá direito ao regime de jornada de trabalho e, portanto, à remuneração de horas extras e de trabalho em horário noturno, à hora noturna reduzida e aos intervalos.

Portanto, se houver controle da jornada de trabalho, ainda que por meio remoto, com a utilização de recursos tecnológicos e de informática (artigo 6º, parágrafo único, da CLT), defende-se o entendimento de que haverá direito à remuneração de labor em prorrogação de jornada, em horário noturno (inclusive hora noturna reduzida) e de intervalos não usufruídos.

Cabe ressaltar que, nos termos do artigo 4º da CLT, considera-se como de serviço efetivo o período em que o empregado esteja à disposição do empregador, aguardando ou executando ordens, salvo disposição especial expressamente consignada.

O regime de teletrabalho ou trabalho remoto não se confunde nem se equipara à ocupação de operador de telemarketing ou de teleatendimento (artigo 75-B, § 4º, da CLT, incluído pela Lei 14.442/2022).

A rigor, o telemarketing ou o teleatendimento diz respeito à função ou atividade exercida pelo trabalhador, enquanto o teletrabalho ou trabalho remoto envolve o regime ou modalidade de trabalho. Logo, em tese, é possível que o operador de telemarketing ou de teleatendimento realize a prestação de serviços em regime presencial (dentro das dependências do empregador) ou na modalidade de teletrabalho ou trabalho remoto (fora das dependências do empregador, de maneira preponderante ou não, com a utilização de tecnologias de informação e de comunicação, sem configurar trabalho externo).

A Norma Regulamentadora 17, com redação dada pela Portaria 423/2021 do Ministério do Trabalho e Previdência, no Anexo II, versa sobre trabalho em teleatendimento/telemarketing.

Em face do cancelamento da Orientação Jurisprudencial 273 da SBDI-I do TST, por meio da Resolução 175/2011, tornou-se majoritário o posicionamento que defende a aplicabilidade da jornada de trabalho reduzida do telefonista ao operador de telemarketing, conforme o artigo 227 da CLT, tendo em vista a nítida semelhança entre as funções exercidas (TST, 3ª Turma, ARR-244-60.2010.5.04.0221, relator: ministro Alexandre de Souza Agra Belmonte, DEJT 25/10/2019).

Prevalece o entendimento de que a jornada reduzida prevista no artigo 227 da CLT não se aplica aos empregados que acumulam funções de telefonista com outras atribuições (como nos casos em que durante a jornada de trabalho há interrupções das atividades de digitação e do uso do telefone em razão de outras tarefas próprias de suporte à equipe de técnicos), uma vez que a finalidade da lei é minimizar o desgaste físico e mental de quem desenvolve de forma exclusiva ou absolutamente preponderante as atividades de telefonista (TST, SBDI-I, E-RR 393-08.2012.5.24.0002, relator: ministro Renato de Lacerda Paiva, j. 4/5/2017).

Nessa linha, mesmo quanto ao operador de telemarketing, para a aplicação da jornada de trabalho reduzida prevista no artigo 227 da CLT, entende-se que devem ser exercidas pelo empregado atividades análogas às de telefonista, de modo exclusivo ou preponderante (TST, 5ª T., Ag-AIRR-11151-22.2019.5.18.0017, relator: ministro Douglas Alencar Rodrigues, DEJT 19/8/2022).

O tempo de uso de equipamentos tecnológicos e de infraestrutura necessária, bem como de softwares, de ferramentas digitais ou de aplicações de internet utilizados para o teletrabalho, fora da jornada de trabalho normal do empregado não constitui tempo à disposição ou regime de prontidão ou de sobreaviso, exceto se houver previsão em acordo individual ou em acordo ou convenção coletiva de trabalho (artigo 75-B, § 5º, da CLT, incluído pela Lei 14.442/2022).

Essa previsão é questionável, pois se o uso de equipamentos tecnológicos e de infraestrutura necessária, bem como de softwares, de ferramentas digitais ou de aplicações de internet ocorrer em razão do trabalho, ou seja, para fins da prestação de serviço, ainda que fora da jornada de trabalho formalmente convencionada, a rigor, deve ser nela computado (artigo 4º da CLT).

Considera-se de sobreaviso o empregado que permanecer em sua própria casa, aguardando a qualquer momento o chamado para o serviço. As horas de sobreaviso devem ser contadas à razão de 1/3 do salário normal (artigo 244, § 2º, da CLT). Considera-se de prontidão o empregado que ficar nas dependências do empregador, aguardando ordens. As horas de prontidão devem ser contadas à razão de 2/3 do salário-hora normal (artigo 244, § 3º, da CLT).

Nos termos da Súmula 428 do TST: "Sobreaviso. aplicação analógica do art. 244, § 2º, da CLT. I – O uso de instrumentos telemáticos ou informatizados fornecidos pela empresa ao empregado, por si só, não caracteriza o regime de sobreaviso. II – Considera-se em sobreaviso o empregado que, à distância e submetido a controle patronal por instrumentos telemáticos ou informatizados, permanecer em regime de plantão ou equivalente, aguardando a qualquer momento o chamado para o serviço durante o período de descanso".

Acordo individual pode dispor sobre os horários e os meios de comunicação entre empregado e empregador, desde que assegurados os repousos legais (artigo 75-B, § 9º, da CLT, incluído pela Lei 14.442/2022). Devem ser observados, assim, os períodos de descanso previstos em lei, assegurando-se ao empregado, assim, o direito à desconexão , tendo em vista os direitos fundamentais ao lazer, ao repouso e à limitação da jornada de trabalho (artigos 6º e 7º, incisos IV, XIII e XV, 217, § 3º, e 227 da Constituição da República), como forma de assegurar a dignidade, bem como o convívio familiar e social do empregado. Cf. TST, 7ª T., AIRR – 2058-43.2012.5.02.0464, relator: ministro Cláudio Mascarenhas Brandão, DEJT 27/10/2017.

Em conclusão, apesar de certas inovações quanto ao teletrabalho, observam-se aspectos que ainda necessitam de aperfeiçoamentos, com destaque à correta incidência dos preceitos sobre duração do trabalho.


[1] Orientação Jurisprudencial 235 da SBDI-I do TST: "Horas extras. Salário por produção. O empregado que recebe salário por produção e trabalha em sobrejornada tem direito à percepção apenas do adicional de horas extras, exceto no caso do empregado cortador de cana, a quem é devido o pagamento das horas extras e do adicional respectivo".

[2] GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Curso de direito do trabalho. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2022. p. 922-924.

Autores

  • é livre-docente e doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, especialista e pós-doutorado em Direito pela Universidade de Sevilla, membro pesquisador do IBDSCJ, membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho e do Instituto Brasileiro de Direito Processual, professor universitário e advogado.

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