Opinião

Direito de mulheres gestantes: carta à Julia Matos

Autor

  • Luís Guilherme Vieira

    é advogado criminal cofundador e conselheiro dos Conselhos Deliberativos do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e da Sociedade dos Advogados Criminais do Rio de Janeiro (Sacerj) membro da Comissão Especial de Defesa da Liberdade de Expressão do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e do Grupo Prerrogativas ex-membro titular do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça e ex-secretário-geral do Instituto dos Advogados Brasileiros onde presidiu — como também na OAB-RJ — a Comissão Permanente de Defesa do Estado Democrático de Direito.

16 de setembro de 2022, 6h06

O ato praticado, em 22 de agosto, pelo desembargador Elci Simões de Oliveira, em sessão realizada por videoconferência na 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Amazonas, na presença de inanimados autoridades e servidores públicos, somados aos aterrorizados olhares de sem-número de cidadãos que assistiam ao mal-aventurado espetáculo que abateu, com uma só porretada, todas advogadas brasileiras, na pessoa da advogada Malu Borges Nunes, bem como sua filha de seis meses, escancarou parcela das incontáveis crueldades por que passam mulheres vítima do machismo estrutural até ao presente marcado a ferro no Brasil.

Malu, advogando em regime home office, com sua bebezinha no colo, depois de lhe ter sido negado pedido de preferência para realizar antecipadamente sua sustentação oral, porque necessitava dar de mamar, não teve alternativa senão, no curso da audiência, amamentá-la. "Se tem gente com fome, dá de comer". O aleitamento não é enxergado nos vídeos que viralizaram na imprensa e nas redes sociais, mas ouvem-se murmúrios da criança, os quais, pelo acalento, soam como música aos ouvidos, desvelando que a vida seguirá, mesmo que se tenha de peitar todos.     

A cantiga não ecoou bem à audição de Elci, que interrompeu o julgamento para "repreender" [1] Malu. Segundo ele, "barulhos", como os de "cachorro latindo" e "criança chorando" atrapalham a sessão judicial, rematando — "educadamente (sic) [2]" — seu sermão: "[eu] Queria pedir para doutora Malu que… quebra o silêncio das sessões do tribunal interferências outras na sala em que a senhora está. Isso prejudica os colegas. Não deixe que outras interferências, barulhos, venham atrapalhar nossa sessão porque é uma sessão no tribunal, não pode ter cachorro latindo, criança chorando. Se a senhora tiver uma criança, coloque no lugar adequado. São barulhos que tiram a nossa concentração. A senhora precisa ver a ética da advogada [3]". Com astúcia, Malu faceia: "[ok], excelência, agradeço a compreensão [4]".

Pingo é letra! E letra de alto teor poético, que, musicada, nutre o espírito dos participantes das modas de viola quando doce entardecer. A pessoa humana é grandiosa e nunca admitirá seja sua alma petrificada, mesmo em momentos demasiadamente sofridos. Com o retorno das atividades forenses, durante o tempo que as incertezas da pandemia da Covid-19 causariam sobre a humanidade, quando todas as sessões judiciais eram remotas, na de 3 de junho de 2020 do Supremo Tribunal Federal, Laura, netinha de 3 anos do ministro Marco Aurélio irrompeu seu escritório na hora em que relatava processo, para pegar chocolates. Ele, com bom humor, versou: é "o lado humano do juiz" [5]. O julgamento prosseguiu, e nenhum ministro se atabalhoou com a participação de Laura. A vida há de ser doce.     

Com efeito, Malu Borges Nunes, posteriormente [6], admitiu ter se sentido ofendida "como mulher, como mãe, como advogada". "Ele [desembargador] questionou a minha ética profissional em relação a eu estar, não sei, com ela no colo, ou amamentando, ou de estar no home office e ela estar perto de mim. Eu fiquei muito mal, chorei bastante depois. Eu me viro aqui nos 30 para dar conta de tudo que eu tenho que fazer. Dar conta de bebê, casa, trabalho [7]". "A minha realidade é a de milhões de brasileiras  trabalhadora e mãe. Obviamente que se eu tivesse uma opção melhor para deixar a minha filha (que acabou de completar seis meses e depende de mim para tudo) enquanto eu trabalho eu aderiria, pois a maior prejudicada sou eu, que trabalho os três turnos para dar conta da quantidade de tarefas [8]".

Situação semelhante, mas com consequência diametralmente oposta, experimentou um advogado e iluminou a desigualdade de gênero existentes nas quebradas. Divorciado, Felipe Cavallazzi tinha uma audiência no Superior Tribunal de Justiça em 19 de agosto  dia de ficar com Lorenzo, seu filho de um ano e dez meses. O ministro Mauro Campbell, ao despachar petição pedindo preferência por exatamente o advogado estar acompanhado de seu bebê, antes de colher os votos de seus pares  favoráveis , recitou o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Constituição e o deferiu, exaltando o prazer de ter entre eles Lorenzo, o qual não passou despercebido pelo ministro Herman Benjamin, que anotou: "Lorenzo, na hora que o nome dele foi mencionado, ele olhou para o pai, entendendo tudo e tá acompanhando tudo [9]". Cavallazzi, além do mais, foi elogiado por ser um pai cuidadoso.

A atestar que a vida nem sempre é de nosso Deus, o desembargador Elci Simões de Oliveira, com sua atitude, estapeou o direito de advogadas grávidas e lactantes terem preferência nas audiências. Tal garantia foi parida a fórceps a partir de fato tolerado pela advogada Daniela Teixeira. Grávida de 29 semanas, ela reivindicou, ao ministro Joaquim Barbosa, que presidia o CNJ, preferência para fazer sustentação oral. Negado o pleito, ela passou quase todo o dia aguardando a vez de se manifestar. Daniela "ganhou a causa, mas saiu de lá para logo a seguir ser internada com contrações. Resultado: a filha prematura, com pouco mais de um quilo, e 61 angustiantes dias dentro de uma UTI [10]".

"Considerando que o stress prolongado certamente contribui para o evento, [Daniela] teve a iniciativa de debater a questão. Na qualidade de diretora da OAB-DF, reuniu, em fins de 2015, mais de 400 advogadas. Juntas, elas elaboraram um projeto [de lei] [11]", transformado na Lei 13.362/2016, batizada Lei Julia Matos, em homenagem à sua filha. 

Em face do sucedido com Malu, o ministro Luiz Fux, ex-presidente do CNJ, determinou a expedição de ofícios aos tribunais reforçando o teor da Recomendação 128/2022, a qual aconselha a adoção do "Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero". Ora, para quê? Tudo está na Lei Julia Matos e deve ser cumprido. Ponto final!

Além disso, Fux instou a Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ. O desembargador Elci Simões de Oliveira pode 1) ser processado administrativamente pela violação à prerrogativa da advogada; 2) ser processado criminalmente, pelo mesmo fato, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, a depender, exclusivamente, de iniciativa do procurador-geral da República, caso enxergue idêntica violação; 3) ser processado em ação civil pública, também a depender de o Ministério Público Federal entender ser o ato ímprobo, por atentar contra os princípios que regem a administração pública. Pode, ademais, 4) ser processado por Malu e outros, dentre estes e com especial relevo, sua neném, em ação por dano moral e materiais, pelo público e vexatório constrangimento a que foi submetida quando se encontrava advogando. Enfim, a espada de Dâmocles pesa sobre sua cabeça.

Malu não clamara favor ao tribunal. Ancorava-se em direitos e garantias constitucionais de sua filha, os quais se projetam nas prerrogativas das advogadas em situações em que tais, por intermédio da Lei Julia Matos. A Constituição estabelece, dentre suas bases fundantes, os princípios da dignidade da pessoa humana e os do melhor interesse da criança. Portanto, indo de encontro ao muito mal desembuchado por Elci, o melhor interesse da criança era situar-se, parafraseando Milton Nascimento, com sua alma encharcada de amor, onde sua mãe estava; ela se encontrava, pois, no lugar apropriado.     

Malu Borges Nunes e sua filha foram humilhadas pelo desembargador, ao vivo e em cores, em auditório do Judiciário, em clássica demonstração de como a democracia brasileira é misógina, no verbo de Gabriela Shizue Soares de Araújo [12]. Os poderes públicos seguem intoxicados pelo machismo estrutural, reflexo de uma sociedade patriarcal. O Código Civil de 1916 considerava as mulheres casadas relativamente incapazes. Para trabalhar, ajuizar ações e viajar precisavam de autorização dos maridos, por exemplo. Tais vedações foram abolidas pelo Estatuto das Mulheres Casadas (Lei 4.121/1962). Assim que o Código Eleitoral concedeu o direito de voto às mulheres, em 1932, condicionou-o ao aval dos esposos, restrição derrubada dois anos depois.

Mulheres só começaram a deixar de ser mal vistas após a separação com a Lei do Divórcio. Até então, o casamento era indissolúvel  dos 133 Estados integrantes da ONU na época, somente cinco não permitiam o divórcio [13]. Cônjuges infelizes poderiam se desquitar, encerrando a sociedade conjugal, com a separação de corpos e de bens, mas sem extinção do vínculo matrimonial. Desquitadas não podiam se casar. Unidas a alguém, agiam sem respaldo legal. Se da união houvesse filhos, estes eram havidos ilegítimos, como se gerados em relacionamentos extraconjugais.  

Decorridos os anos, as mulheres, nas lutas democráticas, foram conquistando direitos. Em 1985, a cidade de São Paulo passou a reservar, no transporte público, assentos a gestantes e portadoras de bebês ou crianças de colo (Lei 10.012/1985). Diversas cidades e estados vieram no rumo. Em âmbito federal, a Lei 10.048/2000 estabeleceu o atendimento prioritário às gestantes, lactantes e mulheres com crianças de colo. Para minimizar assédios, os metrôs e trens de municípios como Rio de Janeiro e Brasília têm vagões exclusivos para mulheres. É horroroso ser preciso segregar os gêneros para prevenir abusos. Homens têm de aprender a respeitar as mulheres; não aprendendo, tais práticas continuarão a ser imperativas, na contramão de um país que se pretende democrático de direito.

Muito há de ser (re)construído sobre a questão de gênero. O Supremo Tribunal Federal só em 2000 liberou o uso de trajes que não fossem saias ou vestidos para mulheres. A ministra Ellen Gracie, empossada naquele ano, "não quis inovar nesse quesito. Ela restringia o uso da calça comprida às segundas, terças e sextas, dias em que não há sessão plenária [14]", porque optou seguir "a tradição, em respeito ao ‘código’ segundo o qual a elegância feminina estaria relacionada ao uso de saia ou vestido. Ainda me apego a códigos démodés [15]". Sete anos mais tarde, a ministra Cármen Lúcia participou de sessão trajando calça comprida e paletó, beneficiando as mulheres. Anteriormente, seguranças costumavam barrar a entrada delas quando usavam calça modelo corsário, mesmo que acompanhada de blazer. Comprimento, modelo dos trajes e até o penteado dos cabelos também eram seus alvos [16].

A vigilância e a conscientização da sociedade para a questão de gênero têm de ser ininterruptas. Em 2019, a juíza e então diretora do fórum de Iguaba Grande (RJ), Maíra Valéria Veiga de Oliveira, determinou que vigilantes medissem, com uma régua, as saias das advogadas. Com vestimenta cinco centímetros acima do joelho não ingressavam [17]. Certo estava Paulo Freire: "Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor".

Da neném manauara para a jovem brasiliense Julia Matos: obrigada por desbravar os caminhos para que pudesse atravessá-los com maior suavidade. Eles jamais serão cerrados. Os pequerruchos, não só os das mamães advogadas, em futuro breve terão o direito, como poetizou Dolores Duran, à "paz de criança dormindo" (e murmurando e mamando!). 


[1] Repreensão pública é pena strictu sensu. Pena equivalente à advertência pública que só a OAB/AM tem competência para aplicar, porém, esta já firmou não ter havido qualquer infração ético-disciplinar por parte da advogada.

[2] Desembargador do AM repreende advogada por estar com bebê em sessão online, e vídeo repercute nas redes sociais. Disponível em: https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2022/08/23/desembargador-do-am-repreende-advogada-por-estar-com-bebe-em-sessao-online-e-video-repercute-nas-redes-sociais.ghtml. Acessado em: 6/9/2022, destacou-se.

[3] Idem, destacou-se.

[4] Idem.

[5] Neta de Marco Aurélio aparece em sessão virtual do STF durante o voto do ministro. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/06/03/neta-de-marco-aurelio-mello-aparece-em-sessao-virtual-do-stf-durante-voto-do-ministro.ghtml. Acessado em 10/8/2022.

[6] "Me senti primeiro ofendida como mulher, como mãe", diz advogada de SC repreendida por desembargador após bebê chorar em sessão. Disponível em: https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2022/08/24/advogada-de-sc-repreendida-por-desembargador-apos-bebe-chorar-em-sessao-disse-se-sentiu-ofendida-como-mulher-e-como-mae.ghtml. Acessado em: 6/9/2022.

[7] "Me senti primeiro ofendida como mulher, como mãe", diz advogada de SC repreendida por desembargador após bebê chorar em sessão. Disponível em: https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2022/08/24/advogada-de-sc-repreendida-por-desembargador-apos-bebe-chorar-em-sessao-disse-se-sentiu-ofendida-como-mulher-e-como-mae.ghtml. Acessado em: 6/9/2022.

[8] SC: Advogada é repreendida por desembargador por estar com filha de seis meses em sessão plenária. Disponível em: https://www.opovo.com.br/noticias/brasil/2022/08/24/sc-advogada-e-repreendida-por-desembargador-por-estar-com-filha-de-6-meses-em-sessao-plenaria.html. Acessado em: 8/9/2022.
 

[9] "Não desperdiço a oportunidade de estarmos juntos", diz advogado de SC que levou filho para sessão do STJ. Disponível em: https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2022/08/22/nao-desperdico-a-oportunidade-de-estarmos-juntos-diz-advogado-de-sc-que-levou-filho-para-sessao-do-stj.ghtml. Acessado em: 6/9/2022.

[10] Nova lei altera CPC e Estatuto da Advocacia. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/249628/nova-lei-altera-cpc-e-estatuto-da-advocacia. Acessado em: 6/9/2022.

[12] Mulheres na política brasileira: desafios rumo à democracia paritária participativa. Arraes Editora, 2022.

[13] Divórcio demorou a chegar no Brasil. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/arquivo-s/divorcio-demorou-a-chegar-no-brasil. Acessado em: 9/9/2022.

[14] Ministra do STF inova ao usar calça comprida em sessão plenária do órgão. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u90359.shtml. Acessado em: 11/9/2022.

[15] Idem.

[16] Cármen Lúcia rompe tradição e usa calça comprida no STF. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2007-mar-15/carmen_lucia_usa_calca_comprida_sessao_stf. Acessado em: 9/9/2022.

[17] Juíza determina uso de régua para medir saias de advogadas em fórum no RJ; OAB faz denúncia à Corregedoria. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/regiao-dos-lagos/noticia/2019/10/25/juiza-e-denunciada-por-oba-por-determinar-uso-de-regua-para-medir-saias-de-advogadas-em-forum-no-rj.ghtml. Acessado em: 9/9/2022.

Autores

  • é advogado criminal, cofundador e conselheiro dos Conselho Deliberativo do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e da Sociedade dos Advogados Criminais do Rio de Janeiro (Sacerj), membro da Comissão Especial de Defesa da Liberdade de Expressão do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, ex-membro titular do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça e ex-secretário-geral do Instituto dos Advogados Brasileiros, onde presidiu — como também na Ordem dos Advogados do Brasil, seccional do Rio de Janeiro — a Comissão Permanente de Defesa do Estado Democrático de Direito.

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