Tribuna da Defensoria

O exercício arrojado da jurisdição no julgamento da ADPF 279/SP

Autor

  • Renata Martins de Souza

    é defensora pública do estado de Minas doutora em Direito Público e mestre em Teoria do Direito pela PUC-MG e professora de graduação do curso de Direito.

13 de setembro de 2022, 8h00

Durante o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 279/SP, que questionava a validade de normas que instituíram a Assistência Judiciária municipal de Diadema (SP), ocorrido em novembro de 2021, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) discutiram sobre a influência da moral no Direito.

Na ocasião, a ministra Cármen Lúcia, relatora da ação, votou no sentido de validar a norma que institui o serviço de assistência judiciária do município. Para ela, os estados e a União têm a obrigação de constituir a Defensoria Pública. No entanto, os municípios podem complementar esse serviço. "Se a universidade tem a autonomia para montar seu serviço de assistência judiciária em seu departamento, o município não tem?", indagou. A maioria dos ministros seguiu o entendimento da relatora, com a premissa de que o modelo amplia o acesso à justiça.

O ministro Nunes Marques, por sua vez, abriu divergência, por considerar que a norma questionada seria inconstitucional, por implicar lesão ao pacto federativo, manifestando preocupação com o fato de ela possibilitar a criação de uma verdadeira Defensoria Pública municipal, algo que não é permitido pela Constituição (a qual delega tal competência apenas aos estados e municípios — artigo 24, inciso XIII, da CF/88); acrescentando, de forma sensata, que a solução para o problema seria a ampliação do atendimento jurídico aos mais pobres por meio do ingresso de mais defensores públicos na carreira e não a autorização para que municípios passem a prestar tais serviços, na medida em que, por determinação constitucional, qualquer assistência judiciária gratuita prestada pelo Estado deve se dar por meio da Defensoria. Ao final, combateu o argumento esposado pelo ministro Barroso no sentido de que o Direito não é só o que emana da fonte competente, ponderando que "argumentos morais influem, mas não podem modificar o Direito", o qual não pode se tornar refém de opiniões morais.

A respeito do assunto, além de tecer elogios ao profícuo voto do ministro Nunes Marques, o qual se ocupou de explorar fartamente as regras constitucionais atinentes à matéria, salientou Casas Maia (2021) que a não municipalização dos entes autônomos do sistema de Justiça (Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública) sempre foi proposital por garantir e viabilizar: o distanciamento necessário à imparcialidade judicial e impessoalidade ministerial e defensorial; a concentração das políticas públicas municipais em áreas sensíveis e necessidades primárias; e a obstaculização à manipulação de demandas contra o município por eventual distorção informacional-jurídica aos vulneráveis e outras técnicas.

Como sabido, o Direito apresenta inúmeras concepções conceituais, as quais tendem a influenciar na sua interpretação e aplicação.

Quanto a isso, incumbe registrar que no julgamento acima mencionado, o ministro Luís Roberto Barroso, adepto do Pós-Positivismo, fez questão de destacar é um intérprete que, invariavelmente, faz uma leitura moral da Constituição; trazendo a lume conceitos das principais escolas jurídicas.

A primeira teoria do Direito a ser concebida foi o Jusnaturalismo. Durante a Idade Média, prevalecia a ideia da divindade como um ser onipotente, onisciente e onipresente. Aristóteles chamou de justo por natureza, em oposição ao justo legal, criado pelos homens. Posteriormente, no seio das revoluções liberais burgueses do século XVII e XVIII, o Direito natural passa a retirar seu fundamento da razão humana universal.

Em linhas gerais, tal corrente do pensamento sustenta que para além da legislação posta pelo soberano, haveria um Direito Ideal, formado por princípios imutáveis, aplicáveis a todos os povos.

A excessiva generalidade da tese proposta pelos jusnaturalistas fez surgir o positivismo, o qual argumenta que a única ordem jurídica existente é aquela conduzida pelo Estado, desvinculando o Direito de qualquer conformação moral.

O positivismo caracteriza o universo jurídico dos países desenvolvidos desde meados do século XIX. Consolidando o Estado Liberal, tal prática jurídica, regulatória dos interesses burgueses, acaba por confundir a norma jurídica com o texto da norma no Código legal.

Sob a égide do positivismo, a aplicação do Direito fica reduzida a uma operação que deduz da norma jurídica a solução aplicável aos fatos que nela se encaixam, sendo a norma legal e a realidade tidas como elementos contrapostos, uma vez que o cumprimento do Direito deriva de uma aplicação meramente dedutiva da letra da lei.

No contexto pautado pela busca da neutralidade axiológica, bem peculiar à sociedade liberal, o Direito é idealmente considerado uma legalidade pré-dada e obrigatória. O problema não tem seu lugar reconhecido no papel constitutivo da normatividade, encontrando-se toda a juridicidade na legalidade do Estado.

Nesse cenário, a estatização do fenômeno jurídico e o ideal de completude geram a falsa impressão de que o Direito se apropria da totalidade dos fatos, problemas e situações da vida que pudessem se apresentar.

A Escola da Exegese, que floresceu no início do século XIX, pregando o culto ao texto da lei, é apontada como fator que contribui decisivamente para a gênese do positivismo jurídico e a hegemonia da legalidade estatal.

Nesse contexto, é que sustenta Montesquieu que os juízes "são apenas a boca que pronunciam as palavras da lei"; seres inanimados que não lhe podem moderar nem a força, nem o vigor. Ou seja, exercem os magistrados atividade de natureza meramente declaratória, já que adstritos à estrita concretização da vontade do legislador (restrição a qualquer consideração valorativa).

Na trilha das concepções de feição formalista, sustenta Kelsen que a ciência possui função meramente descritiva, não competindo ao cientista avaliar o ordenamento jurídico, mas tão somente descrevê-lo, ficando indiferente à análise do conteúdo das normas jurídicas (justas ou injustas).

O dogma da supremacia do Direito legislado e o racionalismo empregado pelo positivismo, contudo, começaram a ceder quando da decadência do Estado Liberal, uma vez que se percebeu que o mero formalismo não mais atendia aos interesses do próprio Estado. Com a ascensão do Estado social e com a busca pelo reconhecimento, juridicidade e efetivação dos direitos sociais o Legislativo perde seu papel de proeminência, passando o Executivo a exercê-lo.

Com efeito, a perda de vigor nas últimas décadas do predomínio das fontes estatais do Direito e o abandono do culto à lei sustentado pelo positivismo são algumas das transformações do Direito contemporâneo.

De fato, destaca a doutrina que a superação da perspectiva de que as normas constitucionais comportavam meras diretivas políticas, endereçadas, sobretudo, ao legislador, ganhou impulso no Segundo Pós-Guerra, com a perda de prestígio do positivismo e com a ascensão dos princípios constitucionais, concebidos como uma reserva de justiça, na relação entre o poder público e os indivíduos, especialmente as minorias.

Em suma, o que se observa é que, em meio a tais transformações, o positivismo passou a se revelar incapaz de enfrentar as dificuldades decisionais da atualidade, sobressaindo o pós-positivismo como movimento de reação ao legalismo (o qual afastou o Direito da Justiça).

Nessa linha de defesa, comumente se argumenta que o juiz, na atualidade, não mais pode ser visto como mero aplicador das leis, ideia promovida pelo positivismo jurídico, que pregava o reducionismo do Direito à dogmática da legalidade. Hoje, reconhece-se sua capacidade de copartícipe no processo de criação do Direito, por meio de suas decisões construídas argumentativamente.

A doutrina contemporânea, pois, reconhece que o referido sistema, positivista legalista, apresentava-se falho, tendo em vista que, além de avalorativo, também deixava de considerar as peculiaridades de cada caso.

Diante de tais constatações, a crença de que haveria uma identidade entre o texto da norma e a norma jurídica passa a ser questionada, uma vez que hoje não mais se acredita na onipotência do legislador, proclamada pela doutrina da Escola da Exegese — ou seja, não mais se interpreta o Direito como uma obra artificial. Reconhece-se que a lei não nasce pronta, completa e perfeita.

Em decorrência de tal movimento, já no início do século 20, afirma Cruz (2004, p. 135-137), o modelo decisional de subsunção da norma e consequente defesa da jurisdição como ato meramente cognitivo não mais se coadunavam com as crescentes antinomias e lacunas presentes no Direito.

À vista disso, o pós-positivismo substitui o pensamento sistemático do positivismo pelo pensamento problemático, que entende que o conhecimento jurídico se faz com base em casos concretos, recusando, por completo, o estatuto descritivo das ciências naturais e estabelecendo a distinção entre o plano de justificação e o plano de aplicação das normas jurídicas.

Desde então, ao contrário do que supunha o positivismo, reconhece-se que o exame semântico do texto da lei, por si só, não é mais suficiente, sendo indispensável que o operador do Direito passe a cruzar todas as possibilidades semânticas do texto com os elementos fáticos do caso sob julgamento. Dessa forma, invocando o pensamento jurídico de Habermas e Günther, destaca Cruz (2004, p. 225) que existe uma profunda divisão nas atividades legislativa e judiciária, na medida em que se reconhece que "as normas válidas são aplicáveis somente prima facie". Assim, enquanto na atividade legislativa há forte predominância de seu caráter justificativo, marcado pela generalidade, abstração e universalidade em relação à produção de leis válidas erga omnes, na atividade jurisdicional, a sensibilidade do juiz para as especificidades do caso concreto que tem diante de si é fundamental, portanto, para que se possa encontrar a norma adequada para produzir justiça naquela situação específica.

Com isso, é possível afirmar que, hoje, os magistrados não apenas declaram ou reproduzem um direito preexistente, senão contribuem efetivamente para sua configuração, por meio da análise da adequabilidade da norma.

Por oportuno, note-se que as principais críticas ao positivismo ganharam destaque por meio da guinada na Filosofia do Direito, a partir da segunda metade do século 20. Sob essa ótica, o moralismo jurídico, pregado por Dworkin e Alexy, por exemplo, se afasta do positivismo, ao postular a coincidência entre o Direito e a moral. A importância dos princípios constitucionais é exaltada, concedendo ao intérprete ampla liberdade até mesmo para, se necessário, corrigir ou mesmo recusar o Direito posto. Tudo isso, conforme Ramos (2015, p. 323), "em nome de uma pretensa ordem objetiva de valores imposta pela razão (Alexy) ou pela vivência histórica de uma comunidade (Dworkin)".

Defensor do ativismo judicial, Dworkin (2000, p. 215-216) defende a capacidade dos tribunais de fixar e estabelecer o sentido de conceitos abstratos.

Assim, sustenta-se que o reconhecimento da eficácia normativa dos princípios os quais são qualitativamente a viga mestra do sistema (o esteio da legitimidade constitucional) , acarreta a invalidação das objeções do positivismo formalista, bem como a acolhida do plano constitucional de considerações axiológicas, de valor fundamental na concretização dos direitos, através de uma operação valorativa, fática e material (BONAVIDES, 2007, p. 582).

Argumenta-se, em síntese, que o contexto atual traz a necessidade de desconsiderar a concepção de interpretação como uma atividade acrítica de subsunção do fato à norma. A aplicação do Direito, dessa forma, passa a demandar uma tarefa interpretativa e também argumentativa. Com isso, o papel da interpretação já não estaria mais limitado a uma dogmática exegética, desvinculada do contexto de sua aplicação.

Resta, assim, assentada a premissa de que não há mais como conceber o Direito e a realidade como categorias abstratas opostas, sendo necessário enfatizar o peso do elemento argumentativo nos processos decisórios (buscando conferir legitimidade à ordem democrática).

A despeito das contribuições de Dworkin, não se deve desconsiderar o receio manifestado por alguns estudiosos no que toca à adoção dos princípios e da discricionariedade nas decisões judiciais, o que pode implicar nefasta jurisdição constitucional agressiva, que abre espaço para os subjetivismos incontroláveis e até mesmo para decisionismos judiciais, tal como alertou o ministro Nunes Marques durante o julgamento da ADPF nº 279/SP, a qual, como pondera Casas Maia (2021) encontra-se "lastreada em princípios (em especial a 'liberdade de escolha' e a ampliação do 'acesso à justiça') e pouco calcada em regras constitucionais, esquecidas até mesmo as normas de transição quanto ao sistema jurídico pré-1988".

Na visão de Ramos (2015), no Brasil há uma tendência teórica que desponta como elemento de impulsão ao ativismo. Na sua percepção, os neoconstitucionalistas brasileiros são antipositivistas (e não pós-positivistas), que desprezam as regras do Direito posto, exagerando na valorização dos princípios constitucionais quando da interpretação, deles extraindo desdobramentos que competiria ao legislador infraconstitucional disciplinar.

Seguindo a mesma trilha, assevera Mário Lúcio Quintão Soares (2014, p. 129) que em um contexto de déficit normativo, surge a tentação do ativismo judicial, com o discurso de que o Supremo Tribunal Federal deve suprir as lacunas da legislação, para que prevaleça o espírito do texto constitucional, em busca da harmonia e equilíbrio federativo e da concretização dos direitos fundamentais.

Atento a tal realidade, este breve ensaio manifesta preocupação com o fato de que decisões baseadas em ponderações carregadas de subjetivismos possam vir a subverter a própria lógica democrática, expondo a Constituição a uma abertura que não contribui para as funções de certeza e segurança jurídica que lhe são inerentes.

 


Referências

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 20ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

CASAS MAIA, Maurilio. ADPF 279: a justiça não foi municipalizada. Jota, 10/11/21. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/adpf-279-justica-nao-foi-municipalizada-10112021. Acesso em: 23 ago. 2022.

CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Habermas, ação estratégica e controle de constitucionalidade brasileiro. In: SAMPAIO, José Adércio Leite (Org.). Quinze anos de Constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 219-280.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

SOARES, Mário Lúcio Quintão. Ativismo judicial e oráculo de Delfos. In: BARACHO JUNIOR, José Alfredo de Oliveira; COSTA, Luciana da Silva (Orgs.). In: CONGRESSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL, 5., Belo Horizonte, 2014. Belo Horizonte: Editora Lutador, 2014. v. 1. p. 127-159.

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