Opinião

Acordo de não persecução penal e necessidade de confissão em sede policial

Autores

  • Giovanna Zanata Barbosa

    é advogada pós-graduada em Processo Penal Constitucional pela Universidade de Coimbra mestre em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo (USP) e sócia do escritório Zanata & Calbucci Advogados.

  • Rodrigo Calbucci

    é advogado especialista em Direito e Processo Penal pela Universidade Presbiteriana Mackenzie mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Humanidades Direitos e Outras Legitimidades da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do escritório Zanata & Calbucci Advogados.

13 de setembro de 2022, 6h34

O acordo de não persecução penal foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro por meio da Lei Federal n° 13.964/2019, conhecida como "pacote anticrime". Tal instituto está previsto no novo artigo 28-A do Código de Processo Penal e possibilita que o representante do Ministério Público apresente cláusulas para cumprimento do acordo ao imputado, em vez de apresentar denúncia em face dele.

Em outras palavras, não se tratando de caso de arquivamento, nem de crime que envolva violência e grave ameaça, além de o delito possuir pena mínima inferior a quatro anos, é possível a apresentação de acordo de não persecução penal.

Trata-se, portanto, de uma proposta de justiça penal negociada e, como tal, um instituto despenalizador inserido no ordenamento jurídico brasileiro para desafogar o Poder Judiciário.

Já nesse momento inicial é importante destacar que, apesar de a legislação afirmar que o Ministério Público "poderá" propor o acordo, na verdade, estando presentes os requisitos objetivos e subjetivos, o órgão ministerial deverá apresentar a proposta. Não se trata de mera faculdade ministerial, mas sim de um poder-dever do Ministério Público.

Ademais, o acordo de não persecução penal, diferentemente dos outros institutos despenalizadores existentes no ordenamento jurídico brasileiro, impõe, como requisito objetivo, a confissão do crime, por parte do imputado.

Muito se discutiu, desde a entrada em vigência da Lei Federal n° 13.964/2019, se, para a proposição do acordo, o imputado deveria ter confessado o crime em sede policial. Entendemos que não.

Primeiramente, porque o Código de Processo Penal não impõe o momento da realização da confissão, limitando-se a assegurar que ela é pressuposto do acordo de não persecução penal, podendo, portanto, sem nenhum óbice processual, ser operada quando da realização da audiência para a proposição e celebração do acordo.

Ainda que assim não fosse, exigir a realização da confissão em sede de inquérito policial, apenas como o escopo de, a posteriori, o imputado ter direito ao suposto benefício do acordo de não persecução penal, é um despautério.

Afinal, "tendo em vista que, naquela etapa ainda preliminar, é impossível saber se efetivamente haverá a proposta do benefício" [1], impor tal ato em sede preliminar de investigação poderia gerar "instrumento de pressão para que os investigados confessassem práticas criminosas visando a futura proposta de acordo" [2].

Portanto, reiteramos que, para a apresentação de proposta de acordo de não persecução penal, não é necessário o imputado ter confessado o crime quando interrogado pela Autoridade Policial. Aliás, este é o posicionamento de Sandro Carvalho Lobato de Carvalho:

"O fato de o investigado não confessar a prática ilícita no inquérito policial não inviabiliza, de plano, o acordo de não persecução penal. Como dito acima, há necessidade de confissão formal do investigado. E essa confissão deve ocorrer na presença do Ministério Público e do defensor do investigado, na audiência extrajudicial designada pelo Ministério Público para a celebração do acordo de não persecução penal [3]."

Para o mesmo sentido apontam os dizeres de Rodrigo Leite Ferreira Cabral: "o fato de o investigado não ter confessado na fase investigatória, obviamente, não quer significar o descabimento do acordo de não persecução" [4].

A fim de balizar a questão, o tema foi discutido em agosto de 2020, na I Jornada de Direito e Processo Penal, quando se estabeleceu o Enunciado n° 13, que assim pondera:

"A inexistência de confissão do investigado antes da formação da opinio delicti do Ministério Público não pode ser interpretada como desinteresse em entabular eventual acordo de não persecução penal [5]."

Tal tema, no entanto, apenas recentemente foi discutido pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça, que, em agosto de 2022, consagrou a tese da desnecessidade da existência de confissão em sede policial.

E, em 18 de agosto de 2022, a Sexta Turma do Tribunal da Cidadania, ao avaliar a questão definiu que:

"HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. PODER-DEVER DO MINISTÉRIO PÚBLICO. AUSÊNCIA DE CONFISSÃO NO INQUÉRITO POLICIAL. NÃO IMPEDIMENTO. REMESSA DOS AUTOS À PROCURADORIA-GERAL DE JUSTIÇA. INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 28-A, §14, DO CPP. NECESSIDADE. ORDEM CONCEDIDA. (…) 2. A ausência de confissão, como requisito objetivo, ao menos em tese, pode ser aferida pelo Juiz de direito para negar a remessa dos autos à PGJ nos termos do artigo 28, §14, do CPP. Todavia, ao exigir a existência de confissão formal e circunstanciada do crime, o novel artigo 28-A do CPP não impõe que tal ato ocorra necessariamente no inquérito, sobretudo quando não consta que o acusado  o qual estava desacompanhado de defesa técnica e ficou em silêncio ao ser interrogado perante a autoridade policial  haja sido informado sobre a possibilidade de celebrar a avença com o Parquet caso admitisse a prática da conduta apurada. (…) 5. A exigência de que a confissão ocorra no inquérito para que o Ministério Público ofereça o acordo de não persecução penal traz, ainda, alguns inconvenientes que evidenciam a impossibilidade de se obrigar que ela aconteça necessariamente naquele momento. Deveras, além de, na enorme maioria dos casos, o investigado ser ouvido pela autoridade policial sem a presença de defesa técnica e sem que tenha conhecimento sobre a existência do benefício legal, não há como ele saber, já naquela oportunidade, se o representante do Ministério Público efetivamente oferecerá a proposta de ANPP ao receber o inquérito relatado. Isso poderia levar a uma autoincriminação antecipada realizada apenas com base na esperança de ser agraciado com o acordo, o qual poderá não ser oferecido pela ausência, por exemplo, de requisitos subjetivos a serem avaliados pelo membro do Parquet. (…) 7. Ordem concedida, para anular a decisão que recusou a remessa dos autos à Procuradoria Geral de Justiça  bem como todos os atos processuais a ela posteriores  e determinar que os autos sejam remetidos à instância revisora do Ministério Público nos termos do artigo 28-A, §14, do CPP e a tramitação do processo fique suspensa até a apreciação da matéria pela referida instituição [6]."

 Diante de todo o exposto, entendemos que, apesar de a confissão ser um requisito objetivo para a proposição do acordo de não persecução penal, ela não precisa, necessariamente, ocorrer em sede policial, podendo, portanto, ocorrer na audiência de proposição e celebração do acordo de não persecução penal.


[1] DAGUER, Beatriz, SOARES JÚNIOR, Rafael. O momento da confissão e o acordo de não persecução penal, disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-set-05/opiniao-momentoconfissao-acordo-nao-persecucaopenal#:~:text=A%20confiss%C3%A3o%20n%C3%A3o%20pode%20ser,pe, acesso em agosto/2022.

[2] Ibidem.

[3] CARVALHO, Sandro Carvalho Lobato de. Algumas questões sobre a confissão no Acordo de Não Persecução Penal, Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro nº 78, out./dez. 2020, p. 247-261.

[4]  CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Manual do Acordo de Não Persecução Penal à luz da Lei 13.963/2019 (Pacote Anticrime). Salvador: JusPodivm, 2020, p. 112.

[5] Jornada de Direito e Processo Penal (1.: 2020: Brasília, DF) I Jornada de Direito e Processo Penal: enunciados aprovados.  Brasília: Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários, 2020. 14 p.

[6] Superior Tribunal de Justiça. Habeas corpus n° 657165 / RJ. Relator: ministro Rogério Schietti Cruz. Sexta Turma. Publicado em 18 de agosto de 2022 (grifos nossos).

Autores

  • é advogada, pós-graduada em Processo Penal Constitucional pela Universidade de Coimbra, mestre em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo (USP) e sócia do escritório Zanata & Calbucci Advogados.

  • é advogado, especialista em Direito e Processo Penal pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do escritório Zanata & Calbucci Advogados.

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