Opinião

Da responsabilidade da contratada pelos atos de seus funcionários

Autores

  • Flávio Garcia Cabral

    é pós-doutorado em Direito pela PUC-PR doutor em Direito Administrativo pela PUC-SP professor e procurador da Fazenda Nacional.

  • Dafne Reichel Cabral

    é mestre em Direitos Fundamentais pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) especialista em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e auditora de Controle Externo do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso do Sul (TCE/MS).

12 de setembro de 2022, 18h27

A utilização de contratações de serviços pela administração pública é uma realidade inegável. Cada vez mais há a "terceirização" de atividades, sendo a gestão pública operada essencialmente por contratos administrativos firmados com particulares.

Acerca da temática, um ponto que gera dúvida diz respeito à responsabilidade da pessoa jurídica contratada, em relação ao poder público, em razão dos atos praticados por seus funcionários.

Observa-se que o artigo 70 da Lei nº 8.666/93, cuja redação é reproduzida essencialmente no artigo 120 da Lei nº 14.133/2021, trata de responsabilidade da contratada. Conforme sua redação, "o contratado é responsável pelos danos causados diretamente à Administração ou a terceiros, decorrentes de sua culpa ou dolo na execução do contrato, não excluindo ou reduzindo essa responsabilidade a fiscalização ou o acompanhamento pelo órgão interessado".

Insta apontar que, apesar de se estar a tratar de uma relação jurídica mantida entre a administração pública e um particular, a responsabilidade da contratada pelos danos causados ocorrerá nos moldes do regramento de responsabilidade do direito privado. Nesse sentido, inclusive, é como se manifesta Marçal Justen Filho, ao comentar o artigo 120 da Lei nº 14.133/2021: "De regra, a responsabilidade civil do particular perante a Administração sujeita-se aos princípios de direito privado. Em qualquer caso, não basta o dano para surgir o dever de indenizar. A conduta do sujeito deve caracterizar-se como culposa, segundo os princípios de Direito Civil, inclusive no tocante a eventuais presunções de culpa" [1].

No mesmo sentido são as palavras de Fabrízio Thomázio Guimarães da Silva: "Em uma análise preliminar, o regime de responsabilização esposado pela Lei 8.666/93 ao particular impõe a aplicação dos princípios de direito privado" [2].

Nota-se, portanto, que é na legislação privatística, notadamente no Código Civil, que se deve averiguar qual o regramento da responsabilidade civil nos casos em que o dano foi gerado por um funcionário da empresa contratada. Nessas hipóteses, os artigos que regulamentam a questão são o 932, inciso III, e 933, ambos do Código Civil, in verbis:

"Artigo 932. São também responsáveis pela reparação civil: (…)
III – o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele;

Artigo 933. As pessoas indicadas nos incisos I a V do artigo antecedente, ainda que não haja culpa de sua parte, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos."

Pela leitura dos dispositivos citados, observa-se que o empregador é responsável, em termos de reparação civil, pelos atos praticados pelos seus funcionários, pelo exercício do trabalho ou em razão dele.

Veja que em um primeiro momento, à luz do revogado Código Civil de 1.916, no qual se exigia a prova da concorrência para o dano por culpa, ou negligência do empregador (artigos 1.521, III e 1523), o Supremo Tribunal Federal chegou a fixar que haveria uma presunção de culpa do empregador pelos atos de seus funcionários. Nesse sentido é o teor da Súmula nº 341: "É PRESUMIDA A CULPA DO PATRÃO OU COMITENTE PELO ATO CULPOSO DO EMPREGADO OU PREPOSTO".

O atual Código Civil vigente não mais prevê a exigência de comprovação de culpa do empregador nesses casos. Conforme visto, consagrou-se no atual Codex civil a responsabilidade objetiva [3] do empregador (independe de culpa ou dolo) pelos atos de seus empregados. Nesse sentido, Maria Helena Diniz reforça que a responsabilidade será objetiva, por não existir presunção juris tantum de culpa [4].

Nessa mesma toada, evidenciando a ampliação das hipóteses de responsabilidade objetiva e sua aplicação aos contratos administrativos, Jessé Torres Pereira Júnior [5] tece importante análise sobre o advento do Código Civil de 2002:

"O NCC é um conjunto normativo com sabor principiológico, porque todas as suas normas partem desses três valores fundamentais e a eles conduzem: eticidade (a probidade e a boa-fé); socialidade (a função social do contrato e o respeito aos usos e costumes do local da execução do negócio jurídico); operabilidade (a responsabilidade, que substitui a obrigação principal inadimplida, tende a ser sempre objetiva, de modo a, tanto quanto possível, não deixar dano injusto sem reparação, pela busca, não raro infrutífera, de culpas e dolos do agir humano, quando toda a sociedade deve ser solidária na reparação). As normas do NCC incentivam a possibilidade e o dever de aplicação dessa trilogia a cada passo das relações jurídicas. Dela, consubstanciada notadamente nos artigos 113, 187, 371, 421 a 423, 931 a 933, se irradiarão conseqüências fundamentais sobre a elaboração, a execução, a interpretação, o controle e a avaliação dos resulta- dos dos contratos celebrados pela Administração Pública."

A imputação da responsabilidade objetiva nesses casos traz consigo uma presunção legal de culpa in elegendo ou in vigilando por parte da empresa contratada, que selecionou mal seus funcionários ou não fiscalizou corretamente as suas atividades.

O que poderia, porventura, afastar a responsabilidade do empregador seria a quebra do nexo de causalidade, demonstrada pelo fato de a conduta do seu funcionário não ter nenhuma pertinência com o exercício do trabalho. Nesse sentido, ainda sob a perspectiva da referida Súmula nº 341, a Suprema Corte decidiu que:

"(…) o acórdão que nega a responsabilidade civil do empregador, por homicídio praticado por seu empregado (vigilante), por razões pessoais e estranhas ao serviço, não entra em manifesta divergência com a Súmula 341 do STF. Nesse sentido, a 1ª Turma, no julgamento do RE 106.664/RJ, relator ministro Sydney Sanches, decidiu: 'EMENTA  Súmula 341 do STF. Não entra em manifesta divergência com a súmula 341 do STF acórdão que nega responsabilidade civil da empregadora, por ato doloso (homicídio) praticado por seu empregado (vigia), por razões estritamente pessoais, estranhas ao serviço, contra vizinho do estabelecimento'. (RE 601.811, relator ministro Ricardo Lewandowski, dec. monocrática, j. 30-9-2009, DJE 195 de 16-10-2009)."

No entanto, calha apontar que o legislador, ao estruturar a responsabilidade civil nos termos dos artigos 932 e 933 do Código Civil, trouxe uma relação bastante ampla entre o exercício da função e o dano. Sobre a questão, são esclarecedoras as lições de Sérgio Cavalieri Filho [6]:

"O nosso Direito não exige rigorosa relação funcional entre o dano e a atividade do empregado. Diferentemente de outros países, basta que o dano tenha sido causado em razão do trabalho importando, isso, dizer que o empregador responde pelo ato do empregado ainda que não guarde com suas atribuições mais do que simples relação incidental, local ou cronológica. Na realidade, a fórmula do nosso Código Civil é muito ampla e bastante severa para o patrão. Bastará que a função tenha oferecido ao preposto a oportunidade para a prática do ato ilícito; que a função tenha lhe proporcionado a ocasião para a prática do ato danoso. E isso ocorrerá quando, na ausência da função, não teria havido a oportunidade para que o dano acontecesse."

Pelo exposto, apura-se que para que a empresa/empregador venha a ser responsabilizada faz-se necessário: a) qualidade de empregado, serviçal ou preposto, do causador do dano (prova de que o dano foi causado por preposto); b) conduta culposa (dolo ou culpa stricto sensu) do preposto; c) que o ato lesivo tenha sido praticado no exercício da função que lhe competia, ou em razão dela [7] (nos moldes bastante amplos acima mencionados).

Retomando precisamente para os casos de responsabilidade da empresa contratada pelo Poder Público, apura-se que jurisprudência dos tribunais confirma que a empresa contratada pela administração responde pelos danos gerados pelos seus empregados. Nesse sentido, vide recente Acórdão prolatado pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (AC: 00351023020054013400) [8].

Assim, quando caracterizado o dolo/culpa do funcionário da empresa contratada, é possível imputar a responsabilidade de ressarcimento ao erário àquela pessoa jurídica contratada pelos danos causados por seu empregado, mesmo que não esteja caracterizada a culpa ou dolo nas ações da empresa, uma vez que sua responsabilidade ocorre na modalidade objetivamos termos do artigo 933 do Código Civil.

Por derradeiro, cabível apontar que atribuir a responsabilidade ao empregador (empresa contratada), não exclui eventual ação de regresso a ser por ela adotada em relação ao empregado gerador do dano, conforme preceitua o artigo 934 do Código Civil [9].

 


[1] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas: Lei 14.133/2021. São Paulo: Thomson Reuters, 2022, p.1335.

[2] SILVA, Fabrízio Thomázio Guimarães da. Controvérsias na responsabilização civil contratual do Estado. Revista da PGE-MS, ed.15, 2020, p.37.

[3] "RESPONSABILIDADE CIVIL DO EMPREGADOR POR DANO CAUSADO POR SEU EMPREGADO. ARTIGOS 932, INCISO III, E 933 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. (…) A premissa fática dos autos é a seguinte: um dos colegas, durante uma movimentação, esbarrou no fio que ligava a resistência à tomada, vindo a derrubar a cafeteira e derramar parte da água aquecida sobre o reclamante. Nos casos em que o evento danoso sofrido pelo empregado provier da conduta dolosa ou culposa de um outro empregado ou preposto do seu empregador, por ocasião do trabalho ou em razão dele, este responderá independentemente de culpa pela consequente reparação, nos termos dos artigos 932, inciso III, e 933 do CC/2002, mormente considerando a atual tendência da responsabilidade civil de focar o dano sofrido pela vítima em solidariedade a ela, e não mais a visão punitiva tradicional de focar o dano causado pelo réu, de modo que, cada vez mais, a responsabilidade objetiva ganha espaço no nosso ordenamento jurídico. Acrescente-se que, nos termos do artigo 2º da CLT, é do empregador os riscos da atividade econômica, de modo que não deve o seu empregado, vítima de acidente de trabalho cometido por outro empregado, suportar as consequências do evento danoso, mas sim à empresa, a quem cabe dirigir, orientar, organizar e fiscalizar a prestação pessoal de serviços". (E-ED-RR-91600-40.2009.5.02.0444, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, relator ministro Jose Roberto Freire Pimenta, DEJT 04/12/2020).

[4] DINIZ, Maria Helena. Código Civil anotado. 14.ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p.632.

[5] PEREIRA JÚNIOR, Jessé Torres. Notas acerca das Repercussões do Novo Código Civil sobre os Contratos Administrativos. Revista da EMERJ, v. 7, n. 27, 2004, p.40.

[6] CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 9.ed. São Paulo: Atlas, 2010, p.203.

[7] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Responsabilidade Civil. 3.ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p.111.

[8] ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL. DANOS MATERIAIS. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. IRREGULARIDADES PRATICADAS PELO EMPREGADO DA EMPRESA CONTRATADA PELA CAIXA ECONÔMICA FEDERAL. RESPONSABILIDADE IMPUTADA À CONTRATANTE. DESVIO DE FUNÇÃO DO EMPREGADO. NÃO COMPROVAÇÃO. NEGLIGÊNCIA DA CONTRATANTE. DESCABIMENTO. ARTIGO 70 DA LEI 8.666/93. ARTIGO 932, III, C/C ARTIGO 933 DO CC/2002. CULPA IN ELIGENDO. PEDIDO IMPROCEDENTE. SENTENÇA MANTIDA. 1. Nos termos do artigo 70 da Lei nº 8.666/93, O contratado é responsável pelos danos causados diretamente à Administração ou a terceiros, decorrentes de sua culpa ou dolo na execução do contrato, não excluindo ou reduzindo essa responsabilidade a fiscalização ou o acompanhamento pelo órgão interessado. 2. O empregador ou comitente é responsável pela reparação civil por atos de seus empregados, serviçais ou prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir ou em razão dele, ainda que não haja culpa de sua parte (artigo 932, inciso III c/c artigo 933, caput, do CC/2002). 3. Hipótese em que não se verifica nenhuma prova de desvio de função do empregado da empresa contratada, mormente porque seu acesso ao sistema da CEF era limitado ao desempenho de suas atribuições como terceirizado, visando ao cadastramento para liberação automática dos créditos de FGTS, que, registre-se, não se confunde com as atribuições típicas dos bancários, inexistindo, na espécie, qualquer ilegalidade na prestação do serviço ou desvirtuamento do contrato. 4. As irregularidades constatadas foram praticadas não em razão de suposta negligência da CEF, que em tese teria oportunizado o indevido acesso do empregado ao sistema informatizado, mas em função da conduta dolosa do terceirizado, que, utilizando-se de contas de acesso de empregados da CEF seja por ter descoberto a senha, seja em razão da momentânea ausência do empregado público em sua estação de trabalho , transferiu fraudulentamente valores vinculados à conta de FGTS para sua conta pessoal ou de pessoas de seu círculo de amizades. 5. Ainda que se considere que o terceirizado tenha se utilizado da confiança que lhe fora depositada pela CEF para a prática delituosa, ainda assim não há como se afastar a responsabilidade da Worktime Assessoria Empresarial Ltda. pelos danos causados por seu empregado, tendo em vista a culpa in eligendo da empresa contratada. Nesse sentido: Apelação Cível 0035101-45.2005.4.01.3400, Quinta Turma, Julgamento 09/10/2019, à unanimidade, e-DJF1 25/10/2019. 6. Demonstrada a ocorrência de dano para a contratante decorrente de conduta irregular na execução do serviço prestado pela contratada, deve ser reconhecida a obrigação de reparação, mediante o ressarcimento dos valores desviados. 7. Apelação da empresa contratada a que se nega provimento. 8. Honorários recursais incabíveis. Sentença proferida na vigência do CPC/73. (TRF-1 – AC: 00351023020054013400, relator: DESEMBARGADORA FEDERAL DANIELE MARANHÃO COSTA, Data de Julgamento: 24/02/2021, QUINTA TURMA, Data de Publicação: PJe 05/03/2021 PAG PJe 05/03/2021 PAG)

[9] Artigo 934. Aquele que ressarcir o dano causado por outrem pode reaver o que houver pago daquele por quem pagou, salvo se o causador do dano for descendente seu, absoluta ou relativamente incapaz.

Autores

  • é pós-doutorado em Direito pela PUCPR, doutor em Direito Administrativo pela PUC-SP, professor e procurador da Fazenda Nacional.

  • é mestre em Direitos Fundamentais pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), especialista em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e auditora de Controle Externo do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso do Sul (TCE/MS).

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