Construtor de soluções

Conheça o advogado mais completo da história do Brasil

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12 de setembro de 2022, 9h33

Ele foi professor de Direito, conselheiro federal da OAB, procurador-geral de Justiça, procurador-geral de Estado, representante do Brasil na Corte Internacional de Arbitragem, presidente da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Mas seu maior “cargo” mesmo é o de advogado. Segundo Márcio Thomaz Bastos, Arnoldo Wald é o mais completo advogado que o Brasil já conheceu. Impossível negar.

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Ele é autor de algumas das principais teses jurídicas que viabilizaram planos econômicos, como o Real — que derrubou a inflação estratosférica brasileira —, e das obras que modernizaram o país. Foi o criador do mecanismo que instituiu no país a correção monetária, o leasing, a alienação fiduciária em garantia e algumas das melhores ferramentas do Código Comercial. Pioneiro de soluções técnicas, aperfeiçoou o Estatuto da Advocacia e do Ministério Público.

Ao completar 90 anos de idade e 70 de advocacia — computados os dois anos de estágio, quando já produzia ideias geniais, como a da “escala móvel” (primeiro nome da correção monetária), Arnoldo Wald, na entrevista que se segue, mostra porque merece o qualificativo de Thomaz Bastos — que é compartilhado pelo ministro Gilmar Mendes, ministro com quem Wald escreveu quatro livros.

Grandes nomes, como Rui Barbosa, Pontes de Miranda, Miguel Reale ou Ives Gandra Martins, compareceram, em seus respectivos campos com contribuições monumentais para o Direito e para a Advocacia. Mas nenhum deles atuou em frentes tão diversas, e de forma tão profícua, como Wald.

A produção acadêmica é capítulo à parte. Nenhum exemplar, dos 19 títulos que assina como autor ou dos 20 que coordenou e é coautor, pode ser encontrado nos sebos, sempre atulhados de livros de Direito.

Leia os principais trechos da entrevista: 

ConJur — Qual foi o seu primeiro caso de arbitragem?
Arnoldo Wald — O primeiro caso internacional que eu peguei foi no fim da década de 1970, um caso em que a Petrobrás, que tinha uma subsidiária, que se chamava Interbrás, tinha contratado com empresas da Líbia a construção de poços de água. Porque a Líbia tinha petróleo e não tinha água, então era preciso fazer a construção de poços de água e isso dependia de projetos que as empresas líbias não entregaram. E a Petrobrás tinha um prazo para cumprir e, se não cumprisse, tinha uma multa muito grande, que deveria ser paga aos líbios e que se chamava “garantia à primeira demanda”. Quer dizer, é uma obrigação que você não podia discutir, tinha que pagar a multa, e essa garantia era dada pelo Banco do Brasil.

ConJur — Na Líbia, um poço devia ter um quilômetro profundidade…
Arnoldo Wald — E os dados que os líbios deram não permitiam fazer esses poços. E acontece que, na ocasião, uma antiga aluna minha era a pessoa que tratava dessas questões na Petrobrás e me disse: “Nós não tivemos arbitragens aqui na Petrobrás anteriormente, o senhor pode nos ajudar? Porque estamos muito preocupados, o Banco do Brasil vai ter que pagar uma fortuna e nós sabemos que com o tal Kadafi [Muammar Kadafi (1942-2011)], o dinheiro que vai para lá não volta”.

Eu consegui uma liminar no Rio de Janeiro, sem prejuízo da continuação da arbitragem, para não pagar. E aí o pessoal ficou muito satisfeito; uma semana depois me liga o consultor jurídico do Banco do Brasil, lá de Brasília e me diz: “O presidente gostaria que nós conversássemos consigo, o senhor pode vir almoçar conosco?” e fui a Brasília almoçar.

E me disseram: “Ficamos muito satisfeitos de não ter que pagar essa multa astronômica e indevida, e sabíamos que não haveria devolução, qualquer que fosse a decisão da arbitragem. Mas, no plano internacional, o Banco do Brasil ainda não se firmou, então ele não cumpria uma obrigação à primeira demanda, que é um negócio meio chato”. Eu digo: “Bom, então, vocês podem pagar, não tem problema, ou pagam ou conseguem a decisão judicial”. Disseram: “Não, não queremos pagar, não. Nós queríamos ver se você conseguia uma decisão que não fosse do juiz de primeira instância do Brasil, porque a Petrobrás conseguir uma decisão brasileira em um caso internacional pode parecer meio suspeito”. Eu disse: “Vou ver o que posso fazer”.

Voltei para o Rio e aí me lembrei, vi a documentação, e quem tinha dado a garantia era Agência de Milano, a filial do Banco do Brasil de Milano. Eu digo: “Bom, vou ligar para o nosso colega italiano e saber se a gente consegue alguma coisa na Itália”. Ele me diz: “Não, garanta a primeira demanda, é um negócio que não tem jeito…” Mas acrescentou: “É contra a Líbia? Contra a Líbia é fácil”.

Uma semana depois, eu liguei para o consultor jurídico do Banco do Brasil e disse: “Consegui uma decisão italiana confirmando a decisão brasileira, e agora é do Tribunal de Milão. Vocês não precisam se preocupar”. Bom, não precisavam se preocupar que a arbitragem estava indo muito bem, mas levou quarenta anos.

ConJur — Quarenta anos?
Arnoldo Wald — Quarenta anos, porque os líbios também não tinham documento e nós queríamos os documentos e as plantas, e na perícia, anularam uma decisão. Quarenta anos depois, ainda não estava resolvido, quando o Lula foi visitar o Kadafi e aí o Kadafi o recebeu muito bem. O Lula disse: “Tem um negócio aqui que vocês têm que desistir, porque vocês não tem razão nenhuma”. “Ah, esse negócio, não sabemos nem o que é”, chamou assessores: “Desiste desse pedido de multa aí”.

Pois é, aí eu liguei depois para o meu colega italiano e ele disse: “Mas já acabou? Quarenta anos.” Ele disse: “É, mas eu esperava que isso ficasse para o meu filho, para continuar discutindo isso mais vinte anos”. Bom, só para mostrar a você o clima em que estava…

ConJur — A lei é de 1996, mas ela foi implementada quantos anos depois?
Arnoldo Wald — A lei surgiu de um modo até sui generis, porque a Câmara de Comércio Internacional (CCI) criou a arbitragem moderna, em 1927, ou seja, há quase um século. A CCI, a Corte Internacional de Arbitragem, começou a tratar de arbitragens nacionais e internacionais, e criou-se aqui no Brasil uma filial da CCI. Uma agência que foi no Rio de Janeiro, na Confederação Nacional do Comércio. Quem inicialmente tratava disso era o professor Theophilo de Azeredo Santos, que morreu há algum tempo, e o já aposentado ministro Ernane Galvêas, que tinha sido ministro da Fazenda. E tocaram isso durante trinta, quarenta anos, e organizavam congressos.

ConJur — O senhor foi representante?
Arnoldo Wald — Eu fui representante durante mais de dez anos, depois do que eu achei que já tinha cumprido a missão, porque era uma reunião por mês. É muito gostoso ir para Paris, mas se você tiver que arcar com as suas despesas e trabalhar muito, e não ter muito tempo para ficar… Quando aceitei, eu pensei: “Bom, depois eu tiro uma semana de férias”, mas não consegui. Funcionou, gostei, fiz amizades e fiz relações, foi muito bom. Em 1990, um advogado pernambucano que se chama Petrônio Muniz encontrou umas documentações da CCI do Brasil, desses congressos, e disse: “Por que a gente não faz isso no Brasil?”. Aí reuniram-se o professor Carlos Alberto Carmona, a Selma Lemes e o Pedro Batista Martins, e fizeram um projeto de lei. Aí disseram ao Petrônio: “O que nós fazemos com esse negócio?” E ele disse: “Eu tenho um vizinho lá no Recife que se chama Marco Maciel, vou levar para ver se ele consegue dar andamento”. E o Marco Maciel conseguiu dar andamento. Depois, eu acho que foi o Fernando Henrique, que era o presidente na ocasião, que sancionou, então entrou em vigor em 1996.

ConJur — O jornal Valor Econômico publicou um levantamento da professora Selma Lemes que mostra que chegamos aos mil casos de arbitragem. Não é pouco, mil para um país do tamanho do Brasil?
Arnoldo Wald — É, mas a arbitragem não é para a conta do padeiro que você não pagou, não é para o aluguel que você não pagou do mês passado… É na realidade para questões de certa dimensão econômica e social. E mil casos para o Brasil, que até 1995 tinha um ou dois casos por ano, é um progresso real e um progresso realizado com bons juristas, com bons advogados, com toda uma formação que se fez. A Selma teve um grande papel nisso, o Carlos Alberto Carmona também. A arbitragem é rápida, mas não é tão rápida quanto gostaríamos que fosse, tem na média de dois a quatro anos.

ConJur — O senhor acredita que a existência de cláusulas arbitrais pode atrapalhar ou ajudar esse processo de recuperação judicial?
Arnoldo Wald — Eu acho que pode ajudar, porque algumas vezes não se encontram soluções, e para o Judiciário fica mais difícil do que para os árbitros. Até a imagem é uma coisa que pode se usar, um árbitro de arbitragem de emergência, ou arbitragem expedita para não atrapalhar a vida e arbitragens coletivas. Na Oi chegamos a usar plataforma para poder resolver muitos casos, que resolvemos. Alguns são mais difíceis de resolver, não vou citar casos, mas tem situações em que uma arbitragem facilita. E até como uma indução ao acordo: as partes dizem: “Não vou fazer acordo nenhum”, mas aí começa a arbitragem, e concluem que é melhor fazer um acordo.

ConJur — Como foi desenvolvido o conceito da correção monetária?
Arnoldo Wald — A correção monetária surgiu quando o brasileiro começou a sentir os efeitos da inflação, que durante muito tempo foi ou dominada ou escondida, e não estava no conhecimento público. Quando me formei, discutia-se muito a cláusula ouro, porque em alguns contratos se dizia: “Vamos ter que pagar o que equivale a um quilo de ouro”, por exemplo. Isso existia, mas a lei proibia em certos casos, autorizava em outros e quando fui fazer a minha tese de doutorado, conversei com o professor Santiago Dantas, que era meu professor, e de quem eu era assistente, e ele me disse: “Eu tenho até alguns pareceres recentes sobre cláusula ouro, é uma coisa que você podia estudar”. Aí eu recebi uma bolsa para a França e lá se discutia muito, já naquela época, uma inflação maior que eles tiveram depois da Primeira Guerra Mundial. Depois da Segunda Guerra Mundial as situações lá mudaram completamente. E discutiam o que se podia fazer; e aí eu decidi fazer uma tese sobre a inflação, que eu chamei de “Cláusula de Escala Móvel” e publiquei em 1955.

Eu era professor em uma faculdade do Rio para a qual nós íamos de automóvel e eu ia com alguns desembargadores, e um deles me disse: “A sua tese é interessante, mas muito teórica”. E quinze dias depois ele me liga e diz: “Não imagina o que aconteceu hoje, me apareceu lá um caso de aluguel com cláusula de escala móvel e eu dei uma aula para os desembargadores, e eles ficaram atônitos! Me perguntaram como é que eu sabia”. E aí a coisa começou a entrar nos costumes, nos contratos de locação. Depois, como a gente discutiu muito, em desapropriação, porque eu ainda hoje estou julgando no STJ um caso de desapropriação de um terreno na Paulista que foi desapropriado pelo preço de 50 anos atrás.

ConJur — O senhor trabalhou na implementação do mecanismo de correção monetária?
Arnoldo Wald — Trabalhei. Anos depois, o Franco Montoro, na época do Jango, em 1963, me chamou para estudar o problema da Previdência. O INSS da época — havia cinco ou seis institutos. Cada área tinha um instituto, e esses institutos e a Caixa Econômica davam empréstimos por trinta anos com prestações fixas. Então, inicialmente, vamos dizer, em 1930, você conseguia construir uma casa, trinta anos depois conseguia com o mesmo valor pagar um cafezinho. Basta dizer que eu comprei uma casa de um financiado que faltavam vinte anos, quando chegaram as últimas prestações, um boy que trabalhava comigo, o rapaz que pagava pra mim as prestações disse: “Professor, o preço do ônibus são dez prestações. Então é melhor o senhor adiantar as dez prestações…”. E aí nós vinculamos as prestações dos institutos ao salário mínimo, que foi o primeiro passo. Na mesma época, houve o Projeto Bilac Pinto para a escala móvel dos salários.

ConJur — O Roberto Campos participou também da implementação?
Arnoldo Wald — Participou, porque aí depois que caiu o Jango, veio o Castelo Branco. E, com Roberto Campos, ministro na ocasião, com Otávio Gouveia de Bulhões, fizeram a correção monetária quase generalizada. Depois ele realizou-se em todos os pleitos judiciais, foi uma luta para aumentar o leque de aplicação. E depois começaram a haver restrições, só aplicam uma vez por ano, também para não ser um multiplicador da inflação.

ConJur — Como é que o senhor compara o Brasil dessa época com o Brasil atual?
Arnoldo Wald — Eu acho que o Brasil progrediu muito em muitas coisas, mas não progrediu em outras em que deveria ter progredido. Acho que o ensino não melhorou muito, nós proletarizamos o ensino e eu acho que é bom, mas eu algumas vezes digo que deveríamos ter democratizado. O que quer dizer no fundo popularizar, facilitar, dar bolsas de estudo, mas não fazer com que o sujeito, para ter um financiamento, se habilite em uma faculdade e fique lá pagando, sem ir à faculdade e sem controle nenhum. O Fies em um certo momento andou meio atrapalhado. E também acho que se deveria ter dado mais ênfase ao ensino profissional e menos aos títulos de doutor. Eu sou doutor, várias vezes, e fiz questão de ser doutor, mas eu acho que multiplicar doutores só pelo título não adianta nada.

ConJur — O senhor participou de todos os grandes projetos, das grandes obras do Brasil nesses… São quantos anos de carreira, professor?
Arnoldo Wald — Sessenta e oito. Se eu falar em setenta, eu não vou mentir, porque eu vou calcular dois anos de estagiário. Mas, do ponto de vista formado mesmo, eu me formei no dia 16 de dezembro de 1964.

ConJur — O senhor atuou em algum momento como jornalista, professor?
Arnoldo Wald — Fui diretor do Correio da Manhã.

ConJur — Diretor do Correio da Manhã? Fazia reportagem, entrevista?
Arnoldo Wald — Não, não. Eu escrevia artigos, mas cheguei a fazer editorial.

ConJur — Como foi o seu caminho no jornalismo?
Arnoldo Wald — Eu estudava em um liceu francês e houve um almoço em homenagem a um professor. Neste almoço, quando acabaram os discursos, houve um coquetel e o diretor do meu colégio em uma certa hora me chamou e disse: “Quero lhe apresentar um dos homens que mandam no Brasil” — e me apresentou ao Dr. Paulo Bittencourt, que era o dono do Correio da Manhã. O diretor disse: “O Arnoldo me fez um trabalho recente sobre literatura, que eu acho que é de interesse para a nova mocidade conhecer”. E o Paulo disse: “Me interessa muito, espere aí um minutinho”, aí chamou o Álvaro Lins, que era o diretor do suplemento literário do Correio da Manhã da época. Disse: “Álvaro, tem aqui um professor que está me apresentando um jovem estudante que está entrando na universidade, escreveu um artigo interessante. Será que você pode publicar?”. Aí ele disse que sim. Aos 16 anos, escrevi meu primeiro artigo para o Correio da Manhã. Nos trinta anos seguintes, mantivemos contato e escrevi numerosos outros artigos, até que numa outra gestão Osvaldo Peralva me convidou para assumir a Diretoria Jurídica do jornal.

Me puseram como diretor do Correio da Manhã na fase mais difícil, em que o jornal estava quase falindo, porque o governo cortava as verbas. Aí inventei O Correio Econômico, que é um antepassado remoto do Valor.

Continua na parte 2

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