Opinião

Inadmissibilidade do recurso contra absolvição fundada em quesito genérico

Autor

  • Juliano Callegari Melchiori

    é advogado criminalista com atuação especializada nos ramos do Direito Penal Empresarial e do Direito Penal Clássico pós-graduando em Processo Penal pelo Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu (IDPEE) da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra em parceria com o IBCCRIM e sócio do escritório Prado e Callegari Advogados.

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11 de setembro de 2022, 13h17

Está em tramitação no Supremo Tribunal Federal recurso (ARE nº 1.225.185) que versa sobre a possibilidade de cassação de decisão absolutória do Tribunal do Júri com base em quesito genérico de absolvição (em alguns casos, também conhecido por clemência).

Embora o recurso tenha sido retirado da pauta de julgamento do dia 25 de agosto de 2022, a discussão sobre o tema ainda se mostra relevante, especialmente porque eventual provimento ao pedido recursal poderá interferir gravemente na sistemática do Tribunal do Júri e no próprio postulado do direito ao recurso no processo criminal.

O caso é o seguinte: homem acusado da prática de homicídio tentado foi absolvido pelo conselho de sentença do Tribunal do Júri da Comarca de Juiz de Fora (MG), com fundamento no quesito genérico do artigo 483, §2º do CPP. Irresignado, o Ministério Público de Minas Gerais interpôs recurso de apelação, apontando que a decisão do conselho de sentença deveria ser cassada por se mostrar manifestamente contrária às provas dos autos. O TJ-MG negou provimento ao recurso de apelação da acusação, que, por sua vez, interpôs recurso extraordinário com o mesmo objetivo, que acabou sendo inadmitido na origem. Por fim, contra a decisão que inadmitiu o RE, o MP-MG interpôs o ARE nº 1.225.185, objeto de análise deste artigo.

Analisaremos neste breve artigo se há compatibilidade entre a absolvição por quesito genérico e o recurso de apelação contra decisão manifestamente contrária à prova dos autos, do artigo 593, III, "d" do CPP. Para isso, analisaremos a sistemática das decisões do conselho de sentença no Tribunal do Júri e a sistemática dos recursos no processo criminal, especialmente nos processos criminais do Tribunal Popular.

Primeiramente, devemos observar que a sistemática das decisões do conselho de sentença no Tribunal do Júri se difere da sistemática das decisões tomadas pelo juiz togado no Processo Criminal comum. Se no Processo Criminal ordinário prevalece o sistema do livre convencimento motivado, no Tribunal do Júri prevalece o sistema da íntima convicção dos jurados. Isso significa, portanto, que no Tribunal Popular, os julgadores (jurados) não precisam motivar a sua decisão, uma vez que "o sistema da íntima convicção garante ao juiz leigo a liberdade de proferir seu julgamento seguindo apenas a sua consciência e seu senso de justiça" (Jardim, 2015, p. 14), podendo, assim, absolver um acusado mesmo que reconheça a materialidade e a autoria do fato. Em outras palavras, é possível afirmar que no sistema da íntima convicção, próprio do Tribunal do Júri, é possível que a decisão dos jurados seja estruturada pela "valoração de elementos externos aos autos e ao Direito, possibilitando, quiçá, uma absolvição por piedade ou por clemência"(Cavalcante Segundo; Santiago, 2015, p. 150).

Mas, se por um lado é permitido aos jurados decidir pela absolvição de um acusado apenas por sua consciência e senso de justiça, ou seja, por simples piedade ou clemência, sem qualquer vinculação ao que fora afirmado ou provado no processo (Marrey; Franco; Stocco, 1994), é certo que para a condenação a mesma regra não se aplica.

Acontece que, pela sistemática do artigo 483 do CPP, primeiro questiona-se aos jurados se há prova da materialidade do fato (inciso I) e se há comprovação da autoria ou participação do acusado nos fatos imputados (inciso II). Somente nos casos em que a maioria dos jurados tiverem votado afirmativamente pela materialidade e autoria/participação do acusado nos fatos, que será apresentada a pergunta "o jurado absolve o acusado?" do artigo 483, §2º.

Por outro lado, caso a maioria dos jurados chegue à conclusão de que não há provas da materialidade dos fatos e da autoria ou participação do acusado nos fatos imputados, nem mesmo serão apresentados novos quesitos, devendo, neste caso, ser encerrada a votação com a absolvição do réu.

Logo, é de se notar que, se o legislador fez opção de apresentar o quesito genérico de absolvição do acusado somente para os casos em que houver provas da materialidade e da autoria dos fatos, é porque sua intenção era de ofertar aos jurados a possibilidade de decidir pela absolvição do acusado mesmo contra a prova dos autos.

Por esta razão, de se concluir que há incompatibilidade entre o Recurso de Apelação contra decisão manifestamente contrária à prova dos autos (artigo 593, III, d) e a decisão absolutória com base em quesito genérico de absolvição, justamente porque a decisão baseada em quesito genérico de absolvição não se vincula à qualquer prova dos autos.

Além disso, é preciso também recordar que o poder constituinte conferiu o direito de sigilo das votações dos jurados (artigo 5º, XXXVIII, da CF), de modo que, dessa maneira, jamais seria possível saber se a decisão absolutória dos jurados foi fundada em provas (com o acolhimento de alguma das teses defensivas) ou se foi fundada razões em íntimas, subjetivas, como questões humanitárias ou por simples clemência (Jardim, 2015).

Nesse sentido, segundo Forti (2009, p. 178) "Se a constituição assegurou o sigilo das votações, excepcionando a regra da motivação das decisões judiciais, é porque quis permitir que os jurados tivessem a liberdade de julgar contra as provas". Nesse caso, há manifesta irrecorribilidade da decisão proferida pelo conselho de sentença, não havendo possibilidade de nova discussão sobre a matéria em eventual recurso, sob pena de se incorrer em violação à soberania dos vereditos.

Portanto, é certo que a pretensão do MP-MG não comporta acolhimento. Em verdade, considerando a insindicabilidade da decisão proferida pelo conselho de sentença fundada em quesito genérico de absolvição, é certo que o recurso interposto pelo parquet nem mesmo deve ser admitido, por ausência do pressuposto objetivo de cabimento da hipótese recursal.

Ocorre que, para que um recurso seja examinado pela instância superior (no caso, o STF), é necessário que, antes, este recurso preencha os requisitos ou pressupostos de admissibilidade. Caso não estiverem presentes todos os pressupostos de admissibilidade, o recurso nem mesmo deverá ser admitido pelo tribunal ad quem (Grego Filho, 2012).

No caso da pretensão recursal contra decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos, a parte processual recorrente deverá, nas razões de seu recurso, expor os fatos e provas que apontem a manifesta contrariedade da decisão às provas dos autos, o que, como visto, não se mostra possível na absolvição por quesito genérico.

Pelo exposto, vimos que a decisão absolutória do conselho de sentença fundada em quesito genérico é irrecorrível e incompatível com o Recurso de Apelação do artigo 593, III, d, do CPP, seja porque o legislador conferiu aos jurados a opção de absolver acusado mesmo contra a prova dos autos, seja pela impossibilidade de se verificar a motivação da decisão absolutória. Por esse motivo, há evidente irrecorribilidade da decisão absolutória, de modo que eventual recurso contrário a tal decisão não deve ser admitido, por falta de preenchimento dos pressupostos recursais.

Fontes
CAVALCANTE SEGUNDO, Antonio de Holanda; SANTIAGO, Nestor Eduardo Arararuna. Íntima Convicção dos jurados e o recurso de apelação com base na contrariedade à prova dos autos: necessidade de compatibilidade com um processo de base garantista. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Vol. 116, ano 23. p. 149/172, São Paulo: Ed. RT, set-out. 2015.

FORTI, Iorio Siqueira D’Alessandri. O Tribunal do Júri como garantia fundamental, e não como mera regra de competência: uma proposta de reinterpretação do artigo 5º, XXXVIII, da Constituição da República. Revista Eletrônica de Direito Processual — REDP. Ano 3. Vol. 3. p. 178. Rio de Janeiro, jan-jun. 2009. Semestral.

GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal. 9. Ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 188.

JARDIM, Eliete Costa Silva. Tribunal do Júri – Absolvição Fundada no Quesito Genérico: ausência de vinculação à prova dos autos e irrecorribilidade. Revista da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. v. 18, ed. 67, janeiro/fevereiro 2015. P. 13/31. Disponível em: https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista67/revista67_13.pdf. Acesso em 28 de agosto de 2022.

MARREY, Adriano; FRANCO, Alberto Silva; STOCCO, Rui. Teoria e prática do júri. 5. Ed. São Paulo: Ed. RT, 1994, p. 262.

Autores

  • é advogado criminalista com atuação especializada nos ramos do Direito Penal Empresarial e Direito Penal Clássico, pós-graduando em Processo Penal pelo Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu (IDPEE) da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra em parceria com o IBCCRIM, membro da Comissão de Direito Penal e Processo Penal da OAB - Subseção Santana, membro do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), membro associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) e sócio do escritório Prado e Callegari Advogados.

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