Diário de Classe

Qual o conceito de Direito dos nossos candidatos?

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10 de setembro de 2022, 8h00

O presidencialismo de coalizão — vai dizer Sérgio Abranches [1], o "desvelador" desta forma de manejo do poder político no Brasil — não começou com a Constituição de 1988. Ganhou, na verdade, uma nova roupagem com a redemocratização do país há mais de trinta anos, mas seus contornos iniciais estão no período conhecido como Segunda República. Surgia, na verdade, como uma espécie de solução de compromisso para emprestar governabilidade a uma nação que, finalmente, incorporava as massas na política e pluralizava as mais variadas pretensões num bom punhado de partidos.

O papel da versão original, muito por isso, passava pelos limites da representação. De um lado, o presidente eleito congregava, como ponto de unidade, as aspirações de um país imenso, continental em todos os sentidos, e carente de tudo. Diante da percepção de sua própria "modernidade tardia" — na sintética e feliz expressão comumente usada por Lenio Streck [2] —, o Brasil atravessava suas (necessárias) ambições na mixagem entre a unidade nacional — em tese, endereçada ao presidente — e o paroquialismo que retratava um amplo catálogo de anseios — também, em tese, bem reunido no parlamento e nas suas múltiplas faces ideológicas.

Essa espécie de diálogo entre poderes, projetado sobre um tabuleiro com tantas e distintas cosmovisões sobre o que era necessário ao país em meados do século XX, não era — como o leitor mais atento já anteviu — nem bom nem mau. Era o que tinha de ser: como associar maioria parlamentar à sigla do presidente eleito nunca passou dos limites teóricos dessa possibilidade, a governabilidade passava — como de resto ainda passa — pela formação de blocos de apoio. Por um lado, o desenho político da Segunda República impedia que o presidente aprovasse reformas ou distribuísse recursos sem a chancela legislativa. Por outro, associava a estabilidade institucional do governo ao apoio continuado de uma coalizão parlamentar em torno do Executivo.

Evidentemente, embora essa arquitetura presumia-se como verdadeira condição de possibilidade para finalmente horizontalizar o poder no Brasil, após os longos períodos de colônia e império, republicanização de fachada e o Estado Novo de Vargas, havia um ônus: se as ambições populares, mais ou menos hegemônicas, estavam endereçadas ao Executivo, o controle dessas mesmas ambições estava — em todos os sentidos — bem vivo no Congresso. Afinal, "eleito estadualmente", como esmiúça criticamente Abranches, o parlamento era moldado "por um voto preponderantemente influenciado pela capacidade de manipulação dos chefes políticos locais". Muito por isso, "continuava a dar voz às velhas e novas oligarquias".

Eis o ponto. Essa estrutura, com sutis modificações, legou descendência na política brasileira. E no resistente núcleo de sua aparência, não deixa de projetar seu próprio revival no peemedebismo [3] a controlar a velocidade das transformações sociais exigidas na Constituição de 1988, ou na sua consolidação naquilo que, hoje, chamamos de "centrão". E aí fica a pergunta: comprometido até a medula com a anedota que põe determinadas elites econômicas permanentemente nos palácios do poder [4], teria feito, de sua própria necessidade, os tristes limites da política como condição de possibilidade para uma vida melhor?

Pelos recentes — e nem tão recentes — exemplos vindos do Planalto Central, a resposta é positiva. Menos pela arquitetura institucional que permite esgrimar o poder e mais pela cultura política, as velhas imposições e as consequências do "multipartidarismo à brasileira" permanecem atuais. Mas o que isso significa? Em linhas bastante sucintas, talvez seja possível dizer que a democracia ainda permanece como um processo incompleto — atualizando as já muitas vezes esquecidas lições de Florestan Fernandes [5] —, vergando, mas não efetivamente horizontalizando o poder entre nós. Ou seja, a apropriação do Estado pelo interesse particular permanece legitimada por uma insistente cultura patrimonialista que subverte burocracias: aqui, elas — as burocracias — não impessoalizam nossas relações. Ao contrário, legitimam particularíssimas subjetividades.

Pois bem. Nos limites dessas observações, talvez esse caldo político ajude a explicar as razões que põem o positivismo — que é conhecido justamente pelo que ele não é [6] — como um paradigma predominante na cotidianidade de nossa comunidade jurídica. Faz sentido: se o positivismo é não mais que uma teoria política do poder, nada mais coerente com nossas teimosas tradições político-jurídicas. Mais que deitar o poder, afinal, importa legitimar seu exercício. Faoro tinha razão: por aqui, há donos para o poder, inclusive, pós-redemocratização.

Ocorre que, para além do ensaio dessas linhas, em boa medida replicantes de conhecidíssimos posicionamentos críticos da especificidade brasileira na academia, esse mesmo cenário talvez desvele não exatamente respostas sobre antigas questões, mas, mais que isso, permita uma pergunta a ser feita e refeita de quatro em quatro anos por aqui: qual o conceito de Direito dos nossos candidatos — seja ao Planalto ou ao Congresso Nacional?

A questão não é ingênua e, muito menos, retórica. Deve ser enfrentada. Se o Direito é, a depender do paradigma em que se projeta, tanto linguagem pública institucional e institucionalizante quanto instrumento a serviço dos donos do poder, bem protegidos pelo presidencialismo de coalizão sequestrado, conceitos importam. Seu candidato ou candidata demonstra pensar que Direito é aquilo que os tribunais dizem que é? Cuidado. Pode ser que a República caminhe a passos largos para uma bem consolidada Juristocracia. Ou faz crer que determinados ativismos, num inerentemente ideologizado ponto de vista, são bem-vindos? Mais uma vez, fique atento. É possível que o Brasil abandone, de vez, qualquer traço, ainda que pálido, de segurança jurídica. Dá indícios que de que o Direito não passa de comando do soberano, colocando-se acima do contrato? Se o ponto de vista espelha essa possibilidade, subliminarmente talvez você deseje viver em uma autocracia. Ou seu candidato posiciona-se demonstrando que o Direito é um conceito interpretativo, filtrado sempre por uma espécie de razão hermenêutica? Qual, afinal, o conceito de Direito dos nossos candidatos?

Pelas respostas, como se vê, passa o próprio sentido dos mecanismos que permitem e organizam o exercício do poder por aqui, bem centrados no presidencialismo de coalizão: ele é bom ou não? Impõe limites institucionais ao autoritarismo? Ou é uma estamental barreira — envernizada por certas institucionalidades — às transformações sociais que levam, enfim, à modernidade? A resposta é política. Mas passa, claro, pelo conceito de Direito "dominante" nas mais importantes instituições do país.

 


[1] ABRANCHES, Sérgio. Presidencialismo de coalizão. Raízes e evolução do moderno político brasileiro, São Paulo: Cia. das Letras, 2018.

[2] Por todas as referências, STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise. Uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.

[3] NOBRE, Marcos. Imobilismo em movimento: da abertura democrática ao governo Dilma. São Paulo: Cia. das Letras, 2013.

[4] Diz-se que um candidato recém-eleito encontra um conhecido empresário durante a cerimônia de posse. Entre drinks e canapés, indaga: "Você por aqui"? O empreendedor rebate: "Eu estou sempre por aqui", dando a entender que, independente do partido no poder, ele sempre está lá, predando o espaço público.

[5] FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.

[6] STRECK, Lenio Luiz; MATOS, Daniel Ortiz. Mitos sobre o positivismo jurídico: uma leitura para além do senso comum teórico. UNIFESO – Humanas e Sociais, v. 1, nº 01, p. 120-140, 2014.

Autores

  • é doutor em Direito pelo programa de pós-graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Com bolsa Capes/PNPD, realiza estágio pós-doutoral na mesma instituição, junto ao Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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